O homem supérfluo e o pai necessário
Márcio Peter de Souza Leite
(in "Psicanálise: problemas do feminino”, Forbes, J. (org.), ed. Papirus, Campinas-SP, 1996)



• Filho: Desejo ou necessidade?
• Mulheres freudianas e mulheres lacanianas
• O homem supérfluo
• O pai necessário


Filho: Desejo ou necessidade?

O primeiro “bebê de proveta” foi Louise Brown, que nasceu em 1978 graças aos esforços de um biólogo francês, Jacques Testart, que conta essa epopéia em seu livro “L’oeuf transparent”, e o segundo foi Amandine, nascida em 1982 com o auxílio de um ginecologista, também francês, Renê Frydman, que também conta a história desse nascimento no livro “Lirresistible désir de naissance”.

O psicanalista, ao refletir sobre as implicações de tais acontecimentos, pode unicamente, pelo fato de trabalhar só com significantes, reunir em um conjunto os que se referem à questão da infertilidade.

Tal exercício, que para o especialista talvez não produza discordância, certamente o fará para o profissional não familiarizado com essa terminologia, ou para o leigo, dando existência a tantas significações quantas forem as fantasias dos que se referem a essas palavras.

Assim, ao ouvir ou ao ler termos e siglas como: fecundação artificial, fecundação in vitro, bebê de proveta, IVG, PMA, inseminação artificial, inseminação heteróloga, reprodução assistida, medicina da reprodução, infertilidade, doação de óvulos etc., constatamos que esses termos constroem universos diferentes quando usados em uma consulta médica ou quando usados em uma sessão analítica.

Pois, para o analista, o que se questiona na direção de um tratamento não é a realidade anatomofisiológica do caso, mas sim o valor significante dos termos e as fantasias nas quais eles estão incluídos, pois o que importa num tratamento analítico é unicamente o universo simbólico que determinam as fantasias.

Na análise compete, então, não o exercício de investigar a possibilidade fisiológica de um paciente vir a ter filhos, mas sim a questão do seu desejo de vir a tê-los, visto que para o analisante sempre haverá um conflito quando ele quiser ter um filho e não o puder, e muitas vezes também quando puder, e não quiser.

Isso torna possível equacionar tal observação, sob a forma da seguinte pergunta: Ter filhos é um desejo ou uma necessidade?

Será que, assim como para Freud existe uma pulsão de saber, uma pulsão escópica etc., haveria também uma pulsão específica que pudesse produzir o efeito de se desejar um filho? E se houvesse, seria isso que justificaria, a qualquer custo, o recurso de uma reprodução assistida, para que haja uma fertilização?

Não há nada na experiência analítica que aponte para tal conclusão, embora muitas vezes essa consideração biologizante da natureza humana faça parte da fantasia popular e, infelizmente, de algumas fantasias científicas também. Porém, para a psicanálise, o desejo de ter um filho é um desejo como outro qualquer, e portanto está sujeito às leis do significante e às suas vicissitudes de linguagem, pois o seu destino é o deslocamento e a condensação.

Exemplo disso é a clássica equivalência simbólica, proposta por Freud, em que o falo é igual ao pênis, que é igual à criança.

Por isso, para esse autor, a significação da gravidez estaria no fato de que a presença da criança, através dessa equação simbólica, poderia anular a castração feminina, visto que no inconsciente criança pode ser equivalente a falo. Para Freud, a mulher “normal” é aquela que não ama a sua mãe, uma vez que ao se deparar com sua castração, ela escolhe a partir daí seu pai como objeto de amor, o que aconteceria, ainda segundo esse autor, visto ser ele quem, através de um filho, poderia torná-la completa, anulando assim a sua castração.

Para Freud, então, a mulher vai amar um homem apenas como substituto do pai, mas embora esse amor “deslocado” da mulher seja também um amor que existe em, relação ao desejo, ele é o desejo de ter o falo, o que seria transformado, pela equação simbólica, em desejo de ter um filho.


Mulheres freudianas e mulheres lacanianas

Assim, segundo Freud, para a mulher, o objeto desejado não seriam os homens e sim os filhos.

Dito de outra maneira, pelo viés freudiano, entende-se o desejo de um mulher ter um filho como uma fantasia em que ela recuperaria sua completude perdida.

Pode-se chamar a esse tipo de equacionamento da feminilidade de “mulher freudiana”, e a essa concepção teórica da posição feminina perante a castração, e sua solução (será que para Freud o filho é uma solução?), poderia se contrapor a idéia de uma “mulher lacaniana”, que seria o resultado da leitura que Lacan faz da feminilidade. Tal teoria, formulada sucintamente, poderia significar que o centro do desejo feminino não estaria no “desejo pelo pai”, como na “mulher freudiana”, mas sim nos efeitos da perda que instaura a falta, o que institui a mulher como não-toda (fálica), o que ocorreria pelo efeito da operação do real na estrutura.

Quer dizer, se para Freud a verdade do desejo feminino estaria ligada à relação da mulher com a lei do desejo, o que seria sempre presentificado pelo pai, e na qual ela poderia vir a ser toda através de um filho, para Lacan, a verdade do desejo feminino, ao estar ligada ao real da estrutura, apontaria a causa do desejo, produzindo não uma possibilidade de completude, mas um outro gozo, diferente do gozo fálico.


O homem supérfluo

Poderíamos dizer que a contribuição da psicanálise para a questão das reproduções assistidas seria a de questionar os efeitos de subversão que estas propiciam no sujeito. No caso particular das inseminações heterólogas, que é a situação de uma mulher que recorre a uma fertilização através da inseminação por métodos diferentes do coito, de um doador de esperma desconhecido, isso produz uma subversão que aparece a partir da possibilidade, antes impensável, de uma mulher ser fecundada por um espermatozóide dissociado de seu produtor.

Tal procedimento modificou radicalmente a implicação, que antes era incontornável, de que para se ter uma criança seria sempre necessária a presença da fantasia de uma mulher, modulada com a de um homem; com isso a inseminação heteróloga introduziu a possibilidade de um desejo unilateral na procriação.

E não seria este o centro dessa reflexão, justamente intitulada "O homem supérfluo?" Pode a mulher querer um filho, sem um homem que o procrie, de um esperma que a fecunde?

Do ponto de vista analítico, uma vez que ocorra uma situação dessa, impõe-se a pergunta do que acontece com a significação da gravidez para quem recorreu a esse método. E também: O que acontece, nesses casos, com a acolhida subjetiva do embrião e com a acolhida da criança após o nascimento?

Poderíamos levantar a crítica de que, se a medicina da procriação, no seu discurso, continuar a falar unicamente de seres com “puros corpos”, feitos exclusivamente de substâncias e sem sujeito e se esse tipo de medicina reduzir a diferença dos sexos somente a uma questão de órgãos, restará só a psicanálise para falar da subversão produzida no ser que se sujeita aos recursos técnicos propostos por essa medicina.

Indicativo, é o fato de que a medicina da procriação apareceu historicamente como opondo-se ao êxito da medicina contraceptiva, que alcançou seu ápice de eficácia a partir dos anos 60, e que, com a proposta de evitar a gravidez, também subverteu a ordem do desejo de ter filhos. Foi justamente esse fundamento humano que paradoxalmente ficou excluído pelo saber científico que regula a procriação e que, por sua vez, acabou por impor a gestação à mulher como um bem supremo, sempre realizável.

Por isso parece oportuno opor a medicina fertilizante a uma medicina infertilizante, pois da mesma forma que o desejo de ter um filho está estruturado como qualquer outro desejo, o desejo de não ter um filho também o está.

Para restringir a questão à atualidade, pode-se propor que os avanços da contracepção modificaram o fato de a concepção ser encarada como uma conseqüência (do ato sexual), para transformá-la numa decisão (sobre o desejo de gravidez). Pois não é verdade que desde a existência de métodos contraceptivos eficazes, a concepção de uma criança passou a ser, na grande maioria das vezes, programada, separando dessa forma o desejo sexual do homem por uma mulher do desejo de procriar?

Isso porque a mulher ou o homem podem inibir a fecunda­ção de várias maneiras, e se a mulher engravida contra o seu desejo, existe ainda a possibilidade de interromper a gravidez.

Será então que os avanços científico e técnico da medicina (como sugere M. M. Chatel, em seu livro “Malaises dans Ia procreation”) teriam produzido mudanças nos padrões da vida sexual, nas formas do relacionamento amoroso e mesmo das condições históricas da família?

Será que tais mudanças introduzidas pelas novas técnicas médicas não teriam produzido também uma ideologia, segundo a qual todas as mulheres devem engravidar?

E teria, para chamá-la assim, essa “tomada de poder da técnica médica sobre os sujeitos” (que se sobressai principalmente através da técnica da inseminação heteróloga) colocado o homem em um plano secundário, tornando-o supérfluo?

E seria este secundário, secundário ao narcisismo feminino? A clínica psicanalítica, por ser clínica do particular, só poderia opinar sobre tal questão caso por caso.


O pai necessário

A contraposição principal desde a perspectiva psicanalítica quanto ao tema seria, portanto, que, se o homem, na condição que lhe outorga a técnica da inseminação artificial heteróloga, pode ser supérfluo, desde o ponto de vista da psicanálise, no entanto, o pai sempre é necessário.

Ou seja, se dentro da lógica da medicina da procriação, o espermatozóide pode tornar o “resto” do homem desnecessário, não seria o pai o resto mesmo do que vai do homem ao esperma?

Essa relação do homem desnecessário, a inseminação heteróloga e a figura do pai, mostrou-se de uma forma clara numa reportagem publicada na revista “Marie Claire” (02/96, p. 74) com o título “Doadores de esperma: os pais anônimos ou que pai é esse?”

A matéria investiga as conseqüências da ausência de conhecimento — para os filhos de mães que usaram o método da inseminação heteróloga — daquele que foi o doador do esperma necessário na fecundação e conclui que há um desejo universal, entre os entrevistados, de conhecer seus “verdadeiros pais”, ou melhor, seus “pais cromossômicos”.

A pergunta que se impõe no entanto é: Se o pai não é o esperma, o que de fato é um pai?

Pergunta não muito simples de responder, pois embora a figura do pai sempre estivesse presente na cultura, nem sempre esta associou o coito à fecundação.

Por isso mesmo, para a antropologia moderna, as relações de parentesco são o separador do “natural” e do “cultural”.

Se a mãe é da ordem do sensível, da realidade, o pai sempre foi uma dedução simbólica, o pater semper incertus est (ou pelo menos foi até a existência do exame de paternidade pelo método do DNA). Independentemente das conseqüências dessa incidência da “verdade científica" sobre a produção do saber, fato que não foi ainda adequadamente estudado pela psicanálise, é importante se ter em conta que nem sempre a significação da paternidade foi igual à atual.

Na Grécia antiga o pai tinha direito de vida ou morte sobre os filhos, como bem conta a lenda de Édipo, que foi deixado para morrer por seu pai; já o pai latino era livre para aceitar ou recusar seu próprio filho, mas a partir do dia em que o reconhecia, estava obrigado a se responsabilizar por ele, pois, em Roma, contava mais o nomen, nome, do que o germen, semente.

Entre os hebreus, Abraão se dispôs a matar Isaac, seu filho, a mando de Iavé, seu pai simbólico. Para os cristãos, Jesus morreu obedecendo à vontade de seu pai, e será que a penetração do cristianismo não foi tão bem-sucedida justamente porque rebaixava o pai real como resultado de um amor pelo pai no céu?

E nos séculos XIX e XX, não estaria o Estado substituindo o lugar do pai? Quer dizer, sempre houve indícios de que o lugar do pai fecundador foi sempre secundário em relação ao lugar do legislador, o pai que faz a lei. Por isso também, na psicanálise, o lugar normativo do pai no desejo humano foi largamente descrito por Freud, através das vicissitudes do complexo de Édipo, que condicionaria o destino do sujeito.

E a psicanálise depois de Freud, com Lacan, foi além, e chega mesmo a formular a pergunta: É necessário que haja um homem para que haja pai?

Foi Lacan, reformulando as descobertas de Freud, quem ressaltou que o pai fecundador é exterior à relação mãe-filho, e que este só toma consistência perante o desejo da mãe. Ou seja, para a psicanálise o pai não é um objeto real, não é o macho copulador, o pai é uma metáfora, e sua função no complexo de Édipo é a de ser um significante que substitui outro significante.

O pai é portanto, para a psicanálise, uma função que instaura a proibição, e com isso a falta, outro nome para a castração. Assim, desde a experiência analítica o pai só está presente para a criança pela lei que é a sua palavra, e essa palavra (que Lacan chama de Nome-do-Pai) só assume seu valor de lei na medida em que é reconhecida pela mãe.

A paternidade portanto, segundo a psicanálise, está ligada ao fato de o animal humano falar, e não ao fato de o homem produzir espermatozóides.

Ou seja, não é o macho copulador que se efetiva na subjetividade da criança como sendo o pai, mas sim o pai simbólico, que por sua vez toma sua existência pela palavra da mãe, que através do seu desejo o nomeia (nem que seja Deus Pai, como fez a Virgem Maria).

Poderíamos então supor que as pessoas entrevistadas na reportagem da revista “Marie Claire”, do ponto de vista psicanalítico, procuram, no doador de esperma, não a fonte de seus cromossomos, mas um saber sobre o desejo da mãe, o que constitui a lei de seus destinos.

O pai, portanto, para a psicanálise, é mais que um homem, já que o homem enquanto pai tem o falo, e o pai enquanto homem o perde.

Se, no entanto, for a mãe que, ao excluir o homem de sua gravidez, o faz para se manter fálica, isso é outra questão.

 

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