O inconsciente está estruturado como uma linguagem
Márcio Peter de Souza Leite
(in Cesarotto, O. (org.), “As idéias de Lacan”, p.p. 31-42, Iluminuras, 2001, SP)
• De Viena a Paris: do inconsciente ao sujeito
• “O inconsciente é o que eu digo”
• Psicanálise: nunca antes, só depois
• Do significante à letra: da linguagem para alíngua
• Do sentido à escritura: da lingüística à lingüisteria
De Viena a Paris: do inconsciente ao sujeito
O conhecido psiquiatra francês Henry Ey, realizou em 1960 mais um colóquio, o sexto, no "serviço" dirigido por ele em Bonneval, dedicado ao tema: O Inconsciente.
No prefácio da publicação que reuniu as apresentações feitas naquela ocasião, Henry Ey deixou registrado que “ninguém esqueceria a atmosfera eletrizante daqueles debates", "que alcançariam por momentos um paroxismo apaixonado que o leitor pressentirá ao conhecer as ponências, que se reduziriam, com o tempo a uma objetividade mais séría” [1]. A referência, "com o tempo", apontava aos 4 anos que decorreram entre o colóquio e a publicação que o registrou.
Hoje, passados trinta anos, ao se ler os registros daquele acontecimento, parece que Ey subestimou os efeitos do “paroxismo apaixonado” que dominava os analistas naquela ocasião. Parece também que, ao “civilizador da Psiquiatria” — era a maneira como Lacan se referia a Ey — passou desapercebido que lá ocorreu um dos mais importantes momentos da psicanálise, talvez mesmo seu moderno “divisor de águas”, de cujas conseqüências ainda se nutrem quase todas as correntes atuais da mesma.
Estiveram presentes neste evento, tanto os defensores de uma psicanálise que ainda vivia da esperança de uma psicobiologia, bem como seus opositores mais radicais, os alunos de Lacan. E claro, estavam lá também os que procuravam uma posição intermediária, que pudesse agradar a todos.
Mas, já naquele início de década, era tarde demais para contemporizações. Há oito anos Lacan inaugurara seu ensino, onde fundamentava a noção de inconsciente que, ao ser definido através do axioma “estruturado como uma linguagem” não dava mais margens a ambigüidades nem a ecletismos quanto ao seu uso. Precisão conceitual que na sua essência, além do avanço que a referência a Saussure continha, produziu um retorno ao sentido da obra de Freud, muito mais que a sua letra.
Dentro daquele contexto, que juntava filósofos e psicanalistas estavam presentes Lebovici, Diatkine, Laplanche, Leclaire, C. Stein, J. Hyppolite, P. Ricoeur, Merleau-Ponty, Minkovsky e Lacan, entre outros, todos convidados por um psiquiatra que propunha, num âmbito aberto às diferenças conceituais e doutrinárias, pensar o inconsciente, dentro do contexto científico dos anos 60.
No primeiro dia, Ey abriu o colóquio com uma abordagem do inconsciente, algo ingênuo, aproximando-se da questão pelo fato de ser “desconhecido” da consciência, reduzindo com isso o inconsciente ao “fora do conhecimento”.
Dando seqüência às exposições que retratavam as várias acepções que esta noção recebia na época, Ey foi seguido na sua fala por A. Green que, dentro do tema dedicado às “pulsões e o inconsciente”, habilmente recortou a relação, candente então, do inconsciente com a neurobiologia.
No segundo dia, dedicado à “relação do inconsciente com a linguagem”, foi a vez de Laplanche. Ele apresentou, em parceria com Leclaire, um trabalho com o título: “O inconsciente: um estudo psicanalítico”.
Fora o irônico deste título (que outro estudo sobre o inconsciente se esperaria naquele âmbito de debates, que não o psicanalítico?), por se tratar de um aluno de Lacan, e por ser o dia dedicado à relação do inconsciente com a linguagem, esperava-se desta exposição, posicionada desde o “retomo a Freud” pregado pelo ensino de Lacan, que se enterrasse de uma vez por todas o resquício da compreensão biologizante do inconsciente, pretendida por alguns dos analistas presentes.
Talvez poucas vezes antes na história da psicanálise tenha havido uma oportunidade tão propícia de se discutir, profundamente, os vários sentidos que, na obra de Freud, pode adquirir o seu conceito mór.
No entanto, Laplanche e Leclaire, no texto apresentado, tomaram uma posição que os colocaria não tão perto de uma leitura de Freud baseado em pressupostos biológicos, mas também longe da postura de Lacan, que afirmava a radicalidade da estrutura do inconsciente como linguagem.
No texto, os autores afirmavam que o inconsciente freudiano, e a linguagem, se oporiam radicalmente, e que a transposição de um para outro, tanto de sua lógica como de suas leis, seria um paradoxo.
Pois para eles, na posição que defendiam naquele momento, seria o sistema pré-consciente que se relacionaria com a linguagem, sendo, por isto, caracterizada pelo processo secundário. Eles acrescentariam ainda que, mesmo que se leia em Freud uma linguagem que funcionaria segundo o processo primário, por exemplo a linguagem da psicose, esta seria apenas uma linguagem particular, e não “A” linguagem. Pois o psicótico não consideraria as palavras como palavras, mas as palavras como coisas.
A principal decorrência da exposição do pensamento destes dois alunos de Lacan, e contrariamente ao ensino dele, e sustentando as suas diferenças com os argumentos expostos, foi que termiram por sintetizar sua posição como: “O INCONSCIENTE É A CONDIÇAO DA LINGUAGEM”.
Estava desencadeada a polêmica. Se impunha naquele colóquio, sessenta anos depois da descoberta freudiana, e depois de uma década do ensino lacaniano, que a noção de inconsciente ainda estava sendo pensada por uns através da psicobiologia, por outros na acepção de Politzer; havia ainda os que o consideravam condição da linguagem e opondo-se a todos eles, Lacan, dizendo que o inconsciente estava estruturado como uma linguagem.
“O inconsciente é o que eu digo” [2]
Nas discussões que se seguiram a apresentação de Laplanche, após as intervenções de Merleau-Ponty, Green, Minkovsky e Lefevre, Lacan pediu a palavra, e respondendo a fala de seus colegas, de improviso, expôs suas idéias sobre o que seria o inconsciente.
Mais tarde, quando escreveu esta sua intervenção, deixou claro, primeiro, respondendo aos que assim pensavam, aquilo que o inconsciente não é: “O inconsciente não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo do que tem atributo da consciência” [3].
Para depois afirmar o que ele é: “o inconsciente é um conceito forjado sobre o rastro daquilo que opera para constituir o sujeito” [4]. Afirmação que deslocava a definição de inconsciente da sua relação com a consciência, para situá-lo em relação à causação do sujeito.
Disso se deduz que “os analistas formam parte do conceito de inconsciente, porque são seus destinatários” [5]; dentro de uma estrutura, o inconsciente depende da relação que existe entre o sujeito e o Outro, assim expressa:
“Entre o sujeito e o Outro, o inconsciente é seu corte, sua ruptura em ato” [6].
Estas afirmações de Lacan se sustentavam na coerência, longamente demonstrada no decorrer do seu ensino, da premissa inicial “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”. Portanto, há muitos anos havia, para os que o seguiam, uma posição clara quanto ao que seria o inconsciente na obra de Freud. Por isto, na resposta a Laplanche, afirmou: “0 inconsciente é o que digo, se queremos entender o que Freud postula na sua tese” [7].
Lacan já havia formulado essas mesmas idéias, embora com outras palavras, em outros textos, como por exemplo: “O inconsciente é essa parte do discurso concreto, em tanto que transindividual, que falta a disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” [8]. Também no mesmo lugar havia definido o inconsciente como: “esse capítulo da minha história que está assinalado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado” [9]. Havia assim, desde muito tempo uma insistência na função e campo da palavra e da linguagem. Faltava talvez precisá-las. A crítica de Laplanche apontava este fato.
Talvez por isto, quatro anos mais tarde, ao escrever a sua intervenção em Bonneval, Lacan assim o definiu: “O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em alguma outra parte se repete e insiste em interferir nos cortes que lhe brinda o discurso efetivo e a cogitação que ele informa” [10]. A diferença desta formulação das outras é que nela a linguagem, passa a estar sustentada por uma cadeia significante, o que era um avanço em relação às posições anteriores, pois dessa maneira passa a ser pensada dentro de uma lógica própria, e não mais apenas como uma sucessão de palavras.
Ao voltar, três anos depois, ainda mais uma vez sobre o mesmo argumento contido no artigo de Laplanche, que sem dúvida o deixou mobilizado, desta vez na introdução que escreveu em 1969 para a tese universitária elaborada por Anika Rifflet-Lemaire [11], (mais tarde publicada como um dos tantos livros de “introdução a Lacan”), ao explicitamente criticar a posição de seu então já ex-discípulo, afirmou mais uma vez: “O inconsciente é um saber posto em situação de verdade, o que não se concebe senão numa estrutura de discurso” [12]. No entanto, embora reafirmasse continuamente sua tese da estrutura de linguagem do inconsciente, se tornava necessário explicitar psicanaliticamente os termos importados da lingüística, e demonstrar a especificidade do uso que fazia deles.
Quanto a isso, Lacan nunca conseguiu ser tão claro, como foi numa conversação relatada por Anika Riffet-Lemaire [13] onde, condensando toda a polêmica causada por sua concepção, assim rebateu: “Meu enunciado, isto é, que o inconsciente tem uma estrutura de linguagem, não pode de nenhum outro modo entender-se de outra forma, a não ser segundo o que afirmava faz um momento, isto é, QUE A LINGUAGEM É A CONDIÇÃO DO INCONSCIENTE” [14].
Fórmula esta que retomaria em 1970: “Para o analista, pelo contrário, se não participa nos acontecimentos nos quais se veste o engajamento universitário, não erra seu Homem e o arroja a um engano como é dizer que o inconsciente é condição da linguagem: aí se trata de fazer-se autor a custa do que eu falei, inclusive insistido, aos interessados, a saber, que a linguagem é a condição do inconsciente” [15].
Para, mais adiante no mesmo texto acrescentar: “O inconsciente é condição da lingüística. Esta, no entanto, não tem a menor influência sobre ele” [16]. Voltaremos a esta ironia mais adiante.
Psicanálise: nunca antes, só depois
Resumindo-se a crítica contida no texto de Laplanche, “Inconsciente, um estudo psicanalítico”, esta apontaria que, ao se propor o inconsciente estruturado como uma linguagem, sem no entanto precisar psicanaliticamente o termo “linguagem”, isto não seria suficiente para dar conta dos efeitos do inconsciente, mas apenas da elaboração deste pela linguagem no sistema pré-consciente.
De fato, talvez esta confusão fosse possível, porém só para os que não entendiam a posição deste termo no ensino lacaniano. Daí o esforço em precisá-la no texto que registrou sua intervenção em Bonneval, ao qual deu por título: “Posição do Inconsciente”, texto fundamental, que seria ainda mais uma vez mais reescrito, em 1966, e incluído nos Escritos.
A evolução do ensino de Lacan a partir deste marco, paradoxalmenteo último texto dos Escritos, mostrava um esforço em formalizar uma materialidade para o inconsciente, e da causa do sujeito, o que operaria, por fim, como uma subversão no uso que fazia do termo linguagem. Este esforço se concretizaria mais tarde com o recurso a noção de “letra”, entendida como um significante fora do simbólico.
Se, no início, Lacan colocou em evidência como o significante determinava o sujeito, ficava a questão do que faria um significante se localizar em um lugar, o que sustentaria sua “materialidade”? Em outros termos, o que retiraria a psicanálise de um nominalismo? Nos anos sessenta, Lacan distinguiu a letra do fonema, e por decorrência, a linguagem da palavra. Mais tarde, em 1971, em “Lituraterre” [17] ele proporia que se existe um saber no real, este saber só pode ser da ordem da letra e portanto da ordem da escrita. Avanço que visava a estabelecer a relação entre o inconsciente, e o real do sujeito.
Esta nova posição, a partir dos anos setenta, impôs a idéia de que o que constitui o inconsciente seria a letra, e não o significante. Então, ao se dizer que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, isto quer dizer que esta não remeteria a uma lingüística. Pois, de fato, o inconsciente estaria estruturado como uma linguagem, cuja estrutura, porém, só se revela pelo escrito.
Esta maneira de raciocinar só seria possível após demonstrar que a letra produz no Real a dissociação do Imaginário e do Simbólico. A letra seria este algo “que vai mais longe que o inconsciente” [18].
Por que esta nova concepção afetaria a própria doutrina do inconsciente? Porque, se o que constitui a instância é a letra e não o significante, dizê-lo estruturado como uma linguagem passa a requerer uma precisão: o inconsciente está estruturado como uma linguagem, “cuja estrutura só se revela pelo escrito” [19].
Do significante à letra: da linguagem para alíngua
Dentro desta nova perspectiva, dizer que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, significaria dizer que ele tem uma realidade material. Porém, mesmo assim, ele ainda é efeito do dizer, por que retroativamente o sujeito sempre diz mais do que sabe. Como então ressignificar, desde esta perspectiva, as palavras “estrutura” e “linguagem”?
Em 1975 [20], Lacan ao se dirigir ao público americano, sentiu necessidade de explicar: “... curioso notar, inclusive não estando absolutamente provado, que as palavras são o único material do inconsciente. Não está provado, mas é provável (e em qualquer caso, eu nunca disse que o inconsciente seja uma reunião de palavras, senão que o inconsciente está precisamente estruturado como uma linguagem)” [21]. Pois, se não está provado que as palavras são o único material do inconsciente, se nunca disse que o inconsciente fosse uma reunião de palavras, faltava nomear o que não é significante e pertence ao inconsciente: o objeto. Precisamente, na orientação lacaniana, objeto causa do desejo.
Este aspecto do inconsciente, fora do significante, redefine a estrutura que, se antes poderia ser pensada somente organizada pelo Simbólico, a partir dai só pode ser entendida como um Simbólico organizado por um Real. Nas palavras de Lacan: “A estrutura é o real que abre caminho na linguagem [22]. Isto quer dizer que a linguagem não esta subditada a um regime binário, próprio da cadeia significante pensada apenas como uma combinatória, como uma potencialidade de infinitas possibilidades de produção de sentidos.
Na perspectiva anterior a esta posição, na direção do tratamento, restrita à compreensão da linguagem articulada em função de um código fundada num binarismo, o fim seria impossível, visto não haver um significante que signifique toda a verdade do sujeito.
Concebida assim, a série significante que sustenta a fala é infinita, e ela suporá sempre a possibilidade de um recomeço. Porém, ao tomar a linguagem como fundada na escrita, marca da letra, transforma-se a prática da análise em leitura, e o analista já não opera mais no lugar onde o significante adquire valor de verdade, lugar do Grande Outro, lugar da mestria do sentido, da interpretação por acréscimo de sentido. Nesta outra posição, seu único lugar possível passará a ser o de objeto, um resto fora do significante.
Com isso a prática da análise como uma intervenção do analista que produziria um S3, por acréscimo de sentido, se deslocou para a intervenção do analista apontando para o intervalo da cadeia, ou seja, o que acontece entre S1 e S2, intervalo que se repete, intervalo de pura diferença. Núcleo da noção de significante, morada do objeto a.
A idéia de um intervalo entre S1 e S2, aponta ao mais radical da estrutura da cadeia significante, referindo-se Lacan desta forma: “debaixo da incidência em que o sujeito experimenta nesse intervalo. Outra coisa para motivá-lo que os efeitos de sentido com que o solicita um discurso, é como encontra efetivamente o desejo do Outro, ainda antes de que possa sequer nomeá-lo desejo, muito menos ainda imaginar seu objeto” [23].
Opõe-se, desta forma, efeito de sentido e encontro do desejo, pois o que o intervalo da cadeia impõe é da ordem do sem-sentido. O analista não está mais no lugar de S2, mas sim no de S1, S1 insensato. Pela formalização dos discursos, no discurso do analista, se apresentaria como o que se produz a partir dos efeitos de um saber colocado no lugar da verdade.
Isto quer dizer que a partir daí se operou uma mudança radical na direção do tratamento. Este fato decorreu da passagem da estrutura da linguagem definida como simbólica, para uma outra, definida desde o estatuto do Real. O golpe final do primado do Simbólico sobre o Imaginário, foi dado quando se demonstrou a incompletude do Simbólico, que foi escrito S(A barrado). Este “buraco” no Outro, decorre do objeto a, impondo uma prevalência do Real sobre o Simbólico. Assim, em 1973, Lacan já afirmava: “no discurso analítico só se trata disso, o que se lê” [24].
Nos próximos anos do seu ensino, acontecerão algumas modificações importantes, todas elas referentes a relação do Real com o Simbólico, o que o levaria a uma reformulação da noção de sintoma, culminando em 1974, ao dizer “o sintoma é efeito do Simbólico no Real..., o que se produz no campo do Real” [25].
O que o analista escuta na dimensão do dito, na dimensão da escrita, naquilo que Lacan chamou “Um do Real”, tornará possível a superação do sentido como sendo apenas efeito da combinatória dos significantes, tornando assim possível um fim na análise. Estas considerações foram ditas como a possibilidade de haver o “Um”, o que depois ele veio a chamar de “Um do Real”, ou de “Um-todo-só”. A decorrência disto é que havendo o Um, implicaria em que não há relação binária, entre os elementos da cadeia significante, mas sim, efeito de corte entre estes elementos. O analista, na posição de objeto, escuta na dimensão do dito, que é a dimensão do “Um dizer”, do “Um da não relação”. Lacan encontrou na formula “Y a de l’Un” a maneira de mostrar o que se precipita no dizer como escrita.
A linguagem, antes pensada como constituída pelo traço unário, produziria necessariamente uma série de infinitos sentidos. A esta noção de linguagem ancorada num binarismo, Lacan opôs o “campo uniano”. Este conceito opera a separação entre o registro do ideal, próprio do traço unário, e o registro do Real, próprio do campo uniano. Assim, a escrita pode ser entendida como um discurso sem palavras, um outro nome para o gozo.
Lacan introduziu com essas reformulações, uma “substância”, não prevista pela filosofia nas suas elucubrações sobre o sujeito. Esta substância, essencial ao homem, não seria nem material, nem pensante, como no critério cartesiano, mas “gozante”, “corporificando-se de maneira significante” [26].
A linguagem, articulada ao gozo, impõe a metáfora da sua origem, que é a Mãe, e o seu referente discursivo, a “língua materna”. Assim, para o futuro falante, existem línguas das quais se abstrai uma, porém, uma única língua, marcada por este gozo, A Língua, ou na escrita de Lacan: “ALíNGUA”.
É nesta alíngua, amálgama de gozo com significante, o sujeito se constituirá como “parlêtre”, marcado pelo significante, condicionado pela letra.
Se o inconsciente está estruturado como uma linguagem, e se a linguagem é condição do inconsciente, é porque a alíngua existe como um Real, é a matriz do inconsciente. Por isto em 1972, Lacan estaria falando do inconsciente nestes termos: “0 inconsciente é um saber, um saber fazer com a alíngua” [27]. Ela será definida como o “corpo simbólico” [28] que dá substância ao inconsciente freudiano. Alíngua seria como a carne da fantasia.
A citação completa é como segue: “Se eu disse que a linguagem é isso como o inconsciente está estruturado, é certamente porque a linguagem, em primeiro lugar, não existe. A linguagem é isso de que se trata de saber a respeito da função da alíngua... A linguagem está feita da alíngua, sem dúvidas. É uma elocubração sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber fazer com a alíngua. E isso que se sabe fazer com alíngua supera em muito aquilo que se pode dar conta debaixo a rúbrica de linguagem” [29].
Lacan ainda mudou este pensamento, no seminário sobre Joyce, ao afirmar que este autor levaria a alíngua à potência da linguagem, quer dizer, fez de S2 da alíngua o S1 da linguagem, carente de todo sentido, puro gozo. No Seminário 20, ainda estava se referindo à operação lingüística, que conseguiria criar um saber sobre o significante, a partir da alíngua. Em Joyce, ao contrário, seria a partir da alíngua que se extrai um significante que não é lingüístico, esse desenvolve a potência da linguagem até a sua própria destruição.
Poderíamos concluir sugerindo: o inconsciente não é a condição da linguagem, a linguagem é condição do inconsciente, porém a alíngua é condição da linguagem. Daí; a afirmação: “o inconsciente, pois não é de Freud, é necessário que eu o diga, é de Lacan. Isto não impede que o campo, este sim, seja freudiano” [30].
Do sentido à escritura: da lingüística à lingüisteria
Desde que Laplanche se fez porta-voz do questionamento da linguagem como estrutura do inconsciente, Lacan rebateu estas críticas, que assimilavam a linguagem ao processo secundário, referindo que, em todo caso, o inconsciente poderia ser a condição da lingüística. No Seminário 20, acrescentou: “Meu dizer que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, não é do campo da lingüística” [31]. Em outro lugar, alguns anos mais tarde, a ruptura seria radical: “que Jakobson justifique algumas das minhas proposições é alguma coisa que não me basta como analista“ [32].
Para substituir o que antes cabia na designação da lingüística, mas que pela alíngua fica subvertido, Lacan criou o termo “lingüisteria” que “permitiria abordar a questão da significação em diferença ao sentido”. A lingüisteria seria a afirmação da relação necessária que o analista tem com a linguagem, e que é irredutível à lingüística. A lingüisteria estaria relacionada com a realidade contigente da linguagem em tanto fundante do sujeito, porém, ela mesma, dependendo da alíngua.
O sujeito da lingüística, sujeito da fala, é subsidiário de uma psicologia do pensamento, produto de um processo secundário. O sujeito da lingüisteria, o “parlêtre”, é um ser incompleto, separado do dizer do seu desejo. Assim, a lingüisteria exige a situação analítica para sustentar-se, chegando esta pontuação de Lacan ao ponto dele dizer que: “Acrescentarei que não há outra lingüística além da lingüisteria. O que não quer dizer que a psicanálise seja toda a lingüística” [33].
Com isto ficou encerrada uma das possibilidades da acepção do Simbólico em Lacan, um Simbólico que recobriria o imaginariamente Simbólico, que seriam as pregnâncias do pré-consciente. Lacan formalizou, para sustentar a consistência da linguagem, condição do inconsciente, um Simbólico que traduz a lógica do significante, subditado ao Real. Com esta nova acepção, Lacan inaugurou uma “clivagem” [34], uma “zona de fronteira” entre saber e gozo. Nesta última tendência do seu ensino, a interpretação não aponta mais ao significado, mas ela está fora do sentido, ela é algo que se busca na própria natureza do Real.
[1] EY, Henry. El inconsciente, México, Siglo XXI, 1975.
[2] LACAN, Jacques. Position de l’inconscient, in Ecrits.
[3] Ibid, op. cit.
[4] Ibid, op. cit.
[5] Ibid, op. cit.
[6] Ibid, op. cit.
[7] Ibid, op. cit.
[8] LACAN, Jacques. Fonction et champ de la parole et du langage en psycanalyse, in Ecrits.
[9] Ibid, op. cit.
[10] Position de l’inconscient, op. cit.
[11] RIFFLET-LEMAIRE, Anika. Lacan, Espanha, Edhasa, 1971.
[12] LACAN, Jacques. Prefácio ao livro de Anika Rifflet-Lemaire, 1969.
[13] RIFFLET-LEMAIRE, op. cit.
[14] Ibid, op. cit.
[15] LACAN, Jacques. Televisão, J. Zahar, 1993.
[16] Ibid, op. cit.
[17] LACAN, Jacques. Lituraterre, in Litterature, n. 3, 1971.
[18] LACAN, Jacques. L’insu que.... in Seminário 24, inédito.
[19] Conferência nos Estados Unidos, in Scilicet, n. 6/7.
[20] Ibid, Lacan, J.
[21] Ibid, op. cit.
[22] LACAN, Jacques. L’Etourdit, in Scilicet, n. 4, 1973.
[23] LACAN, Jacques. Posição do inconsciente, op. cit.
[24] LACAN, Jacques. Posfácio para Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, L. XI, Seuil, 1973.
[25] LACAN, Jacques. Seminário XXII, RSI.
[26] LACAN, Jacques. Encore, op. cit.
[27] Ibid, op. cit.
[28] LACAN, Jacques. L’Insu que sait de L’une-bevue s’ailee a rnourre, in Seminário XXIV.
[29] LACAN, Jacques. Encore, op. cit.
[30] LACAN, Jacques. Abertura da secção clínica, in Ornicar, n. 9, 1977.
[31] LACAN, Jacques. Seminário XX, op. cit.
[32] LACAN, Jacques. Peut-être a Vincennes?, in Ornicar, n. 1, 1975.
[33] LACAN, Jacques. La variete du sintorne, in Ornicar, n. 17/18, 1979. Seminário XX.