Joyce e suas dezculpas
Márcio Peter de Souza Leite
((in Cesarotto, O. (org.), Culpa e Psicanálise, p.p.107-122, 1997, Ed. Iluminuras, SP)
• De culpas e dívidas
• Joyce, o culpado por Stephen ser Dedalus
• Joyce o cemculpas?
De culpas e dívidas
Em alemão, a palavra schuld significa, ao mesmo tempo, culpa e dívida. Esta imbricação de significados, própria às línguas germânicas, repercute na clínica psicanalítica ao permitir articular fatos como remorso e auto-recriminação, juntando-os com o que Freud chamou de “infelicidade interior contínua”. Estes acontecimentos encontrariam uma explicação na metapsicologia freudiana, quando da formalização da culpa como um tipo especial de angústia, aquela perante o Supereu.
Supereu que, por cumprir a função de integrar as diversas instâncias psíquicas com o mundo externo, é o elo do Sujeito com a cultura e seus avatares, constituindo o modelo de um ideal para o Eu, e que deve ser levado em conta em todas as situações psíquicas. A angústia diante desta instância, que conhecemos com o nome de culpa, tem, portanto, um lugar central em qualquer manifestação do espírito.
Por isso, Freud generalizou que o destino humano é influenciado pela culpa, ou melhor, pela dívida, tema desenvolvido por Freud no texto “Mal-estar na civilização”.
Lacan, por sua vez, formalizou esta “dívida fundamental” como conseqüência da causação do sujeito, e a denominou “falta no Outro”. Esta falta, que é decorrente da estrutura do significante, faz com que o sujeito não a tenha contraído ativamente, embora, mesmo assim, tenha que pagá-la.
Por isso, esta dívida, que foi articulada por Freud como o custo da civilização, é cobrada na forma do “mal-estar”. E esta situação, destino de todo humano, é inerente à cultura e, em última análise, decorre do desejo proibido ao falante, do incesto e do parricídio.
E é esta Lei originária, a da proibição ao incesto e ao parricídio, que origina a transgressão, a qual, no dizer de São Paulo, “faz o pecado”.
É o universal do desejo do incesto, que pela sua proibição está na origem da angústia, que se expressa como consciência moral, a qual é herdeira do complexo de Édipo.
Por isso esta angústia, na sua face de culpa, diferindo da angústia causada por uma ameaça Real, é simbólica por excelência. Fato este, que dentro do referencial teórico lacaniano, se expressa como conseqüência do processo de constituição do sujeito pelo Outro.
E, como o Outro é o lugar dos significantes, será na fala que se procurará uma saída para a repetição infinita da dívida simbólica. E como a fala implica a relação do sujeito com o Outro, é nela que se mostra sua função, que é a de tentar permanentemente redimir a falta, efeito da dívida.
E este fato, efeito da escravidão do humano à linguagem, se impõe com ainda mais evidência quando se trata da escrita. Diante da pergunta sobre o porquê desta expressão humana, entende-se, pela psicanálise, que é pelas palavras escritas, dirigidas sempre ao Outro, que o autor tenta redimir sua dívida.
Desde sua origem, a escrita, principalmente nos textos de caráter religioso, do qual a Bíblia é um exemplo, serviu para que os autores, explorando a relação do Sujeito com o Outro que o determina, ao utilizar o recurso de negar o próprio gozo, louvassem a Deus, redimindo desta forma sua dívida.
Há textos também que, situados numa posição avessa à anterior, como foi o caso de Schreber, onde o autor se deixou invadir, não pela angústia diante do Supereu, mas pela própria realização dos seus ideais, o que ocorreu por meio do delírio, e por isso escreveu, não para dar testemunho do gozo do Outro, mas se deixou invadir pelo gozo de Deus, substituindo com isso a ausência do próprio desejo.
E entre estes dois extremos está todo um exército de escritores, pagando com o trabalho de sua pena, a pena de existir, procurando por intermédio deste recurso evocar, no leitor, o testemunho do seu próprio gozo.
Pois quem, ao escrever, não tenta quitar sua dívida para com o Outro? Não seria o que o escritor escreve para um Grande Leitor, que abate a cada letra de seu escrito uma parcela de sua dívida, tanto maior quanto mais vasta e profunda for sua obra?
E, se assim fosse, o que dizer da dívida que motiva um texto como o de James Joyce? Que dizer deste texto em que o gozo da escrita se esgota em si mesmo, sem que o autor procure o reconhecimento do sentido da sua obra no leitor, que colocado usualmente no lugar de guardião da significação decide do valor da dívida?
Joyce, o culpado por Stephen ser Dedalus
É Lacan o culpado por Joyce ser Stephen. Ou seja, foi Lacan quem afirmou que Stephen, criação artística de Joyce em Stephen Hero, e que depois se consagra como Stephen Dedalus em Retrato do artista quando jovem, é o alter ego de Joyce.
Isto faz da obra de Joyce uma autobiografia, o que é um fato discutível, mas, para Lacan, Stephen é o Joyce que Joyce imagina ser, e do qual ele mesmo não gosta. E Stephen, também segundo Lacan, é Joyce decifrando o seu próprio enigma, com dificuldades, pois ainda segundo Lacan, Joyce acredita em todos os seus sintomas.
De se entender a fala de Stephen no relato feito em o Retrato... como sendo a de Joyce, deduz-se que a culpa foi uma das características mais marcantes na sua formação como artista. Desde o início dessa possível autobiografia, há um pedido de perdão sempre presente, correspondido com o relato de infinitos castigos, sendo que em um deles, exemplo paradigmático, Stephen teria seus olhos arrancados por uma águia, (alusão ao Prometeu do mito grego, que se associa ao segundo nome de Stephen, Dedalus), caso não pedisse perdão.
Continua em todos os capítulos do Retrato... uma referência constante à culpa, sempre aparentemente causada por motivos banais, como em uma situação relatada por Stephen, em que por discordar de um professor que afirmava que Byron foi o maior dos poetas, viu-se invadido por uma forma muito intensa de culpa, experimentando sentimentos de inferioridade e sensações de indignidade por sua fraqueza física e entusiasmo fútil, o fazendo ter aversão a si mesmo....
Pode-se ainda incluir a culpa que Joyce apresentava pela vergonha que sentia em relação a seu pai e suas bebedeiras, porém, naquela época de sua vida, Stephen relata principalmente as culpas ligadas ao sexo, que perante o rígido código da Igreja Católica, expunha Joyce à possibilidade da “condenação eterna”. Daí a indicação constante feita por ele ao medo do inferno, exemplificando a clássica relação da culpa com o castigo.
Mas Joyce não foi Dostoievsky, e não pagou sua dívida romantizando a culpa, mas tentando escapar dela. Para isso propôs uma salvação pela arte, e sua pretensão foi “forjar na forja da sua alma a consciência incriada de sua raça”. Foi no decorrer de sua produção que esta pretensão tomou forma.
No texto que segue ao Retrato..., o polêmico Ulisses, mesmo ainda fazendo referência a situações onde se podem deduzir sentimentos de culpa objetivos, transgredindo a linguagem, Joyce começou a cumprir sua promessa, e pode-se dizer que aí começa a cometer incesto com a língua, e parricídio com a semântica.
No capítulo de Ulisses conhecido como “Circe”, Joyce-Stephen, assediado pelo fantasma da mãe, que pede para ele se arrepender e se reconciliar com Deus, depois de pedir para ser deixado em paz e não ser atendido, despedaça o candelabro do bordel onde se encontrava, produzindo uma escuridão, símbolo da cegueira, e que não mais será resultado do castigo de quem teve seus olhos arrancados pela águia, como na ameaça relatada no Retrato..., mas símbolo de um renascimento sem culpa.
Este crescente abuso da metáfora, esse exagero do Simbólico levado ao extremo, este cúmulo do sentido, derivou, na seqüência da produção de Joyce em um sem-sentido significativo produzido em sua obra final Finnegans Wake.
E foi aqui que Lacan encontrou Joyce. Com o Joyce de depois de Ulisses, que após Finnegans... não deixou mais língua para escrever.
E por isso não haveria mais culpa para ser expressa? Ou este texto seria a forma particular de Joyce elaborar sua culpa?
O que Lacan apontará, tomando a produção joyciana como sintoma, é que há uma falha na estrutura de Joyce que acomete seu parlêtre. Para Lacan seriam as epifanias (nome que Joyce deu a uma série de vivências inefáveis que dominaram um período da sua vida, e que estão na base de seus contos e livros) a prova clínica desta falha na estrutura. Desde já, conta com a presença de enigmas excluindo o sentido, sendo as epifanias enunciações elevadas à potência do real.
Joyce, com Finnegans..., abusa deste sintoma, demonstrando o inconsciente fora do sentido. Sua arte responderá ao desejo de “fazer-se ser um livro”, porém o que fez Joyce ser diferente de Dostoievsky, foi que ele introduziu o gozo da letra na literatura, ultrapassando o sentido como única maneira de remissão da dívida, ao passo que Dostoievsky buscou o sentido como o gozo, moeda com que pagou a sua.
Não que na literatura antes de Joyce não houvesse gozo da letra, mas é só a partir de Joyce que a literatura transgride o sentido como regra da produção do artista. O Outro que faz o texto de Joyce, não é o Outro regulado pela razão e pela significação lógica, é um Outro do corpo do significante, que se regula pela sua materialidade, bem como pelo aluvião de significações, tantas quantas forem possíveis pelos códigos que registram suas possibilidades, todos eles transformados por Joyce em cômicos joguetes polissemânticos.
Daí que Lacan diga, ao justificar o título de seu Seminário dedicado ao estudo do autor, “dou a Joyce, ao formular este título, Joyce o sintoma, nada menos que seu nome próprio”, querendo dizer com isso que o nome de Joyce, graças à sua arte, se transformou no de um inventor em literatura.
Se, seguindo a Lacan, o Supereu pode ser pensado como mandato de gozo, vertente do supereu materno arcaico, em vez da proposta freudiana de pensá-lo como imperativo categórico de proibição, essa leitura lacaniana do Supereu talvez encontre em Joyce sua melhor exemplificação.
Joyce o cemculpas?
A psicanálise ensina que a dívida é fundante da subjetividade, e por isso faz da culpa um universal. E é tentando completar esta falta no Outro que se elaboram respostas, se criam as ilusões, e os recursos literários que permitem nomeá-las.
Diante deste pecado da estrutura, que é o do Outro não ser completo, que a literatura dá nomes ao gozo, para que ilustre a miragem de que o ser pode ser sem falta, porque eles podem ser escritos.
A culpa, sendo este chamado que sinaliza que o Outro deve ser completado, faz da literatura a testemunha mais antiga dos modos de exercer esta ilusão. Joyce é a desilusão do modo de gozo da literatura condicionado unicamente pelo sentido, nome do inferno, segundo suas razões, pois o sentido é um modo de gozo que reduz a potencialidade de outros gozos, produzindo uma limitação da língua e do dizer.
Na opinião de Lacan, a arte de Joyce é o que poderia libertar a literatura do sentido. E por que ele pode fazê-lo?
Se, para Freud a literatura era apenas um tipo de sonho, Finnegans Wake é o despertar do sonho do sentido. Na sua escritura se trata unicamente da matéria da letra, fazendo jogos de palavra que saem fora do terreno do chiste. Joyce escreve de uma maneira que realiza o simbólico, tirando a linguagem do seu campo específico, deixando do sentido apenas um vestígio, sempre como enigma.
E por quê? A explicação que Lacan sugere é que o Eu de Joyce, no caso nomeado explicitamente como Ego, equivalente do registro do Imaginário, não comparece à amarração borromeana. Condição esta que é uma dedução de Lacan a partir do relato da reação de Stephen a uma surra que levou de seus companheiros, no qual Joyce conta que, em vez de sentir raiva, sentiu sua pele cair como se fosse a casca de uma fruta madura.
Daí que a arte de Joyce seria a suplência a esse não-enodamento original, que por comprometer a articulação do Imaginário e do Simbólico, expulsa o sentido.
A arte de Joyce é então o que Lacan chamou de seu sinthome, ou seja, seu gozo condicionando o sentido como sintoma. Daí que sua Obra, mesmo que biográfica, menos vale pelo sentido do que pela letra.
Haveria culpa na letra, ou a culpa serve apenas para o desejo colocar obstáculo ao gozo?
Lacan, no Seminário XVI, “De um Outro ao outro”, redefine a noção freudiana de “mal-estar” como de sendo a renúncia ao gozo. E é esta a função da culpa, e da razão de ela se perpetuar: a culpa goza de si mesma. A culpa implica procurar um sentido que limite a possibilidade do gozo imediato, ou seja, da letra.
O leitor de Joyce, horrorizado pelo gozo que a imediatez da letra pode evocar, busca no sentido uma referência ao Outro que limite seu Gozo. Assim, Joyce, como um psicanalista, fez de seu texto um produtor de sintomas no leitor, fazendo emergir a verdade singular de cada sujeito, seu próprio sintoma. Verdade tanto maior, por ser o sintoma a maneira pela qual cada um goza de seu inconsciente.
BIBLIOGRAFIA
PINHEIRO, 13, “Sentimento de Culpa em Stephen Dedalus: Freud, Lacan”. In Letra Freudiana, ano XII, n. 13. Rio de Janeiro, Dumara, 1993.
SOLLER, C. “El Hijo Necesario”. In Locura- Clinica y Suplencia. Madrid, EOLIA, 1995.
MOREL, G. “Sintoma y Nombre del Padre”. In Diversidade del sintoma. Madrid, EOLIA, 1996.