À moda da psicanálise
Márcio Peter de Souza Leite
(Posfácio do livro "Moda divina decadência”, in Mauro Mendes Dias,
pág. 143-150, Hacker Editores, SP, 1997)



A modernidade impõe novos pontos de vista sobre
questões que, antes dela, foram explicadas através
de idéias às vezes demasiado simplistas ou teorias que
se valiam de recursos exageradamente reducionistas.


Tal é o caso da moda.

Gilles Lipovetsky, em seu livro O império do efêmero, alerta para este fato ao dizer que a moda “deixa impassíveis aqueles que têm a vocação de elucidar as forças e o funcionamento das sociedades modernas”, e acrescenta que “a moda é celebrada no museu, é relegada à antecâmara das preocupações intelectuais reais; está por toda parte na rua, na indústria e na mídia, e quase não aparece no questionamento teórico das camadas pensantes. Esfera ontológica e socialmente inferior, não merece a investigação problemática: questão superficial, desencoraja a abordagem conceitual; a moda suscita o reflexo crítico antes do estudo objetivo, é principalmente para ser fustigada, para marcar sua distância, para deplorar o embotamento dos homens e o vício dos negócios”.

Este livro de Mauro Mendes Dias, Moda divina decadência, é a resposta de um psicanalista ao vazio, apontado por Lipovetsky, que existiria em relação à abordagem da moda como uma das mais importantes produções da cultura.

Lipovetsky aponta em seu livro o fato de que a explicação da moda, como sendo unicamente uma expressão das rivalidades de classes, já não é atualmente satisfatória e então este autor propõe um liffing teórico para tirar a análise da moda desta explicação simplista, o que ele pretendeu realizar através da construção de uma história da moda conceitual, que levasse em conta não a “história cronológica dos estilos e das mundanidades elegantes, mas os grandes momentos, as grandes estruturas, os pontos de inflexão organizacionais, estéticos, socio-lógicos, que determinariam o percurso plurissecular da moda”.

Também é a este desafio da abordagem da moda que o livro de Mauro Mendes Dias responde, porém com outras categorias teóricas, as da psicanálise. Ao abordar a moda enquanto expressão do sujeito, este autor recorreu à opção de não torná-la pela sua face evolutivo-histórica, mas sim de formalizá-la através dos recursos teóricos que o ensino de Lacan oferece, o que lhe permitiu propor que se pense a moda como discurso, e também a teorizou como uma atividade ligada à questão da imagem própria. Mauro Dias lembra que a característica de discurso da moda está ligada à condição do ser, por princípio uma atividade para seres falantes, seres da linguagem. Os animais, por exemplo, não se problematizam quanto à imagem própria pela vestimenta.

Mauro Dias ainda acompanha o pensamento de Lacan quando propõe que a moda é um discurso, e fundamenta a articulação da moda com a psicanálise, pelo fato da moda colocar em funcionamento determinadas posições para o sujeito, o que implicará na visão do autor, em modos diferentes de relação do sujeito com o sentido.

Este recurso usado pelo autor de Moda divina decadência permite pensar a moda como um conjunto de relações estáveis mantidas através da linguagem, havendo ainda uma sugestão do autor de aproximar o discurso que consiste a moda a um discurso sem palavras, ou seja, ao discurso entendido como uma “estrutura necessária”, conforme sugere Lacan no Seminário XVII, O avesso da psicanálise.

Com esta abordagem do fenômeno da moda, Mauro Dias chega até a propor que a moda permitiria recontar, pela roupa, a aventura da constituição humana. Seria também a questão da constituição do sujeito o que o haveria aproximado desta pesquisa e que por isso mesmo tem por eixo a função do sujeito e do tempo. A relação da moda com a psicanálise se daria em função da relação que existe dos dois com o tempo, pois, segundo o autor, moda e tempo encontram-se tão intimamente associados como estão sujeito e tempo para a psicanálise.

Com relação à questão da evolução temporal da moda, nem todos os historiadores acham que ela tenha existido em todas as épocas e em todas as civilizações, mas nenhum nega sua relação fundamental com o tempo e sua função de referencial cronológico.

Por exemplo, Lipovetsky, no livro antes citado, afirma, contra uma pretensa universalidade trans-histórica da moda, que ela seria localizável historicamente, e que ela não seria “consubstancial” à vida humana-social, sendo que somente a partir da idade média teria sido possível reconhecer a ordem própria da moda, ou seja, a moda como sistema.

Outros autores, como Gilda de Mello e Souza, entende que a maior dificuldade para se tratar um “assunto complexo como a moda” seria a escolha do “ponto de vista” para se abordar a questão, mas também não nega seu fundamento temporal.

Para esta autora, se há o ponto de vista do sociólogo, do psicólogo, do esteta, no entanto para todos eles se fez necessário um método. Gilda de Mello e Souza, no seu livro 0 espírito das roupas, afirma que a moda “é um todo harmonioso e mais ou menos indissolúvel, serve à estrutura social, acentuando a divisão em classe, reconcilia o impulso individualizador de cada um de nós e o socializador, exprime idéias e sentimentos, pois é uma linguagem que se traduz em termos artísticos”. Porém cita a G. Tarde em “Les lois de imitation” para lembrar que há uma concordância em situar a moda como se opondo aos costumes, residindo a diferença entre eles na questão temporal, onde os costumes, ao cultuar o passado, impediria o novo, e a moda ao cultuar o presente, proporciona a novidade.

Também houve uma tentativa da explicação da moda pelas suas ligações com a arte, ou mais precisamente com as artes do espaço, feita por Gerald Heard, no seu ensaio: “Narcisus: an anatomy of clothes”. Este autor, neste ensaio, tentou demonstrar a relação entre as formas arquitetônicas de uma determinada época, e as relações que se expressavam através da moda do mesmo período. Estas seriam derivadas do que se denomina em alemão Zeitgeist, espírito da época, e que segundo este autor determina todos os aspectos da vida da pessoa. 0 Zeitgeist, que é uma referência temporal, seria então o que determinaria tanto os costumes como a moda.

Destes entendimentos para o fenômeno da moda, até a conclusão a que chega Lipovetsky no seu livro 0 império do efêmero, de que a moda estaria no comando de sociedades, e de que o efêmero tornou-se o princípio organizador da vida coletiva moderna, não é apenas uma questão de opinião, mas, como bem colocou Gilda de Mello Souza, de método.

Também é de Lipovetsky a afirmação de que viveríamos em sociedades de dominante frívola, último cio da plurissecular aventura capitalista-democrática individualista. Talvez por isto, de acordo com Lipovetsky, eis a ameaça que nos espreita: “Abram então os olhos para a imensa miséria da modernidade: estamos destinados ao aviamento da existência midiática; um totalitarismo de tipo soft instalou-se nas democracias, conseguiu semear ódio pela cultura, generalizar a regressão e a confusão mental”.

Já para o autor de Moda divina decadência, o “homem nasce vestido, vestido por linguagem”, o que quer dizer que a moda vai vestir o sujeito mediante sua condição simbólica. E seria portanto a partir do simbólico, da moda como simbólica, que ela demarcaria uma posição para o ser sexuado. Posição que, para Mauro Dias, seria uma referência ao tempo em que tudo começou, o que implicaria, então, tanto a sexualidade como a moda e a roupa. Ou como diz Mauro Dias, apontando à razão do título de seu livro “... se preferirmos, queda do paraiso, cosimento de folhas de figueira, cintas e túnicas. Nesse sentido a operação da moda é divina, é pura criação. Criação essa que decai em produto, sob a forma de roupa, a ser usada com o semelhante. Nada mais adequado que nomear seu processo como divina decadência.”

As articulações da moda com a moral, com o desejo e com a proibição, se impuseram necessariamente então, para uma investigação orientada analiticamente, e este é o rumo seguido neste livro sobre a divina decadência”.

“Ser causado pela moda como invenção é homólogo a ser causado por desejo”, diz o autor, e daí, segundo ele, se deduziriam as relações da moda com a produção e o mercado, assim como com o fenômeno das griffes e das etiquetas.

Mas dentre as várias possibilidades de articulações que o estudo da moda proporciona, a mais instigante para a psicanálise é a que foi explorada no último capítulo de Moda divina decadência, onde feminino e moda aparecem relacionados. A relação da moda com o feminino começa a ser feita a partir do exame do feminino e sua relação com a nudez, o que para Mauro Dias “situa o feminino enquanto um campo que é suposto não ser vestido inteiramente por linguagem. Daí que a moda possa ser caracterizada como uma atividade que produz a vestimenta simbólica para dar conta da nudez, obtendo, como efeito, uma nova posição do ser”.

Que estas considerações possam ser articuladas com o uso do véu como roupa, recurso secular de masculinização”, se transforma numa tese das mais instigantes e que promove um novo horizonte para o entendimento da moda, revista a partir do seu enriquecimento pelo saber psicanalítico. Do véu, Mauro Dias passa para a máscara, único recurso para falar da falta na linguagem, de dentro da linguagem e completa um percurso, onde através das expressões da moda, se aborda a falta, nesse seu estilo de inscrição.

As conclusões desta investigação psicanalítica pioneira sobre a moda são inúmeras e extremamente fecundas: A moda enquanto uma tentativa de definir “A” mulher. A moda enquanto uma ruptura cronológica, enquanto antecipação. A moda enquanto uma atividade provocada pelas mulheres, que encontra na tentativa de vestir a nudez sua ligação com o masculino. Ou seja, na visão do autor deste Divina decadência na moda, acompanhada pela psicanálise, vem mostrar uma “total irredutibilidade do ser falante em ser vestido por inteiro na sua condição de castrado”.

Cumpre ainda aproveitar esta abertura proporcionada pelo estudo da moda, e estendê-la ao fenômeno moderno do consumo, símbolo da economia frívola, o que Lipovetsky, ainda no mesmo livro já citado, chama de "loucura tecnológica”. Os gadgets.

Para este autor estaríamos mergulhados no excesso dos automatismos, deslumbrados por instrumentos inúteis, que a economia “neokitsch”, consagrada ao desperdício e ao fútil, produziria incessantemente.

Se o gadget pode ser um paradigma do objeto de consumo, retomemos a questão pelo viés proposto por Mauro, para o exame da moda que são os discursos, tal qual Lacan os formalizou no seu ensino, para aí situar o lugar do objeto. Os discursos, segundo Lacan, são modos de tratar o gozo, existindo o modo universitário, o modo do mestre, o modo da histérica e o modo do analista. O objeto, para Lacan, objeto causa do desejo, escrito como objeto a, ou simplesmente a, circula nestas várias posições discursivas.

Porém há uma particularidade dos discursos, que é a sua relatividade. Por isso, além dos quatro discursos propostos por Lacan, ao se modificar a vetorização dos elementos que circulam nos lugares, estrutura que constitui os discursos, é justamente quando a circulação do objeto a está comprometida que se dá, segundo Lacan, as circunstâncias do discurso capitalista.

Para Lacan o discurso capitalista seria ordenado por uma nova referência ao saber. Este saber, que tem sempre seu fundamento no sexual, seria amputado pela ciência, que o devolveria com todas as suas produções com um “Mais de gozo”, através de gadgets que coletivizariam um gozo massivo. Este seria o ideal de gozo do mundo capitalista.

A função da psicanálise seria então interrogar o desenvolvimento deste gozo, e propor uma experiência subjetiva, pela qual se possa separar o sujeito deste gozo.

Em Televisão, Lacan sugeriu que a “mais-valia (referência a Marx) é a causa do desejo na qual uma economia faz princípio”. No Seminário “De um outro ao Outro”, ele já havia aproximado o objeto a, objeto causa do desejo, à “mais-valia” de Marx. Então, para Lacan a extensão ilimitada da falta de gozo se articularia sempre com a captação do “mais-gozar” da mercadoria, relacionando desta forma “mais valia” com “gozo” e “objeto pequeno X. Por isto, ainda em Televisão, Lacan afirmou: “A produção capitalista vê assegurada pela revolução propícia que, permite fazer durar seu puro desejo".

Em 1972, numa conferência realizada em Milão, Lacan sugeriu a escrita de um quinto discurso, o discurso capitalista.

O discurso capitalista se caracteriza pela ausência de um movimento circular, onde o “mais-gozar” não está obstaculizado por nenhuma barreira. Na mesma época, nas conferências do que constitui o que foi publicado com o nome de “O saber do analista”, Lacan, referindo-se a Max Weber, em relação à Ética protestante e o capitalismo, disse: “O deslizamento calvinista que nos últimos séculos introduz o capitalismo se caracteriza por distinguir o discurso capitalista pela recusa da castração”, e mais: “Toda ordem, todo discurso que se entronca no capitalismo deixa de lado a castração”.

O discurso capitalista, segundo Lacan, é derivado do discurso do mestre. Porém, onde antes estava o lugar do significante mestre, S1, no lugar de agente, há uma inversão com o que o suporta, que no caso do discurso do mestre é o sujeito barrado. Isto quer dizer que há uma recusa da verdade do discurso, ao se inverter o vetor que conecta a verdade como lugar do semblante. O sujeito então, no discurso capitalista, colocado como agente opera sobre o significante mestre colocado no lugar da verdade. Aí está a recusada castração, o que constitui o discurso capitalista numa circularidade. Por isto, como disse Lacan no momento em que formulou esta sua proposta de leitura da cultura, na conferência em Milão, “... a crise, não do discurso do mestre, a do discurso capitalista que é o que o substitui, está aberta”.

Mauro ao situar a moda em relação à castração, necessariamente a articula em relação à sua negação e isso aponta a moda como um modelo do que Lacan chamou de “respostas do Real". Fato este que permitiria uma recuperação da alienação do sujeito, o que para Mauro Dias se traduz na constatação de que o sujeito “...só veste a roupa do outro depois de ter sido vestido primeiramente por linguagem”.

Tal seria a importância deste fato, que o autor nos adverte: “Através da moda pode-se inclusive pensar a constituição dos grupos humanos, numa perspectiva diferente da que Freud nos deixou”. Esta perspectiva diferente da de Freud para a constituição dos grupos seria, para Mauro Dias, efeito da conseqüência da alienação do falante, que decorreria no seu caráter simbólico, pelo desdobramento do ideal como identificação ao significante, e no seu caráter imaginário, como alienação vinda da imagem do outro.

A moda então, no seu viés de roupa, de objeto (como gadget), é o que causaria esta ilusão de completude que o sujeito buscaria para seu gozo impossível.

A constituição dos grupos humanos, pensada pelo viés do Ideal, tanto em Freud como em Lacan apontam a uma ética. A moda, pelo seu viés roupa, aponta a um uso social da exploração desta condição do sujeito, visto que a roupa como “mais valia” de gozo se presta ao discurso capitalista, que para Lacan é “O discurso mais astuto que se haja jamais tido” e acrescenta: “destinado a arrebentar. Porque é insustentável. ... ele não poderia correr melhor, mas é justamente que isso caminha assim velozmente para sua consumação, isso se consome, isto se consome, até sua consumação”.

Mas, na mesma conferência, em Milão, Lacan havia dito: “Se houvesse existido um trabalho, um certo trabalho realizado oportunamente na linha de Freud, haveria talvez estado no lugar que ele designa esse suporte fundamental sustentado pelos termos: semblante, verdade, gozo, mais-gozar, haveriam estado ao nível da produção, porque o mais-gozar é aquilo que se produz por efeito de linguagem” e continua, “(Se houvesse existido um trabalho.)... existiria aquilo que implica o discurso analítico: quer dizer um uso melhor do significante como Uno. Talvez existisse, mas já não existirá, porque agora é demasiado tarde...”

O pessimismo de Lacan, neste trecho de sua conferência em Milão, pode ser relativo à psicanálise, como um antídoto não usado em relação ao capitalismo?

De qualquer maneira, mesmo após o triunfo do capitalismo, mas também após Lacan, e por isso mesmo, existe um trabalho realizado na linha de Freud, o que o livro de Mauro Dias, Moda divina decadência, é uma honrosa testemunha. Dentro desta perspectiva seu efeito não será apenas acadêmico, mas será principalmente o de uma importante contribuição a uma ética avisada psicanaliticamente.

 

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