Psicanálise, Sujeito e Psiquiatria
Márcio Peter de Souza Leite
("O (im)Possível diálogo - Psicanálise e Psiquiatria",
in Violante, Maria Lucia (org.), Via Lettera Editora, 2002)
1. Psiquiatria e Sujeito
1.1. Psicanálise e psiquiatria: complementariedade ou oposição?
1.2. Dualismo versus monismo: idealismo versus materialismo?
1.3. Orgonogênese versus psicogênese
2. Psicanálise e Sujeito: desejo
2.1. Psiquiatria, Eu neuronal, Psicanálise e Sujeito
2.2. Sujeito e alucinação
2.3. Sujeito e modernidade
2.4. Afeto e emoção: monismo e materialidade do Sujeito
3. Psicopatologia e Sujeito: estruturas clínicas e depressão
3.1. Psicanálise e diagnóstico psiquiátrico
3.2. Psicanálise, depressão e luto
3.3. Lacan: depressão e dor de existir
4. Responsabilidade e Sujeito: ética e tratamento
4.1. A serotonina e a alma
4.2. Não há clínica sem ética
1. Psiquiatria e Sujeito
1.1. Psicanálise e psiquiatria: complementariedade ou oposição?
Será que atualmente ainda se mantém a afirmação feita por Freud de ser a relação da psicanálise com a psiquiatria a mesma existente entre a histologia e a anatomia?
Esta comparação indica uma complementariedade entre psicanálise e psiquiatria, o que adquiriu novas conotações com Lacan, que vindo de uma formação em psiquiatria, ao confrontá-la com a psicanálise, tomou as principais questões da psiquiatria como chave para o conhecimento psicanalítico. No início de sua obra, ao abordar a psicose paranóica, Lacan pôs em questão o modelo introduzido por de Jaspers na psicopatologia, que com as noções de "processo" e "desenvolvimento", opunha às noções de organogênese e psicogênese como causa dos transtornos mentais, oposição esta que continua como ponto de discórdia numa interlocução entre a psicanálise e a psiquiatria na atualidade.
Através do estudo do crime paranóico, Lacan propôs o conhecimento humano como conhecimento paranóico, isto é, vindo do outro, e com a Teoria do Estádio do Espelho, demonstrou como o Sujeito é constituído pelo Outro. Mesmo combatendo o organicismo, Lacan criticou a noção de "compreensão" e negou uma possível psicogênese para os transtornos mentais. Influenciado pela psiquiatria da época, que procurava um transtorno fundamental para as psicoses, Lacan retomou os fenômenos elementares, conceito introduzido por Kraepelin, utilizado por Jaspers e Clérambault, e pensando-os analiticamente, entendeu-os como fato de linguagem, elevando-os à categoria de paradigma para o entendimento da inserção do Sujeito na ordem simbólica.
No texto: "De nossos antecedentes", Lacan referiu-se a sua trajetória como médico, psiquiatra, para depois desembocar na psicanálise. Lacan reconheceu em Clérambault seu único mestre em psiquiatria, quem: “com seu automatismo mental, com sua ideologia mecanicista de metáfora, por certo bastante criticável, parece-nos, em seus enfoques do texto subjetivo, mais próximo do que se pode construir de uma análise estrutural do que qualquer esforço clínico na psiquiatria francesa" [1].
Reconhecendo a formação kraepeliana de Clérambault, Lacan reconheceu o caminho que o levou a Freud, como o da "fidelidade ao invólucro formal do sintoma" [2], mostrando com isso o lugar da clínica psiquiátrica no seu percurso. Porém, a psiquiatria de hoje não é a mesma à qual Lacan se referiu. A tendência da psiquiatria atual, apropriadamente chamada de "biológica" (ver as razões disso em "Biological Psychiatry", de M.Trimble) [3], caracteriza-se por ter seus fundamentos determinados por contribuições de outras disciplinas científicas, principalmente a neurobiologia. Este novo modelo da psiquiatria critica os anteriores em seus métodos, e os substituiu por critérios estatísticos, excluindo os acontecimentos particulares da vida de um Sujeito na causação dos seus transtornos. Dão suporte a esta posição, entre outros, Damasio, Dennet [4] e Changeux [5], autores que valendo-se dos recentes avanços havidos no conhecimento do cérebro, afirmam que a conduta humana pode ser explicada totalmente em termos biológicos.
Estes autores, ao proporem uma causa neurobiológica para os transtornos mentais, negam a causalidade psíquica em psicopatologia, o que fez com que a psiquiatria atual tenha encontrado nas neurociências seus fundamentos epistemológicos e metodológicos.
O principal argumento dos neurobiologistas, consiste em dizer que o homem não possui nenhum elemento químico em seu corpo que não esteja presente no animal, o que os leva a uma leitura do funcionamento do cérebro fundada numa explicação genética, evolucionista, e materialista.
Produziu-se também uma biologia das paixões, onde o funcionamento hormonal, oposto ao neuronal, fez considerar-se o cérebro como uma glândula neuro-endócrina.
Como consequência, diminuiu a influência da psiquiatria clássica, e os "DSM" [6] e os "CID" [7], nas suas várias versões, passaram a ser os únicos codificadores de uma nova e uniforme concepção do diagnóstico psiquiátrico, caracterizado por estar orientado pelos efeitos dos psicofármacos.
Nascida da psiquiatria universitária norte-americana, conhecida como Escola de St. Louis , essa clínica tem por base a resposta padrão à administração de uma substância química. Este procedimento, denominado critério operacional, quis preencher a ausência de signos patognomônicos e de exames de laboratório em psiquiatria. Epistemologicamente, esta maneira de pensar foi conseqüência da revolução lógica dos anos 30, que pretendia fundar uma ciência da mente, através do formalismo lógico-matemático aplicado às ciências do cérebro. Esta nova ciência atribuida a N.Wiener e W. Mculloch, propõe mecanizar o humano, e ao aproximar a mente a uma máquina lógica, pretende produzir uma filosofia da mente.
No entanto, a esta psiquiatria que vê o cérebro como uma máquina manipulável quimicamente, confronta-se a experiência da psicanálise. Por exemplo Green, em "Neurobiologia e psicanálise", aponta um impasse na neurobiologia pelo fato dela não poder fornecer uma teoria do Sujeito produtor de ciência.
M. L. Violante, no "Estudo sobre a interface psicanalítica/psiquiátrica dos transtornos do humor" [8], situa a diferença da psiquiatria com a psicanálise, no fato da psiquiatria não considerar "que o sujeito não se reduz ao seu organismo e a seu bem-estar orgânico" [9] e enfatizando a diferença entre a psiquiatria de orientação biológica e a psicanálise: "Se, para a psiquiatria, a causação desses sintomas encontra-se nos neurotransmisssores e se, para a psicanálise encontra-se na constituição psíquica do sujeito – da qual não se exclui o seu corpo e inclusive, seu cérebro – vamos ver que terapêutica é mais eficaz e se são excludentes ou não: a medicamentosa ou a psicanalítica" [10].
Pode-se colocar na concepção e uso da noção de "Sujeito", a causa da dificuldade na relação entre psicanálise e psiquiatria, pois a psicanálise demonstra a existência de um Sujeito que não pode ser reduzido ao funcionamento cerebral, mesmo que o cérebro seja entendido como uma "máquina semântica" como faz Denett, ou "máquina intencional" como é o cérebro para Changeux, ou mesmo fazendo-se referência a um "Eu neuronal" como propõe Damásio.
1.2. Dualismo versus monismo: idealismo versus materialismo?
M. Bunge [11] no livro "O problema mente-cérebro", sugere que as posições frente ao relacionamento mente-cérebro podem ser divididas em dois grupos: para um primeiro a mente é uma entidade imaterial na qual se dão todos os processos mentais, havendo defensores da autonomia da mente que negam a realidade dos corpos e caracterizam uma posição chamada de monismo espiritualista. Porém, atualmente, mesmo os que reconhecem um estado separado para a mente, reconhecem a existência do corpo junto a ela, e são denominados dualistas psicofísicos. Dentre eles Bunge aponta: paralelismo psicofísico, epifenomenismo, animismo, e interacionismo. No outro grupo estão os que sustentam que a atividade psíquica é uma função corporal, e são os chamados monistas psicofísicos: fenomenismo, monismo neutral, materialismo eliminativo, monismo fisicalista e materialismo emergentista. Para Bunge, Freud está incluído na categoria do dualismo tipo paralelismo psicofísico, que aponta o cérebro e o psíquico como sincrônicos. Dentro de uma visão que equipara todas as psicoterapias como consequência do modelo cartesiano por pretenderem atuar em um Sujeito, logo inscritas em um dualismo, Damásio, neurobiologista que defende a idéia da conduta humana determinada unicamente pela atividade neuronal , no seu livro "O erro de Descartes" [12], afirma que a noção de Sujeito decorre de um erro filosófico. Para Damásio, Descartes ao introduzir o "Penso logo existo", necessitou fundamentar a existência de duas substâncias diferentes, a res extensa, que seria o corpo, e a res cogitans, o pensamento, divisão que constituiu uma base dualista dominante no pensamento psicológico ocidental.
Damásio situa o "erro" de Descartes na divisão entre “psico” e “soma”, e a moderna neurobiologia, "monista" por vocação, corrigiria este erro. Diz Damásio: "o Cogito ergo sum, considerado literalmente, ilustra exatamente o oposto daquilo que creio ser verdade acerca das origens da mente e da relação da mente e o corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos do existir" [13]. A solução que Damásio propõe ao criticar uma " mente desencarnada " sugerida por Descartes, é a de um retorno a um monismo, como se deduz da proposta de que a "mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico..." [14]
No entanto Freud, ao situar a relação da mente com o corpo, entendeu claramente esta relação dentro de um ponto de vista "monista", como mostra P. L. Assoun no livro "Introdução a epistemologia freudiana" [15]. Diz Assoun: "Na epistemologia freudiana, não há lugar para um dualismo, é pouco dizer que para Freud a psicanálise é uma Naturwissenschaft: na realidade não há ciência senão da natureza. Portanto vamos encontrar na base da epistemologia freudiana um monismo caracterizado e radical" [16].
A posição de Freud decorria de uma recusa ao paralelismo psico-físico tal qual proposto por Haeckel, cujo fundamento dualista era visto como traição à fundamentação da psicanálise nas ciências da natureza. Foi dentro desta postura científica que Freud abordou os sintomas histéricos, relacionando-os à experiências traumáticas, e não à lesões somáticas, o que contrariava a psiquiatria da época, que considerava que a causa da histeria seria uma alteração orgânica, consequência de uma "degeneração nervosa". Freud, para explicar os sintomas neuróticos dentro das ciências da natureza, fez uso de um modelo neurofisiológico organizado em torno dos conceitos de estrutura e função. Um exemplo simples de estrutura do sistema nervoso é o arco reflexo, cuja função é a de responder a um estímulo. No "Projeto para uma psicologia científica", Freud, tentou a compreensão do funcionamento mental fundamentado na existência de tipos diferentes de neurônios, que com suas vias de condução, barreiras de contato, mecanismos de facilitação e critérios de energia livre e vinculada, explicariam a causa dos sintomas. O modelo neurofisiológico deu lugar ao "aparelho psíquico", que explicaria a causação dos sintomas histéricos, já que eles não correspondiam a uma lesão no sistema nervoso, e sim à sua representação psíquica. Em continuidade, Freud propôs o conceito de desamparo, que corresponde ao fato do bebê depender de um outro para a sua subsistência por um longo período de tempo, como conformador da dependência do Sujeito a um outro, caracterizando o desejo do sujeito.
Esta observação feita por Freud, teria sido confirmada do ponto de vista neurológico, com o que se chamou de "epigênese", que é o fato de, durante o desenvolvimento do cérebro antes do nascimento, haver uma proliferação dos neurônios e das sinapses, seguindo-se uma regressão e morte de grande parte destes neurônios. Observa-se ainda, depois do nascimento, o "fenômeno de redundância difusa", momento em que os neurônios que restam ramificam-se, e enviam um número exagerado de prolongamentos ligando-se a outros neurônios com mais de uma ramificação. Após o nascimento, seguindo-se a essa fase de "redundância sináptica", ocorre uma etapa de regressão das ramificações axiônicas e dendríticas, estimuladas pelo contato com o meio ambiente.
A demonstração deste fato foi feita por G. Edelman, quem com a sua "teoria das categorizações", se refere à utilização dos circuitos neuronais em conseqüência da satisfação de necessidades ligadas à preservação da vida, o que introduz a constatação de que as experiências vividas pelo ser humano intervém ativamente na modelação do tecido cerebral. Ou seja, a investigação neurobiológica confirmaria a observação freudiana do desamparo, formalizando-o pelo processo de " epigênese das redes de neurônios” , e pela “Teoria da categorizações" de Edelman.
Segundo A. Green a teoria proposta por Edelman, "é uma grande mutação na reflexão biológica”, pois o conceito de auto-categorizações seria "indicativo de um tipo de organização não proveniente do exterior, sendo um tipo de organização que se faz no seio da própria pessoa segundo processos em que há algo como um tipo de regulação interna, feita por qualquer coisa que não pode chamar sujeito ou Eu".
Dentro da mesma linha de raciocínio, C. Persio, em uma reportagem publicada na revista "Palavra", ano I, número 6, com o título "A grandeza da simplicidade", referindo-se ao artigo "Divisão e suicídio celular podem ser a chave do câncer", de autoria de P. Brown, da revista inglesa "New Scientist", pretende que o conceito de apoptose celular, ou suicídio celular, que é o fato de que células normais, recebendo concomitantemente um comando para se multiplicarem e um comando para morrerem, podem se inclinar para este último, seria a demonstração biológica da tese freudiana da pulsão de morte. Diz Persio: "Fazendo um cotejamento entre os dois achados, um do campo psicanalítico e o outro do campo biológico, pretende-se sensibilizar particularmente os profissionais das áreas da psiquiatria e da psicanálise, mormente aqueles de formação médica, por duas grandes motivações. Primeiramente ressaltar a importância da complexa tese freudiana, datada de 1920, ter sido, em sua essência, comprovada por pesquisa biológica de ponta, em 1994. Além disso, pelo fato de até a data do presente artigo não se ter lido, ouvido e visto a conexão acima apontada, conclui-se pela necessidade de publicá-la, como prova do desquite existente entre os campos psiquiátricos e psicanalíticos e entre a biogenética e a psicogenética".
No entanto, muito antes destas descobertas serem feitas pela neurobiologia, Lacan com a Teoria do estádio do espelho , apontou as consequências para a constituição do psíquico que seriam devidas à condição neurológica própria ao ser humano, chamada de neotenia , ou heterocronia, ou fetalização, ou ainda síndrome de Bolk, e que se refere à prematuração especifica do bebê, que ao nascer, por não ter a bainha dos neurônios do córtex cerebral mielinizadas, não tem a possibilidade de ter coordenação motora. Para Lacan, o fato do bebê não poder ter uma unidade corporal mostraria a impossibilidade de existir um Eu fundado pelas funções biológicas. Porém, Lacan retirou de Wallon a evidência de que antes que a coordenação motora seja neurologicamente possível, a criança já se reconhece no espelho, o que demonstraria a existência de um Eu, entendido como corpo unificado. Por isso, o Estádio do Espelho mostra que há uma antecipação das funções psicológicas em relação às biológicas, o que contraria a hipótese da existência de um Eu sustentado somente por atividades cerebrais.
Com isso, Lacan, assim como Freud, demonstrou a existência de um corpo que não se reduz ao orgânico, e formalizou, com a Teoria do Estádio do Espelho, o que Freud havia antes chamado de corpo erógeno. Desta maneira, tanto Lacan como Freud, discordam de Descartes, na medida que introduzem a idéia de que o pensamento está encarnado em um corpo. Para a psicanálise há um corpo que não se reduz ao organismo, chamado de corpo narcísico, que é um corpo de gozo, como ensinam os sintomas conversivos da histeria, ou os fenômenos psicossomáticos. Em 1936 Lacan teorizou o Eu como efeito da captação imaginária do corpo. O Estádio do Espelho situava o corpo em relação ao psíquico, colocando a identificação à gestalt do corpo do outro como conformadora da função do Eu.
Posteriormente, em 1953, com a introdução da Ordem Simbólica na Teorização da Psicanálise, Lacan reformulou o lugar do corpo em relação ao psíquico através de uma experiência usada em óptica física, conhecida como Experiência de Bouasse, que é a demonstração de que um vaso invertido, onde há flores colocadas fora dele, frente a um espelho côncavo, dependendo do lugar do observador, produz uma ilusão, devida ao espelho côncavo, de se ver o vaso com as flores dentro.
Lacan, modificou a Experiência de Bouasse acrescentando um espelho plano, e seguiu a sugestão de Freud que indicou o interesse dos modelos para a psicanálise, marcadamente os ópticos, usados para descartar a noção de localização anatômica e ficar no terreno do psicológico. O olho, no modelo usado por Lacan, é simbolo do Sujeito, e quer dizer que na relação do Imaginário com o Real, tudo depende da situação do Sujeito, posto que esta situação está essencialmente caracterizada por seu lugar no mundo Simbólico, que é o da palavra, o que faz do espelho plano o Outro (A). O corpo (C) em tanto real, é como o vaso de flores refletido no espelho, quer dizer, ele é inacessível ao olhar, e o Sujeito (determinado pela ordem simbólica) nunca terá mais que uma apreensão imaginária do corpo. O lugar do corpo foi retomado por Lacan ainda mais uma vez a partir da noção de gozo, noção que articula o significante com o corpo. Daí as últimas elaborações de Lacan se referirem aos tipos diferentes de gozo decorrentes da interrelação dos registros entre si, ou seja, às maneiras diferentes do significante marcar o corpo, mantendo-se Lacan sempre contrário à existência de um continuismo psico-físico, impossibilitando a articulação das descobertas da psicanálise com a neurobologia.
1.3. Orgonogênese versus psicogênese
Um dos efeitos do dualismo na medicina, foi a divisão da causação dos transtornos mentais em causas orgânicas e psíquicas. Estas duas possibilidades foram apresentadas como complementares, ou opostas. A hipótese de uma causação orgânica para os transtornos mentais, chamada de organogênese, na psiquiatria alemã da época de Freud, foi sugerida por Kraepelin como oposta e excludente a uma causação psíquica para estes transtornos, que foi chamada de psicogênese . Esta dicotomia foi retomada por K. Jaspers com as noções de processo e desenvolvimento. Em Jaspers o conceito de processo psíquico se opõe diretamente ao conceito de desenvolvimento da personalidade, que diferente da noção de processo, poderia ser expresso sempre através das relações de compreensão.
Segundo Lacan a noção de compreensão é um móbil da qual Jaspers fez o pivô de toda sua psicopatologia - (Lacan, Sem. III, pg 15): "A compreensão só é evocada como uma relação sempre no limite. Desde que dela nos aproximamos, ela é a rigor, inapreensível. Acaba-se por conceber que a psicogênese se identifica com a reintrodução, relativamente ao objeto psiquiátrico, dessa famosa relação" [17].
Criticando a noção de compreensão, conseqüentemente a noção de psicogênese, Lacan, colocando-se também numa posição monista, assim como Freud, afirmou: "Há muito tempo que eu não fazia diferença entre a psicologia e a fisiologia” (Lacan, Sem. III, pg. 24). Como conseqüência, para Lacan, "o segredo da psicanálise é que não há psicogênes" (Lacan, Sem. III, pg. 16), e aponta que seria um erro confundir sentido e compreensão. Para Lacan não há nem psicogênese nem organogênese, há uma causação do sujeito, que se dá a partir da atualização de marcas materiais (letra enquanto suporte material do significante) que condicionam a articulação significante, através da qual o sujeito busca sua satisfação. Porém, atualmente não basta dizer que a psicanálise é monista , pois existem vários tipos diferentes de monismo como aponta Searles [18], ao indicar o Behaviorismo lógico, a Teoria da identidade tipo, a Teoria da identidade ocorrência, o Funcionalismo caixa-preta, a IA forte (funcionalismo máquima de Turing), o Materialismo eliminativo e a Naturalização da intencionalidade. A psiquiatria, ao se referir à neurobiologia, se sustenta num monismo fisicalista , que pode ser entendido como a expressão moderna do materialismo. Andrè Comte-Sponville no livro "La sagesse des Modernes: Dix questions pour notre temps", perguntando-se sobre o que é o materialismo, dá dois sentidos a ele: o trivial e o filosófico. "No sentido filosófico o materialismo seria uma ontologia, uma teoria do ser, ou uma concepção do mundo”. Segundo Comte-Sponville, o materialismo “é a doutrina em que só há seres materiais: O materialismo seria um monismo fisico. Em tais condições, o materialismo se define sobretudo pelo que exclui: ser materialista é pensar que não existe um Deus trascendente nem alma material... E este ponto é onde se encontram o materialismo contemporâneo e a biologia, e especialmente a neurobiologia. Ser materialista, para os modernos, é em primeiro lugar reconhecer que é o cérebro o que pensa, e extrair as consequências " [19].
Cabe acrescentar a crítica que este filósofo faz a este monismo físico, apontando que este materialismo é um fisicismo, e por isto seria indiscernível de um naturalismo, ou um fisicismo ontológico. A questão portanto não estaria em acusar a psicanálise de dualista, como sugerem os representantes da neurobiologia, pois a psicanálise também é monista. A questão estaria em contrapor o monismo próprio à psicanálise ao monismo da psiquiatria estabelecido desde os parâmetros de um monismo fisicalista. Diferenciando-se as formulações de monismo que ambas sustentam, deve-se refletir-se ainda sobre as conseqüências disto na clínica, assim como deve-se formalizar a causa material de um Sujeito sustentado num monismo não fisicalista. Outra questão, é a que introduz a noção de Eu, que tanto na psicanálise como na psiquiatria refere-se à necessidade de nomear-se um lugar centralizador para as decisões que determinam as condutas de um Sujeito. Este Eu, que na visão da psiquiatria, seria o "Homem neuronal" de J.P. Changeux, ou segundo A. Damásio, seria um "Eu neuronal", ambos dependendo unicamente do funcionamento cerebral, na psicanálise foi formalizado, tanto por Freud como por Lacan, a partir do conceito de Narcisismo, e aponta a um corpo libidinal diferente do organismo.
2. Psicanálise e Sujeito: desejo
2.1. Psiquiatria, Eu neuronal, Psicanálise e Sujeito
R. Mezan no artigo "Paradigmas e modelos da psicanálise atual" [20], cita R. Bernardi que propõe a existência de três paradigmas na psicanálise contemporânea: o freudiano caracterizado pelo paradigma pulsional, o kleiniano caracterizado pelo paradigma objetal, e o lacaniano caracterizado pelo paradigma do Sujeito. Poderia sugerir-se para a psiquiatria biológica, o paradigma do "Eu neuronal", proposto por Damásio. Para articular as diferenças entre a psicanálise, definida pelo paradigma do Sujeito, e a psiquiatria, definida pelo paradigma do "Eu neuronal", farei referência à formalização do Eu feita por Lacan, e a diferenciação feita por ele entre Eu e Sujeito.
No "Dicionário Aurélio" o termo Sujeito aparece definido como: ser individual, real, que se considera como tendo qualidades ou praticado ações. No "Dicionário de filosofia de Oxford", Sujeito aparece como sinônimo de Eu. No "Vocabulário técnico e crítico de filosofia" de A. Lalande, Sujeito aparece definido desde a lógica, a metafísica, a psicologia, a sociologia, o direito e a filosofia. O uso do termo Sujeito varia também dentro da filosofia. Para Heidegger, Sujeito é uma categoria da filosofia que se deve desconstruir. Para Marx a história é um processo sem Sujeito, portanto Sujeito seria uma categoria da ideologia. A fenomenologia por sua vez identifica o Sujeito à consciência. Pensado desde a psicanálise, constata-se que Freud não utilizou o termo Sujeito, mas não foi alheio à questão, e a abordou com outra terminologia, podendo-se dizer que Freud usou o termo Das Ich para se referir ao Sujeito da experiência. Segundo L. Boyer, o Sujeito em Melanie Klein pode equivaler aos modos de atribuir significado à experiência (as posições) [21].
Em Lacan o termo Sujeito está presente desde seus primeiros escritos, e seu uso parece equivaler a ser humano. Depois Lacan diferencia o Sujeito da lógica do Sujeito gramatical, assim como esses Sujeitos do definido por ser oposto ao objeto. Lacan também diferencia o Sujeito noético, gramatical, do Sujeito anônimo e ambos do Sujeito cuja singularidade se define por um ato de afirmação. É a este Sujeito, entendido como o que se define por um ato de afirmação, que Lacan diferencia do Eu. O Eu é entendido como a sensação de um corpo unificado, e na Teoria do Estádio do espelho, encontra-se produzido desde o a imagem do outro. Lacan no Sem. III, pg.23, diz: ”Aristóteles observava que não convém dizer que o homem pensa, mas que ele pensa com sua alma. Da mesma maneira, eu digo que o Sujeito se fala com o seu Eu” [22].
Em diferença do Eu, que para Lacan é construído desde a imagem do outro, o Sujeito decorre do Outro, que é referência à linguagem enquanto efeito da ordem simbólica. Por isso o Sujeito é conseqüência do significante, e está regido pelas leis do simbólico. Para Lacan, portanto, a causa do Sujeito é a estrutura do significante. Para Lacan o Sujeito não é uma sensação consciente, uma ilusão produzida pelo Eu, senão que é insconsciente, e por isso não é o agente da fala, suporte da estrutura, mas descentrado, acéfalo, dividido, evanescente. O Sujeito na psicanálise é explicitamente diferente da consciência, portanto é um Sujeito não fenomenológico, não é uma categoria normativa, ele é uma categoria clinica, e não remete a uma totalidade.
2.2. Sujeito e alucinação
Lacan referiu-se à clinica das alucinações como um lugar privilegiado para demonstrar a função do Sujeito. As alucinações receberam seu nome e definição de Esquirol, um aluno de Pinel. Definida como "percepção sem objeto", sua sistematização além de organizar semanticamente uma série de fenômenos antes nomeados diferentemente, também implicou numa concepção do psíquico. As alucinações, na concepção psiquiátrica, seriam alteracões da adequação entre um objeto e sua percepção. Estas alterações seriam tantas quanto os orgãos dos sentidos: auditivas, tácteis, visuais, cinestésicas, gustativas. Uma primeira incidência importante foi feita neste campo por Baillerger, que ampliou a semiologia anterior das alucinações, acrescentando às descritas por Esquirol, a observação de fenômenos aos quais chamou de alucinações psíquicas (posteriormente chamadas de pseudo-alucinações por Kandisky, ou alucinações aperceptivas por Kahlbaun). Com isto Baillerger ampliou a questão das alucinações, antes entendidas somente como alterações exclusivas da sensopercepção, para defini-las pelo caráter involuntário destas vivências, mudando assim o eixo onde elas estavam centradas, que era o de erro de percepção, para defini-las a partir da carcterística de ser uma vivência estranha à personalidade de quem a refere. A principal consequência desta diferenciação foi a progressiva inclusão de fenômenos de linguagem no campo das alucinações. Um terceiro momento na constituição deste campo foi feita por Sèglas em 1892, "uma pequena revolução" segundo Lacan, e que consistiu na descrição das alucinações motrizes-verbais. Esta alucinação caracteriza-se por uma pessoa referir-se a uma fala enunciada por ele, como sendo de um outro, o que mostraria segundo Lacan, de modo privilegiado, a questão do Sujeito, pois este fenômeno introduz a pergunta sobre o sujeito da alucinação. No dizer de Lacan a alucinação motriz-verbal trouxe à tona a constatação de que "na palavra humana o emisssor é sempre, e ao mesmo tempo, receptor, já que escuta o som das suas próprias palavras" [23].
Poderiamos acentuar o lugar do Sujeito, como o lugar de quem escuta. As alucinações também fazem referência a uma outra categoria da psiquiatria clássica, que são os fenômenos elementares. Por acasião da sua tese, "Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade", Lacan encontrou-se com a principal corrente doutrinária da psiquiatria da época, que era a tendência de isolar transtornos elementares das psicoses seguindo a hipótese de uma lesão originária, conhecida como “fato primordial”, Grundstorung. O fenômeno elementar é um fenômeno primário, sem causa exterior, e os fatores que determinam as psicoses seriam expressos por eles, estando sempre no começo de seu desencadeamento. Esta categoria clínica inicialmente introduzida por Kraepelin e retomada por Jaspers, foi assimilada por Lacan ao automatismo mental de Clérambault. Os fenômenos elementares equivalem aos “sintomas de primeira ordem” de Kurt Scnheider e estão presentes no DSM como parâmetros para o diagnóstico da esquizofrenia. Lacan ao reconhecer os fenômenos elementares como fenômenos de linguagem, articulou "fenômeno" e "estrutura" e transformou os fenômenos elementares em paradigma da psicose. Como a alucinação, todos os fenômenos elementares apontam de uma maneira privilegiada à questão do Sujeito na psicose, tirando, pelo menos as paranóias, da esfera dos distúrbios orgânicos.
2.3. Sujeito e modernidade
Uma tentativa de articular a historicidade da noção de Sujeito foi feita por Drawin [24], que se refere a figuras ideo-históricas da subjetividade, apontando, a partir do paradigma cosmocêntrico a figura de um Sujeito noético, contraposto a um paradigma antropocêntico, que teria como representante a figura do Sujeito epistêmico-reflexivo, que é a solução do racionalismo cartesiano. Ainda se poderia falar na contribuição kantiana com a introdução do Sujeito autonômico-transcendental, etc.
Do ponto de vista histórico, o Sujeito evidenciado pela psicanálise, segundo Lacan, é o Sujeito da ciência. Para Lacan existiu uma mudança decisiva que fundou a ciência moderna. Moderna no sentido de não se inscrever em continuidade com os saberes que a precederam. Para Lacan, a emergência da ciência moderna deveu-se a uma modificação da posição do Sujeito que seria conseqüência da sua relação com o saber. Este acontecimento seria datado a partir do Cogito Cartesiano, o que teria produzido uma separação radical entre Sujeito e saber. O Sujeito, visto pela psicanálise, tem portanto uma historicidade, chegando Lacan a usar a expressão "um certo momento do Sujeito", ou "momento historicamente inaugural do Sujeito", referindo-se também a um "Sujeito novo", ou a uma "modernidade do Sujeito". Ou seja, o Sujeito moderno seria o Sujeito decorrente do desprendimento do Sujeito da ciência, o que ocorreu como efeito da operação do Cogito. A partir daí a ciência passou a ser um saber novo que recusa o Sujeito. A ciência moderna seria uma modalidade de saber liberada do vínculo com qualquer subjetividade, seria uma ideologia da supressão do Sujeito. Para Lacan a psicanálise está em correlação com este momento da ciência, sendo o Sujeito da ciência a condição para a existência do discurso analitico. Para a psicanálise o Sujeito não é uma substância, não é uma res cogitans como diz Descartes. O Sujeito para a psicanálise não é a consciência, não é a experiência, não é a fonte do sentido, ele está constituido por uma verdade.
2.4. Afeto e emoção: monismo e materialidade do Sujeito
Na leitura de Lacan, o Sujeito decorre do significante. Por outro lado, o significante articula-se ao corpo pelo gozo. Portanto, o gozo supõe um corpo que o suporta. A articulação entre corpo e psíquico foi proposta por Lacan, abandonando as categorias do dualismo cartesiano de substância pensante e material, com o que ele chamou de substância gozante (substância usada aqui na referência de Aristóteles a Ousia). O Sujeito em contrapartida é um upokeimenon, ele é pura suposição significante e não é substancial. Lacan não foi positivista, mas materialista, no sentido da referência material da Idade Média, que atualmente se chama de formal. O ponto que une esta posições é a efetividade. Daí Lacan ler o uso que Freud faz da noção de “marcas”, não com “engrama”, mas como corte, e é isto que Lacan chamou de moterialisme [25], que é um neologismo que condensa mot, palavra em francês, com materialisme. Ou seja a psicanálise usando a palavra, o significante, atinge o corpo, pela via do gozo. Por isto Lacan, ao tratar a teoria dos afetos em Freud, não recorreu à psicofisiologia.
O afeto para Lacan pertence ao Sujeito, e implica em que o Sujeito está afetado em suas relações com o Outro. A orientação lacaniana implica portanto distinguir as emoções, que são de registro animal, vital, dos afetos, que petencem ao Sujeito. Para Lacan a angústia é um afeto não uma emoção, e para se compreender a teoria dos afetos é necessário passar-se da psicofisiologia à ética. É no Sujeito causado pelo significante, que marca o corpo pelo gozo, e não no Eu, que a psicanálise atua. Daí Lacan ter afirmado: "Somos sempre responsáveis da nossa posição de Sujeito. Que isto se chame, onde quiserem, terrorismo..." [26]. Afirmação que aproxima a clínica analitica da ética e a afasta da psicofisiologia.
3. Psicopatologia e Sujeito: estruturas clínicas e depressão
3.1. Psicanálise e diagnóstico psiquiátrico
Lacan lembra que embora exista uma clínica psicanalitica, ela a tomou da psiquiatria. Esta clínica anterior ao discurso analítico é a de Kraepelin, de Clerambault, de Sèglas, de Bleuler e de outros. Lacan propunha que o discurso analítico pudesse esclarecer a clínica psiquiátrica, que a psicanálise pudesse produzir uma clínica nova e pudesse transmiti-la como científica, não dependendo mais da psiquiatria. A especificidade da clínica psicanalítica se deveria ao fato da psicanálise não privilegiar o sintoma para fazer o diagnóstico, mas privilegiar a fantasia que determina este sintoma. Ou seja a psicanálise deslocou uma clínica centrada nas formas do sintoma, como faz a psiquiatria, para uma outra, onde se privilegia as modalidades da posição do Sujeito na fantasia. Lacan, tomando em consideração a relação da clínica psicanalítica com a psiquiátrica, afirmou "que os tipos clínicos resultem da estrutura, eis o que já se pode escrever, ainda que não sem hesitação. Só há certeza e só é transmissível para o discurso histérico" e incluindo o uso que a psicanálise faz da noção de Sujeito, também afirmou que "os Sujeitos de um tipo são portanto sem utilidade para os outros do mesmo tipo. É concebivel que um obsessivo não possa dar o menor sentido ao discurso de outro obsessivo".
Ou seja, a clínica psicanalítica é a clínica do particular, porém um tipo de sintoma, por se referir a uma convenção que o identifica e classifica, faz referência a uma nomenclatura (que é o conjunto de termos particulares a uma ciência), a uma nosologia (que é o estudo das doenças), e a uma nosografia (que é a descrição delas). Freud, embora mantendo a referência à nosografia da psiquiatria da sua época, fundou sua própria clinica. E ele o fez através de uma ordenação de uma nosografia e nosologia própria à psicanálise, constituindo uma ruptura com a psiquiatria da época, conseguindo ao mesmo tempo mantê-la e subvertê-la. Exemplo disto foi a invenção feita por Freud de categorias diagnósticas inexistentes na clínica psiquiátrica de seu tempo, como foi por exemplo a introdução do termo neurose de angústia, ou o de neurose atual, assim como foi subversivo para a época a proposta de ordenar as neuroses entre si, como efeito da uma defesa frente a angústia.
Ainda se poderia apontar como inovações introduzidas por Freud a neurose de transferência, a neurose narcísica etc, sendo que a nosografia e a nosologia freudianas marcariam a psiquiatria até o recente advento do DSM. A psicanálise não mudou, nem poderia mudar as categorias descritivas da psiquiatria clássica, porém avançou, tentando construir as estruturas que condicionariam os diversos sintomas. Para o psicanalista, o que revelaria a estrutura do Sujeito, seria a defesa frente à angústia, fazendo com que a divisão diagnóstica entre neurose, psicose e perversão seja feita a partir do tipo de defesa, que cada uma destas estruturas produz. Ou seja, frente ao sintoma que o Sujeito apresenta, deve-se acrescentar a posição que ele assume frente ao seu sintoma, o que é feito a partir do seu dizer e não dos seus ditos. Assim por exemplo, para diagnosticar uma estrutura perversa, não basta ao analista perguntar ao paciente sobre sua vida sexual, pois o que define o disgnóstico em psicanálise não é a conduta, mas a posição do Sujeito frente o sintoma.
3.2. Psicanálise, depressão e luto
A depressão como diagnóstico, mesmo dentro da psiquiatria, conota diversos sentidos conforme o uso que se faz deste termo. Desde um ponto de vista ligado à psiquiatria fenomenológica, a depressão é concebida como lentificacao dos processos psíquicos e um estreitamento do campo da consciência. O DSM-IV entende a depressão como uma reunião de sintomas existentes durante um certo período de tempo, sem no entanto privilegiar nenhum destes sintomas, nem interrelacioná-los. A diferença de posição entre estas duas maneiras de significar a depressão, consistiria em que, ao se referir ao critério de funcionamento psíquico, como no caso da "lentificação psiquica", está-se apontando a um distúrbio central, ordenador das demais manifestações tidas como características da síndrome depressiva. O simples agrupamento dos sintomas, sem interrelacioná-los, como faz o DSM-IV, responderia a um único critério comum a eles, que seria sua resposta à administração de uma determinada substância quimica (imipramina). Na psicanálise, Freud, o primeiro a abordar a depressão, tomou da psiquiatria de seu tempo a ordenação de um conjunto de fenômenos, que seriam a tristeza, o desinteresse sexual, a desmotivação, as auto-acusações, as idéias de morte, e como fez com os sintomas das neuroses, articulou-os entre si, procurando uma relação causal entre eles. Para isso Freud recorreu ao paralelo clínico da depressão com o luto, pois nesta situaçào o Sujeito apresentaria expressões semelhantes aos sintomas que Freud configurava como os da depressão. Desde 1892 Freud utilizou a palavra depressão para descrever uma constelação sintomática, a que ele chamou depressão periódica branda: "a depressão periodica branda é uma forma de neurose de angústia que, fora desta se manifesta em fobias e ataques de angustia" [29].
Em 1893 Freud já diferenciava a depressão da melancolia e afirmava: "essa depressão em contraste com a melancolia propriamente dita, quase sempre tem ligação aparentemente racional com o trauma psíquico. Este porém, é apenas uma causa provocadora. Ademais, a depressão periódica branda ocorre sem anestesia psiquica, que é caracteristica da melancolia" [30].
Em 1917, no texto definitivo sobre a questão, Luto e melancolia, Freud definiu a melancolia como um desânimo profundamente penoso, a cessação do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminacao, culminando numa expectativa delirante de auto-punição. Para Freud a pergunta fundamental quanto a depressão passou a ser sobre a causa da dor psiquica. A resposta seria que ela seria causada por uma perda de objeto, real ou imaginária. Freud tentou encontrar a essência da melancolia a partir da comparação com o luto como seu equivalente natural, porém diferenciados pelo fato de que no luto não haveria perda da auto-estima. Ou seja na melancolia não seria o mundo que estaria empobrecido, mas sim o próprio Eu. Isto levou Freud a propor uma explicação teórica da depressão pensada em torno da perda do amor próprio, o que fez com que Freud a articulasse aos ideais do Sujeito, mais precisamente ao Ideal do Eu, o que ele viria a fazer a partir da segunda tópica, com a noção de super-Eu, e da angústia aí localizada: a culpa.
Uma vez reformulada a questão da angústia, em 1925, num apêndice ao texto "Inibição sintoma e angústia", que aparece com o título de Angústia, Dor e tristeza, Freud concluiu que a dor seria a reação à perda de objeto, e a angústia seria a reação ante o perigo que acasiona a perda de objeto.
3.3. Lacan: depressão e dor de existir
Lacan também abordou a depressão desde o início de seu ensino. Já em 1938 no texto "Complexos familiares", referiu-se à psicose maníaco-depressiva como um transtorno do narcisismo, na medida que ela viria remediar a insuficiência da vitalidade humana. Em 1946 a depressão foi posta numa referência direta à pulsão de morte, e Lacan neste momento correlacionou o suicídio melancólico com o assassinato imotivado do paranóico. A partir de 1953 com a introdução do axioma do inconsciente estruturado como uma linguagem, a melancolia foi pensada como um sacrifício suicida, e passou a ser entendida como efeito do parasitismo da linguagem no Sujeito, estando o sacrifício narcisista subordinado ao sacrifício simbólico. Porém a partir de 1963, ao correlacionar narcismo e objeto, Lacan considerou o Sujeito melancólico pelo paradigma do impulso suicida, que seria o paradigma do impulso do Sujeito se reunir com seu ser. Em 1973, no texto "Televisão", a depressão foi tomada como "paixão do ser", e a tristeza definida como "covardia moral". O sentimento depressivo, pensado por Lacan pelo viés freudiano de dor psíquica, foi comparado à referência budista de "dor de existir" o que eleva a depressão à condição de afeto normal, decorrente do fato de estarmos sempre em risco de perder a vida. Afeto este que remete à falha da estrutura que obriga o sujeito a buscar sua completude no Ideal, e dever se submeter a uma condição de gozo que desconhece. Por isto Lacan definiu a tristeza como covardia moral, como falta moral, como pecado (no sentido spinoziano), o que quer dizer em termos analiticos que se trata de uma decisão do Sujeito em assumir a dor da perda, pois enquanto estrutura descreve uma combinatória, uma regularidade, uma sobredeterminação, uma ética implica uma escolha, uma decisão. A estrutura não pode ser concebida sem uma decisão ou escolha subjetiva.
4. Responsabilidade e Sujeito: ética e tratamento
4.1. A serotonina e a alma
A psiquiatria atual, valendo-se da sua vocação médica, e situando as causas dos transtornos psiquicos nas fragilidades do corpo, recusa qualquer referência a uma essência do homem, ou qualquer associação com temas como a questão da liberdade, ou da responsabilidade, mostrando sua desimplicação com a ética. A modernidade desta especialidade médica, por se increver na metodologia e ideologia da medicina, faz uma constante referência a novos recursos proporcionados pelo avanço da medicina, como a tomografia computadorizada (PET), a ressonância magnética (MRF), a monitorizacao cerebral (BFM) a testes de verificação clínica , como o teste da supressão da dexametasona, teste usado no diagnóstico da depressão (TSD), ou a provacação experimental de ataques de angústia, o que se faz pela infusão de lactato de sódio, bem como a monitorização do êxito medicamentoso pela dosagem plasmática do fármaco administrado. Haveria ainda, caracterizando este novo momento da psiquiatria, as escalas que "medem" as psicopatologias, como a Maudsley para o D.O.C. (Disturbio Obsesssivo Compulsivo), a Hamilton para a depressão, o SADS-L (Schedule for Afective Disorders ans Schizofrenia-life-time version), além de padronizações tipo MMS (Mini Mental State) ou PGS (Present State Examination).
A clínica psiquiatrica, atualmente uma clínica da medicação, através deste instrumentos (exames, escalas, estatísticas), transformou estes critérios em teorias etiológicas, e num jogo lógico, propõe modelos terapêuticos, como por exemplo acontece com a depressão, onde se indicam anti-depressivos tipo RIMA (Re-uptake) ou SSIR, fundamentando-se em observações que se referem à presença ou ausência de determinados neurotransmissores, principalmente a serotonina, cuja molécula pode ser considerada a atual sede da alma, apresentando-se com seu novo nome: 5HT2. Como conseqüência deste modelo há tentativa da abolição da categoria das neuroses, substituída pelos transtornos da ansiedade . Neste grupo isolou-se uma categoria paradigmática, a "ansiedade endógena com manifestações autonômicas", ou “sindrome do pânico", que como diz o nome, seria endógena e autonômica, por isto mesmo considerada um transtorno cerebral, embora o texto de referência sobre a questão, (Panic anxiety and its treatments - Task Force Report of the World Psychiatric Association) [31] atribuam a descrição desta sindrome a Freud (Estudos sobre a histeria, caso Elisabeth R.).
Freud em 1894 teria, segundo os autores do livro "Panic anxiety..." usado o termo neurose de angústia para separá-lo da neurastenia provendo com isso a descrição da síndrome do pânico: Ataques espontâneos de angústia, tremores, vertigens, palpitações. A diferença com a psicanálise, estaria na explicação destes sintomas feita pela psiquiatria através da hipótese da diminuição da serotonina, o que é radicalmente diferente da hipótese da psicanálise, que vê a origem destes distúrbios no eixo falo-castração-narcisismo. Com as neurose, as histerias também desapareceram na nova nosologia proposta pelo DSM, transformando-se, descacterizadas, em quadros dissociativos. No campo das psicoses há uma desconsideração das Paranóias (reduzidas a transtornos delirantes) e uma enfatização nas esquizofrenias. Porém qualquer que seja a ordenação dos quadros pela nova nosografia utilizada na psiquiatria, seu tratamento privilegia sempre unicamente a abordagem psicofarmacológica, ou seja, não há a inclusão do Sujeito, em qualquer de suas definições, na montagem da estratégia terapêutica. É contra este fato que a psicanálise opõe sua experiência.
4.2. Não há clínica sem ética
A psiquiatria, coerente com a hipótese dos sintomas serem condicionados somente pelas alterações dos neurotransmissores, indica, como único tratamento, uma ação neles. Para a psicanálise o Sujeito é constituido em relação a um outro, de quem depende para sua subsistência, dependência esta mediada pela linguagem, o que determina que o Sujeito, na busca de sua satisfação, reatualize os registros que anteriormente tornaram a satisfação possível, mesmo que sejam irrecuperáveis. Seriam estes dois modelos, o da psiquiatria e o da psicanálise, inconciliáveis? Seria possível uma interlocução entre a psicanálise e a psiquiatria? Há entre os psicanalistas aqueles que apontam a posssibilidade desta interlocução fazendo conexões entre os recentes avanços das neurociências, e as evidências demonstradas pela psicanálise.
Y. Soussumi no seu artigo "A psicanálise hoje e freudiana? A psicanálise e algumas idéias neurobilógicas e imunoendócrinas ", publicado no livro "Corpo-mente, uma fronteira móvel" [32], desenvolvendo o conceito de "epigênese", cita a "Teoria das categorizações" de Edelman, como uma forma possível de se estabelecer a ponte das neurociências e a psicanálise. Segundo Soussumi, Edelman ao investigar os fenômenos cerebrais à luz da teoria do "Darwinismo neuronal", aponta que as experiências vividas pelo ser humano ao nascer, nos momentos precoces de sua relação com o meio ambiente, vão ativar seletivamente os circuitos neuronais programados geneticamente. À utilização destes circuitos, Edelman deu o nome de "Categorizações", e se refere a satisfação ou não de necessidades instintivas ligadas à preservação da vida. Este paralelismo possível entre as neurociências e a psicanálise é levado ao extremo quando Saussumi faz a seguinte comparação: "Talvez o modelo mais próximo da consciência primária seja aquele que possui o cérebro direito de alguns individuos com o cérebro esquerdo dominante em situação de splitting cirúrgico" [33].
Outra pesquisadora da possível relação da psicanálise com a neurociência, Susan Vaughan, no livro "The talking cure - The cience behind psychoterapy" [34], publicado em 1997 em Nova York, chega a defender que há uma função cerebral a que ela chama de "sintetizador de histórias" que estaria alojada na córtex cerebral. Esta autora chega a propor "que as conexões biológicas entre os neurônios que constituem o sintetizador de histórias são literalmente fortalecidas, moldadas, enfraquecidas ou destruídas - em última análise refeitas - ao longo do processo de psicoterapia". Mesmo entendendo o que a autora chama como sintetizador de histórias, como uma metáfora para Sujeito, a demonstração das alterações celulares causada por efeito de psicoterapia ainda estaria para ser feita. Assim como também, o paralelo feito por Soussumi da noção de "epigênese", e da "teoria das categorizações" de Edelman, nunca poderiam explicar o Édipo ou a castração como proposta pela psicanálise, sem cair em uma analogia biológica imprópria. O mesmo vale para o paralelo feito C. Pérsio no artigo "A grandeza da simplicidade", onde propõe um paralelo da "apoptose" celular com a pulsão de morte. A psicanálise, tomada pelo paradigma do Sujeito, vê no outro, tanto na sua dimensão imaginária de semelhante, como na sua dimensão simbólica de Outro, e mesmo na dimensão real de Das Ding, a causa do sujeito. Este fato aponta à uma alienação originária na constituição do Sujeito, e faz com que, para ele, o saber esteja sempre no outro, o que faz diferença com as ciências cognitivas, que coloca o funcionamento cerebral na origem do saber. Daí a psicanálise incluir a presença do Outro, através da pessoa do analista, como condição do tratamento, e com isso, reproduz na transferência a estrutura onde o Sujeito demanda a um Outro uma resposta sobre o que lhe falta.
Neste sentido a experiência psicanalitica desautoriza qualquer paralelo entre neurociência e psicanálise, pois elas tem uma posição antagônica quanto à causa e funcionamento do Sujeito. Como explicar a transferência pela neuroquímica? O que dar ao outro para completar o que lhe falta? Remédios ou o acesso a uma verdade, causa de seu sofrimento? Pergunta que aponta a uma ética, porém não uma ética dos filósofos, mas uma ética da psicanálise. Esta ética foi sugerida por Lacan como: "uma ética se anuncia, convertida ao silêncio pelo advento não do pavor, mas do desejo" [35].
Neste sentido, a ética da psicanálise, em primeiro lugar, diz respeito à interpretação do desejo inconsciente que implica o Sujeito na responsabilidade de uma escolha, evitada para não produzir angústia. O limite disto, está na incompatilidade do desejo com a palavra, o que esboça a virtude alusiva da interpretação, que vai da interpretação definida como tomar o desejo à letra, até a interpretação enquanto incidindo sobre a causa do desejo. A ética do analisando pode ser formulada como Wo Es war soll Ich werden: aí onde Isso era, deve advir Eu. Isto quer dizer há ética onde há escolha, decisão, o que se manifesta de maneira exemplar na analogia feita por Lacan da depressão com a covardia moral. À ética da psicanálise pode-se acrescentar uma ética do desejo, que não é uma ética da liberação do desejo, mas de sua resolução, o que, devido a incompatibilidade do desejo e da palavra, coloca o problema do "bem-dizer".
A definição de Lacan da tristeza como falta moral, reúne o afeto triste com a culpa. E o sentimento de culpa marca a posição do Sujeito diante do desejo, o que coloca a questão de saber o que um fenômeno, como a depressão, deve à época. Aponta a isso expressões como spleen, ou blue, que se referem a posições do Sujeito frente ao espírito da época.
Alguns analistas [36], fazendo uma leitura da situação atual que vive a psicanálise, apontam um declínio da psicanálise que, segundo eles, teria por causa a dificuldade de analisibilidade que o Sujeito pós-moderno apresentaria. O Sujeito pós-moderno é apresentado como vítima do anonimato do modo de vida atual, vivendo em uma civilização condicionada pelo discurso da ciência e pela globalização do capitalismo, marcado pela ausência de ideais, e pela falta de crenças que caracteriza o fim de século.
O Sujeito, pelo fato de constuir-se a partir do Outro, depende do saber que o Outro tem, fato que a tranferência demonstra. Se o saber muda, como acontece numa pós-modernidade cacacterizada pela ausência de paradigmas, pode-se supor que o Sujeito também muda, porque ele é constituido a partir do saber, como mostram as figuras do sujeito definido historicamente. Como o inconsciente evolui, o analista, definido por Lacan como uma conseqüência do conceito de inconsciente, também deve mudar para poder abordar as novas manifestações subjetivas. Ou cabe ao Sujeito renunciar à sua responsabildade e, como única saída, medicar-se, perpetuando sua alienação num efeito químico determinante de sua felicidade, por mais oca que seja esta palavra?
[1] Lacan, J., De nossos antecendentes, in Escritos, pg. 69.
[2] Ibid, op. citada
[3] Trimble, M., Biological Psychiatry, John Wiley e Sons, New York, 1996.
[4] Dennet, D., Consciousness explained, Litle, Brown and Company, New York, 1991.
[5] Changeux, J.-P., O homem neuronal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991.
[6] DSM_IV, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, Artes Médicas, R.S., 1995.
[7] CID-10, Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas, Organização Mundial de Saúde, Genebra, Artes Médicas, P.A.,1993.
[8] Violante, M.L., Estudo sobre a interface psicanalítica/psiquiátrica dos transtornos de humor.
[9] Ibid, pg. 28.
[10] Ibid, pg. 29.
[11] Bunge, M., El problema mente-cérebro, Tecnos, Madrid, 1988.
[12] Damasio, A., O erro de Descartes, Companhia das Letras,S.P., 1996.
[13] Ibid pg.279.
[14] Ibid pg. 282.
[15] Assoun, Pierre_Laurent, Introdução à epistemologia freudiana, Imago, R.J., 1983.
[16] Ibid, pg. 51.
[17] Lacan,J., Seminário III, As psicoses, J. Zahar, R.J., 1981.
[18] Searles, J. R. , A redescoberta da mente, Martins Fontes, S.P., 1997.
[19] Comte-Sponville y Ferry L., La sabiduria de los modernos, Ediciones Peninsula, Barcelona, 1999, pg. 40.
[20] Mezan,R., Paradigmas e modelos na Psicanálise atual, in Psicanálise hoje uma revolução no olhar, ed. Vozes, 1996.
[21] Prefácio à edição brasileira, in Ogden, T., Os sujeitos da psicanálise, Casa do psicólogo,1996.
[22] Lacan J., Sem III, As psicoses, J. Zahar Editor, R.J.,1981.
[23] Lacan, sem III As psicoses, Jorge Zahar editores, R.J., 1981.
[24] Drawin, C.R., As seduções de Odisseu: paradigmas da subjetividade no pensamento moderno, in Cultura da ilusão,Contra Capa, 1998.
[25] Lacan J., L'insu que sait de l'une-bevue s'aille a mourre, Sem. XXXIV, 1976, inédito.
[26] Lacan, Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos, Rev. Falo, ano II, num. 2, jan.-jul. 1988, pg. 7.
[27] Ibid.
[28] Ibid.
[29] Freud, S., Correspondência completa de S. Freud para W. Fliess, 1887-1904, Imago Editora, 1886, R.J., Rascunho A, pg 38.
[30] Ibid, Rascunho B, pg.43.
[31] Task Force report od the World Psychiatric Association Panic Anxiety and Its Treatments, American Psychiatric Press, Inc, Washington, 1993.
[32] Saussumi, Y, A psicanálise hoje é freudiana? in Corpo-mente, op. cit, pg 351.
[33] Ibid, op. cit.
[34] Vaughan, S., A cura pela fala, Objetiva, R.J., 1998.
[35] Lacan, J., Escrits, Seuil, Paris, 1966.
[36] Carlinsky, N., Eskenazi, C., Kijak, M., Vivir sin proyecto, psicoanalisis y sociedad pos-moderna, Editorial Lumen, Bs. As, 1998.