Anti-joyceanos e pós-lacanianos
Márcio Peter de Souza Leite
(in Opção Lacaniana - Revista Internacional de Psicanálise, p.p.84-88, 1995, SP)



• Todo Lacan?
• O caso Joyce

• Por que Joyce?
• Santo Joyce e Dom Lacan


Todo Lacan?

Uma obra tem fim? Se entendermos por “obra” a produção intelectual de uma pessoa, como é o caso de Freud e de Lacan, seu fim só pode ocorrer com a morte do autor, que sempre, até o último momento, pode produzir uma ressignificação total de suas idéias. Muito mais quando o autor reconhece na sua produção um ensino, o que quer dizer que ele se responsabiliza pela coerência lógica que a evolução desta no tempo impõe.

Foi na busca de uma coerência para a obra de Freud, ou seja, da lógica decorrente da evolução da investigação deste autor, que Lacan sugeriu um retorno a Freud, um retorno “ao sentido e não à letra” dos textos que compõem esta obra. Daí a leitura que Lacan fez de Freud onde, por exemplo, a “viragem dos anos 20” — com a conceitualização de pulsão de morte — ressignifica e reordena o produzido anteriormente; ou onde o texto de Freud “Três ensaios de uma teoria sexual”, escrito em 1905, tem de ser lido obrigatoriamente desde outro texto posterior “A organização genital infantil” (1923), etc.

Fala-se do Lacan dos anos 70 [1]. A significação desta particularização de um período de seu ensino apontaria justamente à introdução de considerações, por parte de Lacan, a partir da data sugerida, que modificariam aspectos da lógica anterior que até então sustentavam seu ensino. Já outros autores [2] falam no “giro” de 1975.

Quais seriam os motivos que justificariam a localização destes pontos de ressignificação na obra de Lacan?

Poder-se-ia sugerir que numa das aulas do seminário “D’un discours qui ne serait pas du semblant”, a de 20 de janeiro 1971, e que depois seria escrita com o título “Lituraterre” publicada no primeiro número da revista Litterature, encontra-se o início de uma modificação das posições anteriores de Lacan. Este texto, além de fazer considerações sobre a escritura, afasta a hipótese de que ela fosse anterior à fala. Usando uma metáfora de Saussure, Lacan fez referência às “nuvens” que, ao se liquefazerem, mudam de forma, de “semblante”, precipitando-se em significantes e que fazem sulco no “real” da carne. Este precipitado é “matéria em suspensão e é o que faz a erosão do significado. É isto o que vai constituir a “letra”, entre o “litoral” e o “literal”. Quer dizer, a partir destas articulações de Lacan, o simbólico — onde um significante sempre requer outro significante, caracterizando um sistema binário que apontava a um inesgotável do saber — passou a ser revisto. Em 1971 Lacan começou a admitir que existe o Um, o que de fato formalizou, pouco depois no seminário “Ou Pire”, com a fórmula “Y a d’l’Un”, e com a idéia do “Campo Uniano”. Com isto mudou a lógica da impossibilidade de um esgotamento do simbólico, pois este, desde estas novas considerações, passou a estar sempre condicionado pela letra, que é da ordem do redutível, isto é, produz fim.

A letra, assim formalizada, é então fonte de dois efeitos: um em relação ao saber e outro em relação ao gozo [3]. Ou, dito de outro modo, um em relação à ordem do simbólico e outro em relação à ordem do real. Talvez por isso em 1972, no texto “L’Etourdit”, Lacan apontou a impossibilidade de se encontrar o nó da significação e sugeriu que se procurasse apreendê-lo com recursos diferentes do simbólico, utilizando-se elementos que tivessem características do próprio real, que seriam a letra e a escritura.

já o “giro” de 75 é referido, pelo autor que o sugere, como efeito do simbólico ter sido refutado em sua especificidade e unicidade, não pelas razões que apontamos acima, mas pela ressignificação que este teria recebido, na medida que a tríade “imaginário, simbólico e real” havia deixado de ser “axiomática” para ser “problemática”, fato que teria ocorrido em 1975 durante o seminário “RSI” e que teria como consequência a dissociação do simbólico em símbolo e sintoma.

Porém, seguindo as indicações anteriores, já nos anos 70 teria havido por parte de Lacan um desenvolvimento da noção de letra como “algo” fora do simbólico. Embora essa noção — “suporte material do significante” — já estivesse presente em seu ensino desde 1956 (quando a introduziu no texto “A carta roubada”) e encontremos ecos de sua categorização no conceito de “traço unário” (retomado de Freud em 1961 no seminário “A identificação”), assim como também no debate sobre a lógica do nome próprio (acontecido no mesmo seminário), foi com a introdução do objeto a (ocorrida em 1962 quando do desenvolvimento do seminário “A angústia”) que Lacan começou a colocar em questão os limites do simbólico e a apontar a possibilidade de um real “fora do simbólico”.

Entre as várias possibilidades de se apontar qual o principal conceito reformulado nos anos 70, poder-se-ia dizer que seria o conceito de real. Real com a assinatura de Lacan, sustentado na noção de letra, de gozo, de alíngua, de parlêtre, de objeto a, onde sua maior consequência seria a separaçao entre saber e gozo.

Depois de 1971, porém, mudou a abordagem destas questões que começaram a ser feitas principalmente a partir da interrelação dos registros, com o recurso da topologia — a partir do nó borromeano, em especial,introduzido no Seminário 20 (“Mais, ainda”). O nó apresentado neste seminário como uma escritura, fez com que esta noção estivesse sempre presente, a ponto de Lacan dizer: “No discurso analítico, só se trata disso, do que se lê”.

0 esforço em elaborar a lógica da interrelação dos registros tornou-se cada vez mais patente: na conferência pronunciada em 1974 por Lacan em Roma (que recebeu por título “A terceira”), no seminário de 1974/75 (“RSI”) culminando nos desenvolvimentos do seminário de 1975/76 (“O sintoma”), assim como nas conferências feitas em 1975 nos Estados Unidos.

Se antes dos anos 70 a relação entre o simbólico e o imaginário era entendida como o que produz o sentido, a partir da nova noção de “letra” constituíu-se uma noção de real, própria a este momento do ensino de Lacan, que ressignificou as relações entre este registro e os demais.

Se com a formalização do objeto a Lacan introduziu o sem-sentido na prática analítica, foi porém com essa nova especificação de real que pôde precisá-lo e o fez a partir do estabelecimento das relações deste novo real com o simbólico e com o imaginário. Modificações estas a tal ponto importantes, que no texto “L’Etourdit” formalizou uma separação entre sentido e significação, sustentada nas interrelações entre os registros e que produziu a fórmula: “a interpretação é sentido e vai contra a significação” [4].


O caso Joyce

No seminário “O sintoma” — contrastando com o anterior, o seminário “RSI”, e com o posterior, o seminário “L’insu que sait de l’une bevue s’aite à mourre“, marcados por uma teorização abstrata suportada na topologia do nó borromeano — há uma referência que se poderia chamar de clínica: a referência que Lacan faz à pessoa e à obra de Joyce. Esta referência, naquele momento do ensino de Lacan, a um autor tão particular como James Joyce, visava justamente dar conta do efeito da letra que, mesmo fora do simbólico, o condiciona. Com este recurso Lacan tentou precisar as relações entre o simbólico e o real, porém com o real definido desde a especificidade da prática analítica e do seu ensino.


Por que Joyce?

Talvez porque a obra do irlandês James Joyce inaugurou a era literária moderna e se constituiu em referência obrigatória na literatura — frequentemente comparada à de Shakespeare, Dante ou Homero — produzindo, tanto quanto as destes autores, debates não somente no plano literário, mas também no filosófico, no estético e no teológico, entre muitos outros.

O livro mais conhecido de Joyce, muito citado e pouco lido, que leva o nome de Ulisses, iniciado em 1914 e publicado em 1921 em Paris, já foi comparado aos livros proféticos de Blake; e seu último livro, o hermético Finnegans Wake, comparado aos de Milton, segundo Burgess “obras pintadas no vácuo do seio divino” [5]. Ao lançar mão do mito — como em Ulisses, que é uma referência ao mito de Aquiles cantado por Homero na Odisséia (interpretação que Lacan rejeita [6]) — Joyce estabeleceu um paralelo contínuo entre a atualidade e a antiguidade e com isso inventou um método, fazendo com que depois dele a literatura de ficção o imitasse.

Além disso, os livros de Joyce de cunho autobiográfico são uma contínua referência a sua vida, a suas paixões e a suas idéias estéticas, filosóficas e religiosas. Joyce conseguiu juntar vida e arte e o assunto central dos seus escritos a um debate sobre o sentido da arte e o sentido da vida, o que ele realizou colocando na boca de seus personagens as mais diversas discussões sobre temas do nosso tempo.

No esforço de eliminar o velho e criar o novo, Joyce tomou-se a si mesmo como material de observação, pois queria criar acima de todos os sentimentos, queria ser um artista impessoal e paradoxalmente tentou fazer isso usando como referência unicamente sua própria biografia. Mas mesmo assim os livros de Joyce, e aí está sua arte, são sobre toda a sociedade humana, e por isto mesmo usam a linguagem comum, a despeito das suas regras semânticas, sintáticas e ortográficas, transformando-a “num mero ruído confortador na escuridão" [7]. E Joyce fez isto de tal maneira que a linguagem acabou sendo o principal, senão o único, personagem de seus romances.

Joyce tentou com sua genialidade, pelo viés da linguagem como único instrumento, pelo viés da linguagem levada a seu extremo, apresentar uma completa recriação da vida em seu processo de ser vivida, uma recriação, pela linguagem, das relações dos seres humanos entre si e da percepção do seu íntimo.

O intuito de Joyce era testemunhar o homem comum, e a melhor maneira de conseguir este objetivo foi deixar o homem comum falar por si mesmo. E fez isto desde sua própria vida — “homem comum enfim’ [8], num percurso que foi de Dublinenses até Um retrato do artista quando jovem, de Ulisses até Finnegans Wake, demonstrando que a literatura não é apenas um comentário sobre a vida, mas ela pode ser, e é, parte integral da vida.

Os personagens dos romances de Joyce, como o homem comum, não podem pensar o que querem pensar, nem fazer o que querem fazer, pois estão presos a uma lei externa, estão sujeitados à linguagem e, apesar de parecerem terem livre-arbítrio, com a habilidade do autor, são transformados, pela linguagem, em arte. E isto tudo dentro de uma pretensão universalizante, havendo por parte de Joyce uma intenção em produzir uma sinopse completa das artes e das ciências, um modelo do corpo humano, e ainda, como se não bastasse, um manual de todas as técnicas literárias.

Joyce, que não ignorava a etimologia do seu nome — derivado da palavra inglesa joy, que significa alegria, (o mesmo se dando com Freud, na língua alemã) — fez de seus romances, romances cômicos. Joyce escreveu para entreter, para celebrar a vida, para dar júbilo.

Para Joyce a história é uma desordem, uma imposição dos mortos sobre os vivos (tema de um de seu contos, que tem o título de “Os mortos”). A história é para Joyce um pesadelo do qual se está sempre tentando acordar — “to wake”, como Fínnegans, querendo fazer entender que a vida é como um sonho.

Este homem tão pretensioso, tão ousado, tão exitoso, tão sintomático, conseguiu se superar usando a linguagem como instrumento de transcendência, e por este caminho mostrou que a linguagem, sendo comum aos homens, faz deles iguais.

Joyce gênio, Joyce santo, Joyce artista foi chamado por Lacan de “Joyce, o sintoma”. Sintoma de alguém parasitado pela linguagem.

Neste sentido, Joyce é cada um de nós. Daí o “caso” Joyce.


Santo Joyce e Dom Lacan

A obra de Joyce apresenta, como a produção dos investigadores científicos, uma sequência que marca uma retroação significativa, quer dizer, pode-se encontrar nos primeiros textos justificativas dos últimos ou, a partir dos últimos, pode-se ressignificar os primeiros.

Assim, Finnegans Wake, que leva a linguagem às suas últimas consequências, talvez já pudesse ser previsto em Ulisses e certamente o reordena. O mesmo com Ulisses, que deve seu entendimento a Retrato do artista quando jovem, e este ao nunca publicado “Stephen Hero” [9].

A mesma coisa quanto à lógica interna de cada obra de Joyce, na qual vai havendo uma ruptura progressiva com os padrões clássicos da escrita e uma transgressão progressiva da semântica, da ortografia, enfim, de todos os parâmetros que antes de Joyce regiam a produção literária. 0 que o levou a isto? 0 que pode Joyce ensinar a um psicanalista?

Lacan, em 1975 em seu seminário “O sintoma”, apontou que Joyce ilustra de maneira exemplar o funcionamento do Nome-do-Pai, que neste momento de seu ensino está no plural, ou seja, “os” Nomes-do-Pai, e que no seminário daquele ano referem-se a tudo o que efetiva a função de “amarração” topológica do quarto termo do nó borromeano, tal como havia introduzido na última aula do seminário anterior — “RSI”.

Desde que introduziu os nós borromeanos — como maneira de investigar a lógica da inter-relação entre os registros — até o seminário “RSI”, Lacan trabalhou com o nó borromeano de três termos. Mas no decorrer deste seminário começou a formalizar o nó borromeano de quatro termos. A razão desta substituição foi devida ao fato de que não existiria maneira de se estabelecer topologicamente diferenças entre os registros. Somente ao nomear de maneira diferente cada um dos elementos do nó, pode-se sustentar as diferenças entre eles. Lacan introduziu então o termo “nomeação” como o quarto elemento, que então permitiria a amarração topológica dos demais.

O que Lacan pretendeu demonstrar em seu seminário sobre Joyce é de que maneira este quarto termo do nó, que estava então neste momento identificado ao Nome-do-Pai, pode ser “suprido”. Lacan tenta demonstrar através de Joyce de que maneira esta suplência do Nome-do-Pai pode realizar-se, e que no caso particular de Joyce se realizou mediante três operações: o “sinthoma”, o “fazer-se um nome” e o “ego”.

Há a suposição de Lacan de que a obra de Joyce evitou que ele se tornasse clinicamente psicótico. Se no texto “Questão preliminar” Lacan havia colocado o mecanismo fundamental da psicose na “foraclusão” do Nome-do-Pai, no seminário “O sintoma”, ao deslocar os Nomes-do-Pai para a função de amarração topológica do quarto termo do nó, aponta que a ausência deste permite delimitar o lugar em que algo possa ser colocado no seu lugar. (Deve-se considerar o mecanismo kleiniano da “reparação” como similar?).

Como Lacan chegou a estas conclusões? No começo do seu seminário sobre Joyce, Lacan reforçou primeiro a questão do quarto termo do nó borromeano, para só depois falar em Joyce. Começou por Stephen, personagem central de Um retrato do artista quando jovem; porém o fez suprimindo a distância que poderia haver entre Joyce e seu personagem, tomando-os como se fossem um só, chegando a dizer: “Joyce, quer dizer, não Joyce, senão Stephen” [10]. O que sem dúvida nos coloca frente às questões da psicanálise aplicada e da sua validez.

Por outro lado, Lacan deixou de aprofundar a questão das “Epifanias”, elemento central na compreensão da produção da obra de Joyce; soube delas através de Jacques Aubert, eminente joyceano presente em seu seminário. De importância fundamental, as “Epifanias” — que receberam de Joyce este título litúrgico — eram pequenas composições, diálogos triviais que o escritor recolheu em sua juventude nas ruas de Dublin, que tinham um caráter de claridade e de revelação e que permaneciam, porém, como enigma. As “Epifanias” eram testemunhos de uma experiência interior qualificada pelo próprio Joyce como de êxtase, mas que em sua trivialidade chegavam perto do sem-sentido. Para o psicanalista, sem dúvida, estas “formações do inconsciente” seriam da mais alta relevância.

Lacan privilegiou, porém, a idéia de que os textos de Joyce, tomados como documentos psicopatológicos, seriam efeitos de uma carência paterna — causa de sua psicose. (Será que a pouca importância de John Joyce, o pai fracassado de Joyce, pode levar à conclusão sobre seu caráter foraclusivo em James, justificando um diagnóstico de psicose?). 0 mesmo se dá em relação à Lucia, filha de Joyce, esta sim clinicamente psicótica (foi paciente de Jung). 0 fato de James Joyce supor que ela fosse telepata fez com que Lacan invocasse, como uma das justificativas de seu diagnóstico de psicose para o escritor, a existência do fenômeno psiquiatricamente descrito como “palavras impostas”.

Também a descrição que Joyce faz de uma surra que levou de uns amigos, presente no romance Retrato de um artista..., retomada na última aula do seminário “0 sintoma”, é articulada por Lacan como determinando a relação de Joyce com seu corpo. Este episódio da vida de Joyce, foi por ele descrito como tendo o efeito de fazê-lo sentir que seu corpo caía como uma casca, uma roupa. Lacan deu uma importância fundamental a este acontecimento e sugeriu que ele produzira em Joyce uma relação alterada com o próprio corpo, fazendo com que ele sentisse seu corpo como corpo alheio.

Se Lacan define o “eu” como a “idéia de si mesmo como corpo”, precisamente o eu de Joyce caracterizava-se por uma alteração deste funcionamento, o que Lacan formalizou (utilizando-se do nó borromeano) como o anel do imaginário escapando, fugindo, isto é, não sendo articulado aos outros anéis (real e simbólico). Por isso haveria no caso de Joyce a necessidade de produzir uma “nominação imaginária” do eu. Esta nominação imaginária do eu de Joyce seria aquilo que faz “suplência” à ausência de um “moi”, o qual depende do Nome-do-Pai e da função fálica, e que é suprido mediante este ego (não é “moi”) particular, que escapa como tal à dimensão imaginária. O que se convencionou chamar de “Ego de Joyce”, para Lacan faz de Joyce um “desabonado do inconsciente”, pois permitiu a ele realizar algo novo ao nível da língua na sua articulação com a linguagem, produzindo uma escritura que, carecendo de significação, a liberou do imaginário.

Dentre os vários nós com que Lacan escreve, no seminário “O sintoma”, a estrutura de Joyce, o nó que exemplifica a liberação do imaginário decorre de um “erro”: o anel do simbólico, que deveria ter passado por baixo do anel do real para que o nó fosse borromeano, passa por cima deixando solto o anel do imaginário. Lacan demonstra a possibilidade de se restaurar a amarração borromeana através de uma quarta corda que, ao reparar o “erro”, impede que o imaginário fique solto.

Em Joyce a escritura mostra uma dimensão além do imaginário, solidária com a falta particular da nomeação imaginária, na medida em que o Nome-do-Pai foi suprido de uma maneira particular.

Nas conferências que realizou no mesmo ano nos Estados Unidos, Lacan disse: “Escute; suspeito fazer do inconsciente a chave da explicação da arte; mas no seminário “O sintoma”, referindo-se à arte, e ele o disse também nos Estados Unidos, propôs: “é mais adequado explicá-la através do sinthome”.

O sintoma escrito como “sinthome” difere do anterior, formação do inconsciente, e opera como suplemento. O sinthome aponta ao real do sintoma, real este constituído pela sua exclusão do simbólico e que aponta o gozo, fora do sentido. O sintoma, além de mensagem cifrada, é efeito do sinthome, meio do sujeito organizar seu gozo.

Para Lacan, Joyce é o sinthoma, o santo-homem e outras coisas mais. Se no Lacan anterior aos anos 70, a psicose podia ser entendida como a ausência da distância entre os significantes — o que ele no Seminário 11 (Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise) chamou de holófrase, ela é causada pela foraclusão, que impede a instauração da falta, que por sua vez é a causa da separação dos significantes, produzindo o Um da psicose.

Com a formalização da letra como fora do simbólico, sobredeterminando-o, o que começou a ser elaborado com a fórmula “Y a d’l’Un”, impõe-se a idéia de que haveria uma “universalização” da holófrase e por consequência da psicose? Com isso, não haveria uma dimensão universal para a função da foraclusão que seria própria à ordem do significante como tal?

A aposta de Lacan em Joyce gira em torno da procura da resposta do sintoma como real, como fora do sentido, como gozo. A obra de Joyce testemunha o que já foi considerado como fundamental das elaborações de Lacan dos anos 70 [11]: A separação entre o Outro e o gozo. Ou, dito de outro modo, a relação entre o simbólico e o real.



[1] MILLER J.-A.,“Considerações sobre a clínica psicanalítica”, Papéis do Simpósio, Belo Horizonte, Simpósio do Campo Freudiano, p. 13.
[2] ALLOUCH J., Freud, et puis Lacan, Paris, EPEL, 1993.
[3] MILLER J.-A., “Considerações sobre a clínica psicanalítica”, op. cit.
[4] MILLER J.-A., “Acerca de las interpretaciones”, Escancion 1, Buenos Aires, Manantial.
[5] BURGESS A., Homem comum, enfim, São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
[6] LACAN J., “Joyce, o sintoma”, conferência de 16 de junho de 1975.
[7] BURGESS A., op. cit.
[8] Título do livro de Burgess.
[9] Entre outros: Richard Ellmann in James Joyce.
[10] LACAN J., “0 sintoma”, seminário inédito, aula de 13 de janeiro de 1976.
[11] MILLER J.-A.,“Considerações sobre a clínica psicanalítica”, op. cit.

 

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