O cheiro do diabo: psicanálise e alucinação
Márcio Peter de Souza Leite
(in Opção Lacaniana - Revista Internacional de Psicanálise, p.p.5-7, abril/1996, SP)



• Antes de Freud
• Com Freud
• Depois de Freud: Lacan


Antes de Freud

“Sinto cheiro de diabo”. Era esta a queixa de alguém que demandava uma análise. Encaminhada por um psiquiatra, este acrescentou: alucinação olfativa.

Esta alucinação em particular (se de fato fosse uma) coloca ao psicanalista algumas questões sobre este fenômeno. Aliás, talvez as alucinações não façam parte do cotidiano da clínica, mas esta particular “manifestação do espírito”, quando presente, não pode deixar indiferente àquele que estuda o psiquismo humano, não só pelas suas consequências no destino de quem a padece, mas principalmente pelo valor de paradigma que ela adquire na compreensão da percepção humana, estando no ponto mesmo do cruzamento do pensamento psiquiátrico e do pensamento analítico.

Historicamente este fenômeno, passível de ser verificado unicamente nos falantes, só foi nomeado separadamente de uma interpretação religiosa (onde era entendida como comunicação com os deuses, algo próprio dos visionários e dos profetas) a partir da intervenção iluminista, que resultou na invenção da psiquiatria.

A alucinação recebeu seu nome e sua definição, que ainda hoje se encontra em uso na psiquiatria, em 1817 de Esquirol, um psiquiatra francês, aluno de Pinel.

A definição da alucinação como “uma percepção sem objeto”, além de ter organizado semanticamente uma série de fenômenos antes nomeados diferentemente, também implica teoricamente numa concepção do funcionamento psíquico, quer queira ou não, a quem aceita esta definição. Esta concepção correlaciona a idéia da adequação da percepção à realidade, o que se daria, unicamente através dos órgãos dos sentidos.

Seria a alteração dessa adequação entre o objeto e a percepção o que produziria as alucinações, que seriam tantas quanto são os sentidos: auditivas, visuais, táteis, cinestésicas, gustativas.

A primeira incidência importante, nesta organização classificatória, foi feita por Baillerger, que ampliou a semiologia anterior das alucinações, acrescentando às descritas por Esquirol (as alucinações psicosensoriais) a observação de fenômenos que chamou de alucinações psíquicas (chamadas também de pseudoalucinações por Kandinsky, ou de alucinações aperceptivas por Kahlbaun). Com isto Baillerger ampliou a questão da alucinação, antes somente entendida como alterações exclusivas da senso-percepção, para sugeri-la como podendo ser definida pelo caráter involuntário destas vivências, mudando assim o eixo onde antes elas estavam centradas, que era o “erro de percepção”, para defini-la a partir da característica de ser uma vivência estranha à personalidade de quem a refere.

Ou seja, tanto a alucinação psicosensorial, como a alucinação psíquica testemunham um automatismo, mas elas diferem entre si na medida em que as alucinações psicosensoriais possuem um caráter de espacialidade sensorial e as alucinações psíquicas se referem a um fenômeno cuja característica principal é a de ser imposta e sem objetividade espacial.

A principal consequência desta diferenciação foi que a partir dela se tornaria possível a inclusão progressiva dos fenômenos de linguagem no campo das alucinações.

Uma terceira e última operação, que definiria definitivamente o campo “clássico” da semiologia das alucinações, seria ainda feita em 1892, por Sèglas. “Uma pequena revolução”, no dizer de Lacan, que consistiu na descrição das alucinações motrizes-verbais, o que produziria o efeito de se introduzir a pergunta sobre o “sujeito da alucinação”, ou dito de outro modo, quem alucina?

Referindo-se a isso, Lacan no Seminário 3 diz que a alucinação psicomotriz-verbal trouxe à tona a constatação de que “na palavra humana o emissor é sempre e ao mesmo tempo receptor, já que escuta o som das próprias palavras”.

Esta semiologia seria ainda completada pelo próprio Sèglas que, ao distinguir alucinações auditivas das verbais, propôs que se classificasse a última como uma patologia da linguagem, o que aproximaria o fenômeno da alucinação mais ainda ao campo da psicanálise.


Com Freud

Embora ainda antes de Freud as alucinações já tenham sido associadas aos sonhos, o que foi feito por Moreau de Tours em 1845, decorrente de suas pesquisas com substâncias psicoativas (o que abriria caminho para a nomeação do onirismo como entidade clínica por Regis em 1900), coube no entanto ao pai da psicanálise tomar esta via de investigação e nele (sonho) pensar ter encontrado o modelo do funcionamento psíquico que explicaria o mecanismo comum a todas as alterações psíquicas, inclusive a alucinação psicótica.

Esta proposta, que se encontra presente em Freud desde o apartado H da “Interpretação dos sonhos”, encontrou uma continuação no “Complemento metapsicológico à doutrina dos sonhos”, onde Freud, a partir do seu modelo “telescópico”, retoma a explicação da recordação como efeito de uma atualização alucinatória de um registro mnêmico, o que se daria pelo mecanismo da regressão. Neste texto, Freud avançou esta sua hipótese a ponto de poder propor algumas diferenças entre o trabalho do sonho e a esquizofrenia.

Para Freud, no sonho o processo primário afetaria as representações de coisa, enquanto na esquizofrenia seriam as representações de palavras as afetadas. Em segundo lugar, no sonho se produziria uma regressão tópica até a percepção, fato que não aconteceria na esquizofrenia.

Isto implicaria, para Freud, que a alucinação não seria um fenômeno central da psicose. Por isto Freud separou esquizofrenia e alucinação e criou uma nova entidade clínica que englobaria o sonho (pela sua manifestação de onirismo) e a confusão alucinatória aguda (a Amentia de Meynert), quadro que Freud batizou de “psicose alucinatória de desejo”.

Não foi suficiente, portanto, para Freud a explicação da alucinação como simples efeito da regressão, pois se fosse assim qualquer regressão intensa poderia produzir uma alucinação. Segundo Freud, para que haja alucinação seria necessário, além da regressão, que ficasse suspendido o exame do critério de realidade, que é o que permitiria distinguir as percepções das representações. O que Freud deixou de explicar adequadamente foi o que faz com que este critério de exame da realidade fique suspendido.


Depois de Freud: Lacan

Desde o final do século XIX até as quatro primeiras décadas deste, as bases da psiquiatria clínica, alemã e francesa, já estavam constituídas e isto sem dúvida produziu forte influência nas obras de Freud e de Lacan.

Uma das consequências disso seria que se para Freud o fenômeno alucinatório não era o fato central na psicose, ele talvez o fosse para Lacan.

Lacan, nesta questão, seguiria o seu declarado mestre em psiquiatria, Clérambault, para quem o fenômeno alucinatório está sempre subjacente aos delírios?

Se for correta a indicação que G. Lanteri-Laura faz em seu livro Les hallucinations [1], atribuindo a Lacan a autoria do texto publicado no nº 1 da revista Scilicet [2] onde a alucinação é proposta como fenômeno suficiente e necessário para o diagnóstico do estado psicótico, a resposta à pergunta anterior seria afirmativa.

Também no mesmo artigo há uma afirmação que, demonstrada sua pertinência, revolucionária o campo da semiologia das alucinações: “a alucinação é sempre verbal”.

Talvez encontremos uma resposta a esta polêmica (mesmo sem esclarecer a autoria do texto de Scilicet) no texto escrito por Lacan em 1961 para a revista Les temps modernes, no número dedicado a Merleau-Ponty que havia falecido recentemente.

Neste texto, em contraponto com as posições do filósofo sobre a questão do visível, há como uma tomada de posição de Lacan em relação à alucinação (paradigma do invisível que se faz visível?). Ele o faz abordando a questão cartesiana do “Eu penso” em relação ao “Eu sou”. Dito de outra maneira, tratar-se-ia de poder reunir a “extensão”, “res extensa”, (o “Eu sou”), e o pensamento “res cogitans” (o “Eu penso”).

Se para Merleau-Ponty o corpo identifica-se à percepção e, por isso, impõe a existência de um momento pré-reflexivo, o que faz com que o sujeito, por isto mesmo, só esteja depois em seu pensamento, Lacan propõe uma solução um pouco diferente: antes de mais nada estaria a presença do Outro para o sujeito. Quer dizer, para Lacan o sensorium funcionaria apenas como Outro para o sujeito, e não como seu centro.

Mais ainda, para Lacan não existiria nenhuma posição que possa reunir o “Eu sou” e o “Eu penso”, o que tem por consequência um sujeito sempre dividido.

J.-A. Miller, nas aulas de 4 e 11 de julho de 1987 do seu seminário de DEA, propôs o seguinte modelo para o que poderia ser a estrutura normal da percepção:

grafico1

J.-A. Miller, com a expressão “estrutura normal” da percepção, certamente estaria se referindo ao modelo compartido pelos teóricos da alucinação, onde o percipiens e o perceptum dependem de uma referência à realidade, ou seja, somente quando há um ajuste entre ambos com a realidade se conseguiria a objetividade.

Desta maneira, a alucinação se daria quando a realidade não está implicada no perceptum. Neste momento a causa dela passa a ser imputada ao percipiens.

A percepção alucinatória foi assim esquematizada por Miller:

 

Lacan, se opondo a esta forma de se estabelecer a compreensão do processo da percepção e ao se situar de uma maneira que questiona a base fundamental deste modelo, já trouxe de volta o debate sobre a alucinação para uma questão de ordem que seria anterior aos demais debates, e com isso se opôs a todas as outras posições existentes sobre o tema, quer fossem elas psiquiátricas ou filosóficas.

Este confronto se deu, visto que Lacan inverteu o que era antes aceito como sendo o mecanismo da percepção, ao conferir ao perceptum uma função de causa, cujo efeito de divisão recai não sobre o percipiens, como antes, mas sobre um sujeito.

Eis o esquema proposto por J.-A. Miller para o modelo “lacaniano” da percepção:

grafico3

O modelo “lacaniano” da percepção, esquematizado por Miller, evidencia a subversão feita por Lacan neste campo, que antes de mais nada foi efeito dele reconhecer o perceptum como fato de linguagem, e o elevar à categoria de “causa” do sujeito. Não há, portanto, um sujeito ativo da percepção, mas apenas um sujeito que é efeito da divisão do significante.

Conclusão maior: a percepção do mundo só se opera através do campo da linguagem. Está implícito na proposta de Lacan que o perceptum alucinatório seria anterior ao sujeito, destituindo desta maneira o percipiens do lugar central que antes ele ocupava na mentalidade ocidental.

Assim, se são os significantes que condicionam a realidade, e não ao contrário, como é a posição da psiquiatria, alguém poderá até sentir “cheiro de diabo”, fato que poderá tanto ser uma metáfora, como o retorno pelo real do que foi foracluído no simbólico.

Mas nos dois casos se tratará só de significantes, não do bulbo olfativo e suas entranhas cerebrais.

(Este artigo receberá uma continuação com o título: “O sujeito da alucinação”).



Referências Bibliográficas:
[1]LANTERI-LAURA G., Les hallucinations, Paris, Masson, 1991, p. 172.
[2] Scilicet, nº 1, Paris, 1968, p. 120-134. Autoria do texto não declarada.
ESQUIROL J. E. D., Memória sobre la locura y sus variedades, Madrid, Ediciones Dorsa, 1991. Seleção de textos da obra publicada em 1838.
BAILLERGER J., “Des hallucinations, des causes qui les produisant, et des maladies qui les caracterisent”, Memoires de l’Academie Royale de Medicíne, Paris, 1846.
LACAN J., 0 Seminário, Livro 3, As psicoses, Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 22-34.
MILLER J.-A., Comentário sobre Maurice Merleau-Ponty, curso de DEA de 16 de abril de 1989. Notas de Dimitris Vergetis, publicadas em Analisis de las alucinaciones (org. Silvia Tendlarz), Buenos Aires, Paidós, 1995.
LACAN J., “Maurice Merleau-Ponty”, Analisis de las alucinaciones (org. Silvia Tendlarz), op. cit.
BERCHERIE P., “Presentacion” Automatismo mental-paranoia, de G. de Clérambault, Buenos Aires, Polemos, 1995.

 

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