Declínio da psicanálise?
Márcio Peter de Souza Leite
(in Dora, Revista de Psicanálise e Cultura, nº 2)
Não seria exagerado dizer que existe um consenso entre os vários grupos de psicanalistas quanto a um diagnóstico da situação da psicanálise hoje, diagnóstico freqüentemente apresentado sob a rubrica de “declínio”.
Em maio de 93 a revista “Times” publicou uma matéria de capa cujo título era: “Está Freud morto?”. Acho que podemos responder: “Sem dúvida Freud está morto. Ninguém duvida disto. Freud está morto desde 1939, mas a psicanálise não”.
O próprio Freud no texto “O futuro da psicanálise”, antecipando o destino dela, afirmou que “se não houvesse resistências à psicanálise esta não seria verdadeira. Isto porque se o inconsciente é conseqüência do recalque, se não se duvidam do inconsciente, o recalque não seria o que a psicanálise diz”.
E a psicanálise diz que o recalque é um não querer saber da angústia, daí que a cultura se defenderia dela defendendo-se da psicanálise, que mostra a angústia como inerente à condição humana, como parte inevitável do seu destino. Por isto, para o psicanalista, não causa espanto que o sujeito, como acontece atualmente, prefira culpar os seus neurônios pelo seu sofrimento atribuindo somente a eles a responsabilidade pela sua angústia, preferindo esta ilusão a responsabilizar-se por ela.
O futuro da psicanálise terá de ser então, o de contornar as novas formas de recalque que irão sempre surgir, e como o recalque depende do estilo de cada cultura, neste momento, na nossa comunidade, deveremos entender o estilo de recalque que a vida de hoje produz.
E se o estilo do recalque próprio ao nosso tempo, que já é tido como pós-moderno, sugere um declínio da psicanálise, o futuro dela exige que pensemos o lugar do sujeito neste novo momento. Impõe-se também uma reflexão sobre a psicanálise vista como instituição, e se o modelo atual das instituições analíticas servem às novas maneiras do sujeito pós-moderno se associar. O mesmo em relação à psicanálise utilizada como teoria explicativa da mente, e nisto haveríamos que pensar como a nova ciência, e seus novos paradigmas atuam na formalização teórica da psicanálise. Da mesma maneira, e talvez principalmente, haveria que ousar fazer-se um aggionarmento da psicanálise usada como método terapêutico, apesar de todas as dificuldades que tal tarefa impõe.
O tema do declínio da psicanálise está, portanto, associado à pergunta da modernidade e suas conseqüências, o que na nossa experiência se refere à temporalidade do sujeito.
Para Freud havia uma historicidade do sintoma. Não seria aqui o lugar de demonstrá-lo. Seu equivalente em Lacan se daria pela articulação do sujeito com a história. Lacan se refere a “momentos do sujeito”, apontando a diferentes relações do sujeito com o saber. Lacan fala também de um “sujeito novo”, em “modernidade do sujeito”, modernidade que para ele estaria historicamente definida, situando este momento em relação ao Cogito Cartesiano.
Situar o sujeito moderno como decorrente da operação cartesiana, é centralizá-lo em relação à uma razão objetiva. Daí Lacan ter relacionado o sujeito com a ciência, ou melhor relacionado a ciência com a ausência do sujeito, ou sua foraclusão, como sugere Lacan.
Se uma história do sujeito ainda está para se escrever, mesmo assim querem alguns autores que a razão metafísica seja uma resposta à irrupção do individualismo. Nesta visão, o homem concebido como essência, como sendo capaz de ultrapassar as condições empíricas imediatas que o determinam, pode ser definido como sujeito. A este sujeito, entendido como centro do conhecimento se chamou de sujeito “noético”.
Já em uma segunda visão, que é a de Koyré, uma segunda metafísica decorreria das descobertas de Copérnico, o que teria feito com que o mundo voltasse a ser uma multiplicidade sem centro, o que ocorreu com a introdução da idéia de infinito.
Pode-se ainda falar em terceiro momento metafísico, onde aparece a figura de um sujeito reflexivo epistêmico que seria decorrente da operação cartesiana do “Eu penso logo sou”: o fundamento do saber que coincide com a descoberta do Cogito, ou seja a objetividade da natureza se dá unicamente para um sujeito. Qual sujeito? Um sujeito epistêmico, um sujeito que passa a ser fundante do saber.
Então se poderia dizer que em princípio, a categoria de sujeito esteve relacionada com as noções de indivíduo, que decorreu da idéia de privado, o que se estabeleceu por oposição a público, de psicológico estabelecido como oposição a histórico, e de autoria, por oposição a um conhecimento anterior.
Porém, para Lacan o sujeito cartesiano é o pressuposto da noção de inconsciente, pois para Lacan, Freud partiu do fundamento do sujeito da certeza, tal como Descartes: ou seja, o sujeito pode ter certeza de si desde que se possa destacar no seu discurso dúvidas que aparecem como reveladoras de um sujeito dividido. 0 lugar do “Eu penso” para Freud é independente do “Eu sou”.
Para a psicanálise o sujeito que interessa é portanto o sujeito do inconsciente, que é um sujeito barrado pelo significante, que é dividido em sujeito da enunciação, o “Eu penso”, e que não é o mesmo sujeito do “Eu sou”.
Mas um último destino da figura do sujeito se tem revelado atualmente no campo do saber, sujeito este apresentado através da identificação da figura do sujeito com a figura do autor, o que inaugura a idade da descontrução do sujeito, fundando um novo momento na filosofia, momento este que se chamou de “pós-estruturalismo” ou “descontrutivismo”, cujo principal mentor é Derrida, quem apresenta a morte do sujeito exemplificado, através da “escritura”, que seria a demonstração da ausência de sujeito.
Esta posição inaugurou o que se pode chamar de “subjetividade pós-moderna”. Uma outra forma de apresentar esta questão é através do que se chamou de “crise da representação”, que ao radicalizar a idéia da morte do sujeito, revelaria o frágil e problemático caráter representacional da linguagem, através da desarticulação entre as palavras e as coisas.
E que tem tudo isto a ver com a psicanálise? Para alguns estudiosos, o declínio desta se deve a que o sujeito pós-moderno, que é o sujeito que não responde mais a um saber compartido socialmente, que é o sujeito sem paradigmas de consenso, que é o sujeito que decorre das mudanças dos costumes sexuais, que é o sujeito que decorre das mudanças ideológicas, que é o sujeito que sofre da ausência de ideais pré-estabelecidos, enfim o sujeito pós-moderno é o sujeito que modificou sua relação com o saber e logo não constrói um sujeito suposto ao saber como antes e por isto sugerem estes estudiosos que o sujeito pós-moderno não seria analisável, decorrendo disso o declínio da psicanálise.
Não é esta nossa opinião. Pois o sujeito se construirá sempre em relação ao saber, esta é a lição da transferência. Porém, o que o analista de hoje não pode negar, é que o saber mudou de endereço e o analista tem que saber localizá-lo.
Se os semblantes do imaginário social que antes definiam os papéis sexuais mudaram, se há uma declinação do viril, se há um declínio da função paterna, se os gadgets são suficientes para completar a falta, mesmo assim as conseqüências destes fatos continuam sintomas. Não os mesmos da época de Freud, mas são sintomas próprios à nossa época.
O analista, ele mesmo transformado em gadget pela cultura norte-americana, mesmo assim, continua ele também sendo um sintoma. E como todo sintoma o analista é ele também um sintoma historicamente definido. O analista por ser sujeito de uma suposição de saber, está por isto mesmo historicamente determinado, da mesma forma que o saber também o está. Mas mesmo assim o analista continua analista, embora fazendo semblante de saberes muito diferentes dos que Freud fazia.
O declínio da psicanálise seria então não pensar como é o analista para um sujeito pós-moderno, seria não admitir que o inconsciente avança, seria não concluir que o analista, se quiser continuar analista, tem que avançar mais que o inconsciente.
E para isto serve uma Escola de Psicanálise: para manter o lugar do analista como uma conseqüência do conceito de inconsciente, e não como inventor dele, para fazer avançar a psicanálise e não apenas mantê-la como um dogma superado e estagnado, mantendo assim o vigor da psicanálise e evitando seu declínio.