Depressão ou dor de existir?
Márcio Peter de Souza Leite
(in Carta de São Paulo, Boletim Mensal da Escola Brasileira de Psicanálise, p.p. 4-7, ago/1995)
• Divergências de linguagens
• O modelo do luto
• O ideal e suas perfeições
• Paixões da alma
Divergências de linguagens
Para a psicanálise, a palavra depressão conota tantos sentidos diferentes quantos forem os sujeitos à significarem, pois estes sempre a significarão em relação a outro significante.
Este fato ficou patente nas conferências realizadas pelo Instituto de Pesquisas em Psicanálise de São Paulo, onde dois dos convidados representando um mesmo referencial discursivo, a psiquiatria, referiram um uso diferente para a palavra depressão, ainda mesmo que tomada como um conceito, o que faria supor uma precisão para seu uso.
A conferência do dr. Carol Sonnenreich manifestou a importância desta questão, expondo a sua própria concepção de depressão, sustentada com uma terminologia oriunda da fenomenologia concebida como uma lentificação dos processos psíquicos e um estreitamento do campo da consciência.
Já o dr. Taki Kordás, posicionando-se a partir dos critérios do DSM-III e do CID-10, e seguindo este modelo supostamente ateorético, entende por depressão uma reunião de sintomas, existentes durante um determinado período de tempo, que caracterizariam um conjunto a que se dá o nome de síndrome depressiva, sem no entanto privilegiar nenhum desses sintomas, e nem interrelacioná-los.
A diferença de posições entre estas duas maneiras de significar a depressão, consistiria em que, ao se referir ao critério do funcionamento psíquico, como no caso da lentificação psíquica com seu conseqüente estreitamento do campo da consciência, está se apontando para um distúrbio central, ordenador das demais manifestações tidas como características da síndrome depressiva. Já o simples agrupamento de sintomas sem interrelacioná-los, o que acontece no DSM-III, responderia ao único fato em comum a eles, que seria a resposta destes fenômenos à administração de uma mesma substância química (imipramina), e seu critério de ordenação seria apenas o estatístico.
O modelo do luto
E, para a psicanálise, qual a significação do termo depressão?
Sem dúvida, a psiquiatria sempre constituiu para a psicanálise uma interface necessária. A acumulação de saber nesta disciplina constituiu o que J.A. Miller chamou de os tesouros clássicos [1], e que auxiliariam os psicanalistas a formalizar a partir da noção de inconsciente, as respostas do real [2], com seus envoltórios formais [3].
Para com o sintoma depressão, Freud, o primeiro psicanalista a abordar a questão, agiu desta forma. Ou seja, Freud tomou da psiquiatria corrente a ordenação de um conjunto de fenômenos, que seriam a tristeza, o desinteresse sexual, a desmotivação, as auto-acusações, as idéias de morte e a exemplo do que fizera com os sintomas da neurose, articulou-os entre si, procurando uma relação causal entre eles.
Freud havia proposto para as neuroses, logo no início de suas formulações, que a angústia seria como que o sintoma fundamental delas. Assim, para Freud, a angústia seria a causa das várias maneiras de o sujeito evitá-la, constituindo os vários estilos defensivos, que seriam o fundamento dos agrupamentos psicopatológicos das neuroses e que corresponderiam, segundo o ensino de Lacan, às possibilidades de o sujeito negar a falta no Outro.
Com o grupo de sintomas que naquele momento se significava como depressão, Freud operou da mesma maneira. Primeiro, ordenou este grupo de sintomatologia em torno de um centro, de um fundamento que ordenaria as demais manifestações depressivas entre si, e que, para Freud, foram articuladas em torno do que para ele seria sua principal evidência, a auto-acusação.
Para compreender as razões das manifestações depressivas e encontrar o seu fundamento defensivo, Freud recorreu ao paralelo clínico com o luto, pois, no luto o sujeito apresentaria expressões semelhantes aos sintomas que Freud configurava como os da depressão.
Porém, ainda logo nos primeiros textos, Freud frisou a diferença entre depressão e melancolia. Desde 1892 ele utilizou a palavra depressão para descrever uma nova constelação sintomática a que ele chamou de depressão periódica branda: “A depressão periódica branda é única forma de neurose de angústia que, fora desta, manifesta-se em fobias e ataques de angústia” (Rascunho A, pg 38) [4].
Em 1893, Freud já diferenciava a depressão da melancolia e afirmava: “Essa depressão (a depressão periódica branda); em contraste com a melancolia propriamente dita, quase sempre tem uma ligação aparentemente racional com o trauma psíquico. Este, porém, é apenas uma causa provocadora. Ademais, a depressão periódica branda ocorre sem anestesia psíquica, que é a característica da melancolia” (Rascunho B, pg. 43) [5].
Em 1917, no texto definitivo sobre a questão, Luto e Melancolia, Freud definiu a melancolia como um desânimo profundamente penoso, a cessação do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envelhecimento, culminando numa expectativa delirante de auto-punição.
Freud colocou a ênfase do quadro melancólico na dor psíquica que este refere, e que ele, caracterizou como o estado clínico da melancolia.
A pergunta fundamental para Freud quanto à melancolia passou a ser então, o que causa a dor psíquica. A resposta, segundo Freud, seria a falta de objeto, seja por uma perda real ou por uma falta imaginária. Freud usou, então, a correlação clínica luto-melancolia para estabelecer sua sugestão de explicação psicanalítica para esta “aflição”.
Tratava-se de encontrar a essência da melancolia a partir da comparação com o luto como seu equivalente normal. À sua definição de melancolia que já citamos, ele acrescentou: “Este quadro se nos faz mais inteligível quando refletimos que o luto mostra também estes caracteres, à exceção de um só: a perturbação do amor-próprio”. Ou seja, para Freud, tanto no luto como na melancolia, encontramos aflição e dor, perda do interesse pelo mundo e pelas coisas, perda da capacidade de escolher um objeto novo; porém, o que, segundo Freud, diferencia o luto da melancolia, é que no luto não há a perda da auto-estima.
Para Freud, na melancolia, não seria o mundo que estaria empobrecido, mas sim o próprio Eu e, como no luto, também na melancolia teria havido uma perda, porém não se conseguiria distinguir claramente o que o sujeito perdeu, e, tampouco ele saberia dizê-lo.
O ideal e suas perfeições
Em relação às posições dos conferencistas anteriores impõem-se então, para o psicanalista, diferenças fundamentais quanto à questão da depressão. Primeiro, que o designado pelo termo “depressão” ou “melancolia”, não recobrem, mesmo dentro da psiquiatria, situações iguais. Com relação à psicanálise, o uso destes termos é feito através da equiparação de Freud deste “estado clínico” com o de luto normal, privilegiando-se a dor psíquica e diferenciando-se estes estados entre si pelo fato de que a melancolia, à diferença do luto, apresenta uma marcada alteração do amor-próprio, bem como uma ausência de uma perda real.
Foram estas considerações que levaram Freud a propor uma explicação teórica para este quadro clínico que, ao girar em torno da perda do amor próprio, fez com que Freud o correlacionasse aos ideais do sujeito, mais precisamente ao Ideal do Eu, o que ele viria a articular a partir da segunda tópica com a noção de Super-Eu, e da angústia aí localizada: a culpa.
Uma vez reformulada a questão da angústia, em 1925, num apêndice do texto Inibição, sintonia e angústia, que aparece com o título de Angústia, dor e tristeza, Freud concluiu que a dor seria a verdadeira reação à perda de objeto, e a angústia seria a verdadeira reação ante o perigo que ocasiona a perda de objeto.
Paixões da alma
0 termo e a idéia de “substituição” foram introduzidos muito cedo por Freud. Esta idéia se deveu à constatação de que uma satisfação impossível pode ser suplantada por uma possível, o que se daria pelo viés do simbólico, através do que Freud chamou de deslocamento e condensação. Esta construção seria a explicação da psicanálise para todos os sintomas neuróticos, entre os quais estão os sintomas da depressão.
Lacan também situou a constituição do sujeito nestes termos, cuja operação porém, deixaria um resto não simbolizável, ao que Lacan chamou de objeto a:
Do encontro do sujeito com o Outro haveria uma divisão do sujeito e clivagem do Outro, mais a produção de um resto que é o objeto a. Este resto, instituinte do sujeito, seria a causa do desejo. Assim, segundo Lacan, o desejo não estaria prometido à completude, pois ele seria sempre decorrente de uma perda, na qual a instituição do sujeito se funda.
Seria este o luto originário?
Porém, se este modelo da causação do sujeito se dá para todo falante, qual seria a especificidade dele para aquele sujeito que apresenta manifestações melancólicas?
Segundo Eric Laurent existe, indubitavelmente, uma teoria da melancolia no ensino de Lacan, estabelecida já em 1938, e que evoluiu durante toda sua obra.
Em 1938, no texto Complexos familiares, Lacan se referiu à psicose maníaco-depressiva como um transtorno do narcisismo, na medida em que ela viria remediar a insuficiência específica da vitalidade humana.
Em 1946, a ênfase foi posta numa referência direta à pulsão de morte, e Lacan, neste momento, correlacionou o suicídio melancólico com o assassinato imotivado do paranóico.
A partir de 1953, com a introdução da noção do insconsciente estruturado como uma linguagem, a melancolia foi pensada como sacrifício suicida, ou seja, na melancolia o sujeito se nomeia, ao mesmo tempo que se eterniza e, com isto, Lacan deixou de pensar a melancolia a partir do narcisismo para pensá-la a partir dos efeitos do parasitismo da linguagem no sujeito, estando o sacrifício narcisista subordinado ao sacrifício simbólico.
Porém, a partir de 1963, ao relacionar narcisismo e objeto (Seminário X), Lacan produziu um novo referencial para a compreensão da melancolia. Neste momento do seu ensino, Lacan considerou que o sujeito melancólico, pelo atravessamento da imagem que efetuaria no impulso suicida, poderia ser apresentado como o exemplo do impulso de se reunir com o próprio ser. Quer dizer, na melancolia, através do ato suicida, o sujeito se encontra com o objeto a.
A partir dessa consideração, a mania será pensada como o contrário da melancolia, ou seja, ela ocorre quando o sujeito não encontra o objeto a, quando nada o amarra à cadeia significante. Assim, a partir dessa visão, a mania e a melancolia seriam maneiras diferentes de separar o desejo da causa.
Finalmente, em 1973, no texto Televisão, Lacan, ao redefinir a mania como o retorno no real do que foi recusado na linguagem, ampliou a questão da melancolia-mania pela questão do plus de vida que o simbólico marca, com a mortificação [6]. Isto radicalizou a orientação de Lacan sobre a melancolia: esta não se abordaria jamais através do afeto da tristeza, mas, unicamente, em função do ato suicida.
Com isso, o sentimento depressivo, pensado por Lacan pelo viés freudiano da dor psíquica, se relativizou, variando desde uma referência ao budismo através da fórmula da “dor de existir”, quanto da elevação da depressão à condição de um afeto normal, decorrente do fato de que sempre estaríamos em risco de perder a vida, se pensamos em nossa vida cotidiana como uma vida que deve ser eterna [7].
Afeto normal que remete à falha da estrutura que obriga o sujeito ao dever de ser “todo” para o ideal, e o dever de “bem dizer” sua relação com o gozo.
Lacan definiu então a tristeza como covardia moral, como falta moral, como pecado (no sentido spinoziano), o que quer dizer, em termos analíticos, que se trata de uma decisão sobre a perda. Porém, perda de gozo fálico. Esta foi a precisão, que Lacan fez em relação a Freud.
Notas
[1] Miller, J.A. - In Introducion a la Seccion Clínica de Buenos Aires, 1995.
[2] Miller, J.A. - Seminário 1984-85, inédito.
[3] Lacan, J. - “De nuestros antecedentes”, Eséritos, Siglo Veintiuno Editores, 1971, México.
[4] Idem - “Complexos Familiares”, J Zahar, 1993, Rio de Janeiro.
[5] Idem - Televisão, J. Zahar, 1993, Rio de Janeiro.
[6] Freud,S. “A Correspondéncia completa de S.Freud para W. Fliess”, 1887-1904, Imago Editora, 1986, Rio de Janeiro.
[7] Laurent, E. - “Melancolia, dor de existir, covardia moral”, in Correio, número 4.