Deus, gozo e empuxo-à-mulher
  Márcio Peter de Souza Leite 
(in Carta de São Paulo, boletim da EBP-SP, ano 10, nº 3, maio-junho/2003)


• Deus para Freud
• Deus para Lacan



Deus para Freud

A religião como neurose obsessiva

A primeira contribuição de Freud à compreensão da religião foi no ensaio “Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907), que trata das similaridades entre a obsessão e a religião.

Freud conclui:

"Poderíamos nos arriscar a considerar a neurose como uma contra partida patológica da formação de uma religião, e a descrever a neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal".

Para o obsessivo, "qualquer desvio das ações rituais é acompanhado por uma ansiedade intolerável". Para a pessoa religiosa, os atos sagrados do ritual precisam ser satisfeitos. São realizados separadamente de outras ações e devem ser levados até o fim.

Embora o ritual religioso seja público e comum, sua significação também está baseada num significado simbólico. A maioria dos crentes executa o ritual sem preocupação com seu significado e, além disso, são guiados por motivos inconscientes.


Deus como substituto do Pai

No ensaio “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”, Freud sugere a conexão entre o complexo paternal e a crença em Deus. Em termos biológicos, a religiosidade está relacionada com a prolongada impotência e necessidade de amparo da criança pequena ao se confrontar com as grandes forças da vida, se sente como se sentia na infância e tenta negar seu próprio desalento por meio das forças que protegiam sua infância.

A proteção contra a neurose que a religião concede é explicada: ela os liberta do complexo paternal - do qual depende o sentimento de culpa, e o subjuga.

Não há nenhum Deus, nenhuma natureza bondosa. Há, porém, a dor dos desprotegidos e a neurose religiosa dos que acreditam estar protegidos por Deus.

Os seres humanos moldam Deus à imagem do "pai". Deus é "um pai enaltecido"; "uma transfiguração do pai"; "um retrato do pai; "uma sublimação do pai"; "um suplente do pai"; "um substituto do pai"; "uma cópia do pai"; ou Deus "é realmente o pai".


Totem e Tabu

Em Totem e Tabu (1913), Freud apresentou uma reconstrução histórica da forma como a religião começou, partindo de Darwin. Afirmava que "os homens viviam originalmente em hordas, todos sob o domínio de um único homem poderoso, violento e ciumento" que tinha direitos exclusivos sobre as mulheres do grupo. Nas mentes de seus filhos, o pai assassinado foi transformado no Deus individual de cada crente.

Imediatamente após o assassinato, a imagem do pai foi reprimida. Ela retornou em uma transferência simbólica, como o animal totêmico e por fim, na criação de uma imagem paterna de Deus.


Futuro de uma ilusão

No ensaio “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud começa por localizar a religião no contexto da civilização na medida em que esta ajuda os seres humanos a refrear suas ânsias instintivas por "incesto, canibalismo e desejo de matar".

A religião fez grandes contribuições à coerção dos instintos e à civilização. A civilização é absolutamente necessária para regular o poder da natureza. A natureza parece tolerante e "nos deixaria fazer o que quiséssemos".

Porém, "ela tem seu próprio método particularmente eficaz de nos coibir. Ela nos destrói - de modo frio, cruel, implacável, conforme nos parece, e provavelmente por meio das mesmas coisas que nos dão satisfação. Foi precisamente por causa desses perigos com os quais a natureza nos ameaça que nos unimos e criamos a civilização [...] para nos defender da natureza".

Os deuses são encarregados de uma tarefa tripla: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os seres humanos com a crueldade do destino e compensá-los por seus sofrimentos. A última tarefa não é fácil de cumprir, e leva ao desenvolvimento de sistemas morais para controlar os males da civilização. Freud afirmava que os preceitos morais eram de origem "divina". Desse modo, no decurso do tempo, a ilusão religiosa promete propósitos superiores e um bom desfecho.

Quando o monoteísmo se realizou na história, veio com ele uma renovação do relacionamento com o pai. "Agora que Deus é uma única pessoa, as relações humanas com ele podiam recobrar intimidade e a intensidade da relação da criança com seu pai". Na opinião de Freud, a realidade e a religião têm pouca proximidade no que se refere aos esforços humanos para desvendar os segredos do universo; "o trabalho científico é o único que pode nos levar ao conhecimento da realidade exterior a nós".


Deus para Lacan

Deus dos filósofos: Deus como Outro

No Seminário “As Psicoses” Lacan fala de um Deus que engana e outro que não engana. Na neurose, Deus garante que o significante funciona; na psicose, o Deus suprido pelo delírio é sem lei. Lacan assimila Deus ao Outro, lugar da verdade. No Outro a lei dos significantes funciona - Deus é vivenciado como confiável e como insensato, se não funciona.


Deus está morto

No Seminário “A Ética da psicanálise”, Lacan afirma que por Deus estar morto, existe lei. Ele reconhece no Deus morto o jogo significante. Em seu Seminário “A transferência”, Lacan diz que as religiões tentariam domesticar os deuses que por sua vez pertencem ao real, do qual são um modo de revelação.


Deus é inconsciente

No Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, Lacan propõe que a verdadeira fórmula do ateísmo não seria que Deus está morto, mas contestando a fórmula de Dostoievsky - "se Deus está morto tudo está permitido" - com "se Deus está morto nada está permitido".


Deus e o gozo da mulher

No Seminário “Mais, ainda”, Lacan diz: "E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como sustentada pelo gozo feminino". Para ele, Deus não seria nem uma sublimação nem uma idealização do pai.


Deuses: revelação do real

As religiões seriam tentativas de domesticar Deus, de modelar o real com o simbólico das palavras e o imaginário dos corpos. Em lugar de ser uma sublimação ou uma idealização do pai, como supunha Freud, para Lacan as religiões seriam rebaixamentos dos deuses à indignidade do pai.


Deus ex-siste

Lacan delimita um ponto que falta na reflexão filosófica moderna: Deus é existir e não ser.

Os filósofos árabes concebem o ser criado como uma essência que não contém em si a razão de sua própria existência. A existência se distingue da essência. Para Deus, existência e essência faz sempre um.

Na leitura de Lacan, a existência reduz a importância da essência: "Sou o que sou". O ser é uma essência a qual só sua causa confere a existência."

O tetragrámaton impronunciável "Yahve" significa a existência necessária. O nome de Deus é mais um eu sou, que um ser ou uma essência.

A existência é dissociada da essência, nem a veicula nem a causa: "Para que algo exista, é necessário que haja um buraco" (Ornicar? nº 22). Pelo qual se disse depois que é "suporte do real" ou "o que responde no real" ou "da ordem do real".

A ex-sistência, é introduzida pela matemática moderna: "É o emprego do escrito µx)" (Ornicar? nº 4).

Deus é o não-todo que o cristianismo tem o mérito de distinguir, recusando-se a confundi-Io com a idéia do universo.

A religião teria ensinado Lacan a invocar o Nome-do-pai, representando a Lei, como significante originário. O Deus que interessa à psicanálise é aquele que se revela como Pai, ou como Nome, na tradição judaica-cristã.

Deus é o inomeável. Não existe. (Ornicar? nº 2): "aquilo no qual nenhuma existência lhe está permitida". Os Judeus têm explicado bem o que eles chamam 'O Pai'. O metem num ponto do buraco que não podemos sequer imaginar. "Sou o que sou, isso é um furo, não? Um furo (...), isso engole e logo tem ratos em que isso volta a esculpir. Cuspe quê? O nome, o Pai como nome".

Deus é a mulher tornada toda "enquanto que a mulher já é não-toda, é porque ela seria o Deus da castração".

"Ela (a barra de negação) diz que não tem Outro que responderia como partenaire - sendo a necessidade toda da espécie humana que haja um Outro do Outro. É aquele ao que se chama geralmente Deus, mas cuja análise revela que é simplesmente A mulher".


Empuxo-à-mulher
Deus é a mulher tornada toda

Em “De uma questão preliminar...” encontra-se esta expressão: "Como podemos perceber, ao observar que não é por estar foracluído do pênis, mas por ter que ser o falo, que o paciente estará fadado a se tornar uma mulher".

Schreber, fadado a se tornar mulher, indica a impossibilidade de uma escolha do sexo pelo psicótico. Para Lacan, há escolha para o sujeito em colocar-se do lado homem ou do lado mulher, independentemente do seu sexo anatômico.

A inclinação para a feminização, o empuxo-à-mulher, marca uma obrigação quanto à sexuação do sujeito.

Lacan indica que não há escolha da sexuação na psicose. Por não conseguir ascender ao significante que lhe permitiria colocar-se como homem na repartição dos sexos e por dever ser o falo, o psicótico é levado a situar-se do lado mulher.

Há um empuxo-à-mulher, independentemente da posição subjetiva do psicótico. O empuxo-à-mulher é um efeito da foraclusão do Nome-do-Pai.

A homossexualidade masculina (não psicótica), se inscreve, nas fórmulas de sexuação do lado homem, enquanto que o empuxo-à-mulher se inscreve do lado mulher.

Schreber o exemplifica com sua transformação em mulher e sua posição diante de Deus: "como seria bom ser uma mulher copulando e ser a mulher de Deus".

A identificação ao desejo da mãe está no fundamento da psicose: por não poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens.

A transformação do sujeito em mulher implica que, para poder ser o falo, é preciso renunciar a tê-Io: o que Schreber traduz no imaginário por "não poder mais possuir pênis". Isto é o que está na origem de sua emasculação.

Freud e Lacan mostram a satisfação que leva Schreber a contemplar, vestido de mulher, sua imagem no espelho. É a dimensão do gozo ligado à cópula divina que o conduz a tornar-se digno da fecundação divina.

Nesta figura de Deus que goza dele, evoca-se o gozo do Outro, um gozo não fálico ligado a uma falta da castração.

É este efeito diante do chamado do gozo sem limite, que Lacan chamou de empuxo-à-mulher, gozo ligado à falta da função fálica.

Escreve Lacan:

"Sem dúvida a adivinhação do inconsciente adverte o sujeito, desde muito cedo, de que, na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens" ou, ser a Mulher de Deus".

A foraclusão do Nome-do-Pai tem como efeito fazer existir A Mulher, a encarnação de um gozo infinito, uma Mulher completa, não marcada pela castração.


Bibliografia:
• Freud. S., Totem e tabu, E5B, vol. XIII.
• Freud, S., Futuro de uma ilusão, E5B, vol. XXI.
• Freud. S., O mal-star na cultura, E5B, vol. XXI.
• Jimenez,S., Algumas provas da ex-sistência de Deus, in Latusa n. 2.
• Lacan J., Sem.)0<.J. Zahar,RJ .LacanJ., Sem. XXII, in Ornicar?
• Palmer,M., FreudeJung, ed Loyla, SP, 1997.
• Regnault.F., Dioses inconsciente, Manatial, BsAs, 1985.

 

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