O Eu em Freud ¹ - da psicofisiologia à psicanálise
  Márcio Peter de Souza Leite 
(in Imagem Rainha, Escola Brasileira de Psicanálise, RJ, Ed. Sete Letras, 1995, p.p. 25-35)


• Em que clínica
• Em que sintoma
• Em que tratamento



Em que clínica

Há alguma “questão clínica” que se coloca como desafio dentro da psicanálise que segue a orientação lacaniana?

Certamente, há muitas, sendo uma delas a subversão da própria noção de “clínica”, decorrente da ação que as conseqüências da psicanálise operam sobre ela.

As perguntas sobre a especificidade de uma psicopatologia dita psicanalítica, bem como sobre uma nosografia específica à clínica da psicanálise, encontraram diferentes respostas na reflexão do próprio Freud. Então, qual será a resposta dada pelas diferentes correntes que continuam o seu pensamento?

O termo “clínica”, ao apontar para o experiencial, pois se refere ao que se aprende ao lado do leito, impõe a idéia de que haveria uma predominância da “experiência” sobre a formalização teórica. Idéia formadora do espírito da psicanálise onde o “Ça n’empêche pas d’exister”, dito por Charcot a Freud que orientou um projeto de pesquisa realizado por Freud, fazendo-o sobrepor os fatos que descobriu à moral dos discursos dominantes.

Porém, foi em um destes discursos, o da psiquiatria, que Freud apoiou-se e serviu-se para nomear sua “clínica”, para a qual a psicopatologia era outra diferente da médica, dita por ele a “outra psicopatologia”. Mas, mesmo assim, Freud dizia manter o saber psiquiátrico da época como um interlocutor privilegiado.

Ao reorganizar as categorias psicopatológicas a partir de um saber psicanalítico, Freud inventou as neuroses de transferência e a neurose narcísica, modificou quadros como o da neurose de angústia e neurastenia, reinterpretou e reorganizou fobias e neurose obsessiva e, praticamente, reinventou a histeria. No campo das psicoses, polemizou com a esquizofrenia, oscilou entre os diagnósticos de paranóia e o de “dementia paranóides”, correlacionou luto com melancolia, mas sempre se manteve próximo à sistematização psiquiátrica deste campo.

E como será que a orientação lacaniana se coloca frente a uma possível especificidade da clínica psicanalítica?

Hoje, não é lugar-comum referir-se à demanda de análise por parte do paciente, como conformadora do campo próprio da psicanálise? Será que o sintoma não é diferente no campo psiquiátrico e no campo psicanalítico? Pois, se a psiquiatria observa e descreve sintoma para depois classificá-lo, nomeando-o a partir de modelos (que, caso se aceite a hipótese dos historiadores da psiquiatria, seria o da paralisia geral), para a psicanálise, o sintoma só existe quando falado pelo paciente.

Ao só existir a partir do discurso do paciente, este é um sintoma que tem como paradigma o ato falho. E mais, a clínica psicanalítica, ao ser construída a partir de uma experiência que consiste no fato de um discurso, originado de uma demanda, ser vetorizado do paciente ao analista, faz com que este faça também parte do sintoma.

Qual, então, a relação da clínica psicanalítica com a psiquiátrica?

Na psicanálise de orientação lacaniana, esta relação não é de exterioridade, pois ela “... não possui outra clínica senão a psiquiátrica”. Isto não quer dizer que, em psicanálise, o diagnóstico seja feito psiquiatricamente dentro de uma suposta objetividade. No campo psicanalítico, trata-se de um diagnóstico da posição do sujeito, questão esta equacionada em termos de “avaliação clínica”. Este momento da prática clínica é proposto por Lacan como o das [1] "entrevistas preliminares”, primeiro momento do tratamento analítico, segundo esta orientação.

Quer dizer que é em referência a fatos de discurso, dentro de uma situação de demanda, que, ao ser o destinatário deste e pelos efeitos que isto produz no próprio discurso, num primeiro momento, o analista se referirá às categorias de neurose ou psicose (às quais acrescentará as perversões). Usa tais categorias para referir-se a fatos de discurso, que vão desde a alucinação (como sendo um fato de linguagem característico da psicose) até a metáfora, a qual, com toda a sua força poética, potencializa pela língua os gozos interditos da neurose, passando pelas transgressões da lei, modo de gozar do perverso.

Dessa maneira, uma clínica outra se delineia para o analista. E, mesmo tendo Freud partido das conversões somáticas como critério para o diagnóstico das histerias, esta (clínica lacaniana) autoriza o analista a pensar nesta situação como conseqüência do sujeito buscar para si um desejo insatisfeito; ou, no caso dos obsessivos — afastando-se da hermenêutica que constrói a constelação sintomática deste quadro, como equacionada em relação a idéias fixas, dúvidas, compulsão pela organização, etc. —, para pensá-la como efeito de um sujeito sustentado por um desejo impossível.


Em que sintoma

Assim , se esta outra clínica, a psicanalítica, se constrói sobre as características de um discurso dirigido por um sujeito a um outro que ele supõe deter um saber sobre o seu sofrimento, foi nas vicissitudes desta fala que Lacan demonstrou a descoberta de Freud, formalizando-a com o axioma: “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”.

Porém, constata-se que as linguagens se modificam, avançam, conforme demonstram a constante atualização dos dicionários e a existência das línguas mortas. E, se o inconsciente está estruturado como uma linguagem, pode-se inferir que, tal qual esta, o inconsciente também se modifica, também avança.

Esta afirmação é perigosa, na medida em que seria contrária à idéia de “clínica:", como o que se deve aprender da experiência e não como dedução teórica. Mas, neste caso, pode-se afirmar que a clínica comprova que os sintomas mudam: logo, os quadros clínicos, também. Basta comparar a descrição das histerias feitas por Freud, Charcot e Breuer, e as histerias do cotidiano da clínica atual, para se impor a existência de uma modificação radical da patoplastia das histerias, o mesmo se dando, nos outros quadros.

A clínica psicanalítica, entendida como a clínica da transferência, está centrada nos ditos do paciente e não apenas nas manifestações de suas convulsões e paralisias. E, mesmo mantendo a referência às categorias da psiquiatria, a psicanálise construiu uma ordenação de sintomas que transcende os estreitos limites da simples observação. E, foi a partir da recategorização deles, universalizando-os, que se pensou em todas as produções do espírito também como sintomas, tal como ensinam o sonho, a arte e a psicopatologia da vida cotidiana. Todas elas são decorrentes do que se joga entre o desejo e a lei.

Neste sentido, podemos até mesmo falar de um mal-estar na civilização que é contemporâneo — o que Lacan chama de modos de gozo do mundo moderno.

Assim, pode-se falar num sujeito moderno? E, os psicanalistas não teriam que lidar justamente com a parte do sujeito que não consegue afirmar-se conforme o modelo moderno, que não é o de um ideal, mas o de um mercado comum? Este fato implica o desaparecimento dos valores, pois, modernamente, o que conta é somente a lei do mercado, que poderia se chamar de ética do lucro.

Para que o sujeito pareça moderno, o sintoma — como o que faz com que cada um tente conseguir o que está prescrito pelo discurso atual, o que se dá pelas vozes do mercado — impõe-lhe que seja sempre jovem, sempre rico, sempre satisfeito, sempre outro. Isto faz com que existam sempre sintomas novos, tantos quantos forem as novas estratégias da linguagem a criar ilusões narcísicas de completude, conforme a ditadura do mercado. Para o sujeito dividido, habitado pela falta, isto tem como conseqüência a produção de novas maneiras dele se confrontar com os objetos suscetíveis de preencher esta falta.

Foi neste ponto que Lacan propôs uma relação da psicanálise com as descobertas de Marx. Segundo Marx, quando o capitalista percebe que o preço pago pela mercadoria, como valor de troca, produz como valor de uso, uma plusvalia, no final ele “... sorri como quando está frente ao encanto de algo que surge do nada”. Por isso, Lacan estabeleceu uma homologia entre a plusvalia e o objeto na psicanálise, que ele chamou de objeto “a” ou de plusgozar [3].

Na visão de Lacan, a renúncia ao gozo, que seria específica do trabalho, se articularia com a produção da plusvalia em um discurso, afirmando: “a plusvalia é a causa do desejo na qual uma economia faz seu princípio”. Isto implica, que o sujeito, a partir do particular do seu gozo, encontre na plusvalia a razão de sua entrada no mercado”.

Por isso, Lacan reformulou a noção de Freud de mal-estar próprio à cultura, definindo-o como “gozar da renúncia ao gozo”

Ainda, segundo Lacan, isto faz com que seja próprio da civilização caracterizada pela ciência e pelo capitalismo, que um dos aspectos da renúncia ao gozo encontre-se no consumo de bens. Bens que, embora facilitem a vida, são impostos, mais que oferecidos, ao consumo, logo, ao desejo. Produz-se com isso, um círculo vicioso, pois tem-se que trabalhar mais para adquiri-los.

Neste ponto, a experiência, entenda-se a clínica, aponta para a emergência de novas formas de o sujeito fugir ao mal-estar.

Dentro da linguagem, na regulação do sujeito pelo outro, intensificados pelo poder da mídia, não haveria novos dispositivos identificatórios que ofereceriam ao sujeito outros modelos de evitar a angústia, através de ideais ready-made, oferecidos em massa, para sujeitos cada vez menos diferentes? Ao confrontar constantemente o sujeito com seus ideais, os meios de comunicação não fazem com que este jamais se sinta à altura deles?

Nesse avanço da linguagem — onde top-model pode ser a senha para um ataque ao próprio corpo, onde “gênio” e loucura se metonimizam, onde “viagem” confunde-se com drogas, que se poderia pensar que os sintomas, como efeito de linguagem, não têm sendo tão múltiplos como toda a produção humana.

Assim, para se pensar numa clínica dita psicanalítica, é necessário uma atualização que permita aproximar a posição do inconsciente e a pulsão aos discursos de nosso tempo, produzindo um aggiornamento do sintoma sobre o qual ela incide.

Será que a globalização da cultura, os sonhos de um fim da história e o apelo a uma nova ordem mundial, reformularia o lugar do sujeito e suas relações, com a ciência nos novos espaços regidos pelo mercado? A psiquiatria dita biológica e seu sistema classificatório das doenças, o DSM (por enquanto, o IV), com sua proposta de um sujeito puro cérebro, não seria uma das conseqüências deste momento?

Fugindo à definição de corpo que a sociedade moderna produziu como sendo apenas um aparelho definido técnica e juridicamente, a psicanálise lacaniana reinvidica que é legítimo retirar deste corpo, por intermédio da noção de gozo, aquilo que o condiciona, que é sua relação com o simbólico, evidenciado nos costumes, nas relações de parentesco, etc.

Para a psicanálise, o sujeito transcende o homem pensado como condicionado unicamente pela genética, como quer a tendência atual das neurociências (mesmo quando sustentando supostas posições psicanalíticas). Em Lacan, o que se propõe é que o corpo também é aparelhado pela linguagem, a qual se atualiza em novos sintomas e seus novos modos de gozo.

Com isto, aponta-se para a possibilidade de uma clínica que se sustente pelo entendimento dos sintomas, onde o que conta é o lugar do sujeito em relação à significação de seus atos. Por exemplo, o lugar do pai na sociedade atual não pode estar subvertido pela própria existência da inseminação artificial? Sendo assim, os analistas não deveriam procurar o pai doador do DNA, mas sim trazer seu nome à consideração científica. O pai psicanalítico, ao ser trans-biológico, é responsável pela consumação do desejo, o que faz dele uma função que articula o desejo com a lei, e não uma presença.

Desta maneira, o sintoma na psicanálise deixa de ser pensado apenas como o que vai mal, e desautoriza que seja medido por escalas de uma suposta saúde mental, assim como desencoraja qualquer reflexão filosófica ou pedagógica a seu respeito.

Ao colocar Marx como o inventor do sintoma, Lacan pode defini-lo como sendo a expressão do Real no Simbólico, reformulando a definição de sintoma — concebido por Freud, a princípio, como uma comemoração de um trauma e, depois, como a expressão de uma realização de desejo, com sua estrutura de metáfora.

Revisto por Lacan na sua vertente Real, o sintoma deslocou a questão do amor ao pai, que está na origem de qualquer sintoma pensado enquanto efeito do Nome-do-Pai, para o Pai do Nome, seu Real como causa. Isto quer dizer que este desenvolvimento final do ensino de Lacan põe em evidência que o sintoma não pertence ao simbólico.

O sintoma, não mais pensado como metáfora, mas entendido como função da letra, leva a se reconsiderar a finalidade e o fim de uma análise. A partir daí, pensada em termos de identificação ao sintoma, a análise pode reduzir-se à letra do sintoma, após havê-lo conectado com o significante [7].

Isto coloca um problema ao analista lacaniano, pois, na medida em que a análise opera com o sentido, esta proposta subverte a idéia de se dar um sentido aos sintomas como o principal agente do efeito de uma análise. Pois, mesmo para reduzir o sintoma ao seu núcleo de Real, ao seu núcleo de gozo, de non-sense, passa-se pelo sentido. E, mesmo o gozo da decifração sendo um gozo fora-do-sentido, produto de um efeito do Real, que Lacan chamou de “escrita antes de Derrida, é pelo semblante do sentido que se pode aceder a ele”.


Em que tratamento

Se não há cura do mal-estar, para que serve, então uma análise? Qual é a sua finalidade?

Desde já, impõe-se que o critério médico de cura, sustentado pela suposta objetividade da modificação de sintomas rigidamente descritos e classificados, subverte-se com a psicanálise e sua universalização do sintoma. 0 psicanalista não pode, portanto, prometer uma cura, mas, sim, um tratamento. Ele não pode prometer a satisfação, mas uma ética outra que a que identifica o bem com o bem-estar.

O analista não pode nem mesmo prometer que a análise terá um fim, embora Lacan tenha proposto que ela deve ser finalizável.

De fato, o que se demanda ao psicanalista? Será que se pode negar que existe uma demanda social, que se identifica com uma demanda terapêutica, que é a de reduzir o sintoma? Será que o psicanalista trabalha para a adaptação do analisante ao mundo capitalista ou para a verdade particular do sujeito?

O analista, sendo ele mesmo um objeto do mercado. deve se lembrar que Lacan insistiu que a ética analítica situa-se além do terapêutico. Como não se pode deixar de levar em consideração o desejo de alívio terapêutico dos sintomas, o que traz à tona o conceito de “desejo do analista”. isto faz com que o analista tenha que se comprometer com a causa do inconsciente, o que, quase sempre, se contrapõe à causa do mercado, já que cada um conta somente com sua verdade particular para responder ao mal-estar.

E não será este o desafio teórico-clíníco que se coloca para o analista de orientação lacaniana? Este desafio coloca uma ordem de razões que implica uma razão das ordens. Por exemplo, pensar a finalidade da análise, ao se pensar as possíveis diferenças entre o fim (finalidade) de uma análise na psicose e em um neurótico, atualiza não somente a questão da relação da psicanálise com estas categorias psiquiátricas, mas também ressalta uma possível doutrina do tratamento, que separa a ação analítica das convenções sociais tradicionais do que se espera como “cura”.

Em termos da orientação lacaniana, estas considerações pensadas com os termos “ estabilização dentro do delírio” e “estabilização fora do delírio” para a psicose, questiona-se se pode ousar estender à psicose o critério de “destituição subjetiva”, termo com o qual Lacan nomeia a posição do sujeito no fim da análise.

Esta questão faz-nos retornar ao início e impõe que, no que se refere à questão do diagnóstico psicanalítico como confrontado ao diagnóstico psiquiátrico, embora neste último se sustentando, o diagnóstico psicanalítico subverte-o. Isto é o que impôs uma utilização do modelo de estrutura — referindo-se à estrutura do sujeito — feita por Lacan para inferir a noção de estruturas clínicas.

Se o inconsciente avança, a psicanálise o faz também, e sempre por intermédio do analista e sua clínica, sem o que seria apenas uma metafísica.

No momento atual, o analista de orientação lacaniana, perplexo, defronta-se com os desafios dos novos modos de gozo impostos pela nova ordem mundial. Ele se vale, para poder refletir sobre estes desafios, da noção de estrutura do sujeito e de uma ampliação da noção de inconsciente. Pensado como diferente da função de recalcado, este constitui um instrumento, para questionar, na exceção que constitui a psicose, o universal da neurose, visto como estilos diferentes do sujeito negar a falta e fugir da angústia.

O analista de orientação lacaniana vale-se, também, da doutrina do fim de análise proposta por Lacan para questionar a formação do analista. E, desse modo, poder produzir uma formalização da clínica que ultrapasse os compromissos pessoais de cada um de seus praticantes, pretendendo a produção de um dispositivo desvinculado dos sentidos dos discursos dominantes. Por mais utópico que isso possa parecer.



[1] J.-A. Miller, “Psicanálise e psiquiatria”, Revista Falo, nº 1.
[2] C. Soller, “El sintoma en la civilización”, Diversidad del sintoma, Buenos Aires, Eol, 1996.
[3] J. Aleman, Lições antifilosóficas en Jacques Lacan. Buenos Aires, Atuca, 1995.
[4] J. Lacan, Radiofonia, Barcelona, Anagrama, 1977.
[5] J. Lacan, Télévision, Paris, Seufl, 1974.
[6] M. P. Souza Leite, “0 homem supérfluo e o pai necessário” - Psicanálise problemas ao feminino, Campinas, Papirus, 1996.
[7] M, P, Souza Leite, “Apocalipse do desejo: o fim faz sintoma”, in Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Nº 9, março/1994.
[8] M. P. Souza Leite, “Pós-joyceanos e anti-lacanianos”, in Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 11º 12, abril/1995.

 

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