Notas sobre a psiquiatria do século XXI e
a psicanálise do século XIX
Márcio Peter de Souza Leite
(in Correio, p.p. 51-54, set/1993)
• De novo, o velho
• Uma nova desordem
• O velho de novo
De novo, o velho
Na linguagem da informática, qualquer adolescente moderno sabe que um hardware não serve para nada sem um software.
A pretensão da psiquiatria para o século XXI tal como foi apresentada no recente Congresso Mundial desta especialidade, que se realizou na cidade do Rio de Janeiro em junho último, pretende alguma coisa assim. Um equipamento, parte física (equivalente ao hardware), movido a serotomina, dopamina, funcionando sem software, que é o conjunto de programas lógicos que permite à máquina realizar as ordens que recebe.
Formado ainda na época romântica da psiquiatria, quando esta disciplina transbordava das suas origens médicas para uma multidisciplinarização abarcativa da complexidade que envolve suas questões, a psicanálise me demonstrou fartamente que as “loucuras” longe de serem produtos da fragilidade do corpo, eram “virtualidades permanentes de uma falha aberta em sua essência”. (Lacan)
A tal ponto a questão do sentido dos atos humanos transcende o meramente biológico, que muitos dos melhores, já antes de mim fizeram sua a famosa citação de Lacan: “Longe da loucura ser um insulto para a liberdade, ela é sua mais fiel companheira seguindo seu movimento como uma sombra”.
E também, para dar a devida dimensão à questão, que “o ser do homem não somente não pode ser compreendido sem a loucura, como ele não seria o ser do homem se em si não trouxesse a loucura como limite da liberdade”.
Pois, justamente contrariando o questionamento que as ditas “doenças mentais” fazem da essência do homem e do seu destino, a tendência demonstrada neste congresso foi de uma medicalização tecnológica da psiquiatria, em flagrante retrocesso das conquistas que retiravam suas questões de um monopólio de saber sustentado apenas em bocas, índices e tabelas estatísticas, desconhecendo o particular e reduzindo o sujeito a uma média numérica.
Assim a modernidade desta especialidade é uma constante referência à tomografia computadorizada (PET), à ressonância magnética (MRF), à monitorização cerebral (BFM), a testes de verificação química de psicopatologias, como o teste de supressão do dexametasona para a depressão (T.S.D.), ou a provocação experimental de ataques de angústia pela infusão de lactato de sódio, bem como a monitorização do êxito medicamentoso pela dosa-plasmática, do fármaco administrado. Sem falar nas escalas que “medem” as psicopatologias como a Maudsley para o D.O.C (Distúrbio Obsessivo Compulsivo), a Hamilton para a depressão, o SADS-L (Schedule for Afective Disorders and Scliizophrenia-file-time version), além de padronizações para a investigação psíquica tipo MMS (Mini Mental State) ou PSG (Present State Examination).
A cliníca psiquiátrica, atualmente uma clínica da medicação, através destes instrumentos (exames, escalas, estatísticas), transformou estes critérios em teorias etiológicas, e num jogo lógico, nos invade com siglas, com pretensões terapêuticas, tipo antidepressivos RIMA (Re-uptake) ou SSIR todos baseados em contraditórias observações quanto à presença ou ausência de determinados neurotransmissores, a atual sede da alma. (Seu nome principal: 5HT)
Não pude conter o chiste de propor a mudança do termo psiquiatria para neuriatria, pois o psiquiatra adepto deste reducionismo é na minha opinião um neurologista especializado em neurotransmissores. Acrescente-se, apenas neste sentido, mantendo a etimologia da palavra psique, a verdadeira psicofarmacologia é a dos placebos, a restante é neurofarmacologia, que a este nível sem dúvida funciona, quando necessária e quando indicada. O que aliás, euforias à parte, no estágio atual do conhecimento não se mostra convicente, porém, é claro que não é esta a opinião, nem o marketing dos capitais interessados na produção destas substâncias. Assim, nesta nova ordem mundial, o discurso lastreado na multiplicação de dividendos tem sido poderoso o suficiente para se fazer ouvir e ensurdecer quase cem anos de investigação das estações do espírito, como Freud - a que chamassem os sonhos, os atos falhos, os sintomas, os chistes etc.
Uma nova desordem
Reduzindo o ser do homem ao correlato do funcionamento do cérebro do rato, o principal instrumento deste atentado ao conhecimento humano parece ser a “revolução nosográfica” conhecida como DSM-III-R, que tem como subproduto a parte psiquiátrica da nova classificação internacional das doenças, na sua décima versão (o CID-10), em breve atormentando a vida dos profissionais do ramo.
Sem entrar nos questionáveis méritos epistemológicos da sua proposta, tida ora como alteorética, ora como empirista, me proponho a comentar o confronto que esta nova convenção traz aos estudiosos da psicopatologia, orientados pela acumulação da experiência produzida pela prática da psicanálise, um dos grandes méritos de Freud foi o de ordenar o campo da psicopatologia, principalmente no que se refere às neuroses.
No fim do século XIX, ordenou este campo, antes esparso e incoerente opondo neuroses atuais a psiconeuroses, reunindo nesta designação quadros antes dissociados entre si. A chave desta organízação seria a angústia, posteriormente formulada como causa do recalque e consequência da ameaça de castração. Tudo isto para dar conta do sintoma, efeito da defesa contra a angústia. Por isto um sintoma detém um sentido, passível de decifração pela análise, tendo como consequência sua modificação.
No DSM-III e no CID-10, abole-se a categoria das neuroses e instala-se um grupo vasto denominado transtornos de ansiedade.
Neste grupo isola-se uma categoria paradigmática “ansiedade endógena com manifestações autonômicas”, ou “síndrome do pânico”, que como diz o nome seria endógena e autonômica. Além do mais, alguns textos (Panic Arixiety and its Treatinerits - da Task Force Refort of the World Psychiatric Association) atribuem sua descrição a um tal de da Costa e... Freud!
Freud em 1894 teria usado o termo neurose de angústia para separá-lo da neurastenia provendo sua descrição: ataques espontâneos, tremores, vertigens, palpitações, que seria a descrição da atual síndrome do pânico com outro livro (Manual de Psiquiatria, Talbott), chega mesmo a se referir ao caso descrito por Freud em “Estudos sobre a Histeria”, Elisabeth R., como um destes casos de ansiedade endógena.
Não creio que estas afirmações possam ser aceitas por um psicanalista. Muito menos se formado na escola da leitura do sentido da obra de Freud orientada pelo eixo: falo-castração-narcisismo.
Mas a principal crítica a isto que se pretende como psiquiatria do século XXI, e a de que esta pretensão de apresentar a angústia como doença seria um retrocesso à descoberta inaugural da psicanálise, ainda no século XIX, de que o sintoma tem um sentido. Sentido articulado às vivências particulares do sujeito, durante sua constituição subjetiva.
Mais ainda as histerias desaparecem. Transformam-se em quadros dissociativos. Também haveria o que pontuar quanto às depressões, que para serem depressões só se forem, segundo o DSM-III, endógenas. 0 resto é distimia. Há também os distúrbios bipolares. Não há mais PMD. De qualquer maneira para o psicanalista a depressão é sempre um sintoma, não uma estrutura e colocá-la como endógena, no estado atual do conhecimento neurofisiológico seria apenas ideológico, não científico.
No campo das psicoses (futuros distúrbios desorganizativos) há uma desconsideração das paranóias e uma enfatização dos transtornos esquizofrênicos.
Quadro este subdividido em tipo I e H, conforme predominem sintomas mais ou menos, o que faz considerar-se sua etiologia. e orientar sua conduta.
Ainda haveria que se considerar os transtornos somatoformes e os transtornos de personalidade.
É claro seria necessário precisar os usos dos termos transtorno, episódio, reação, disfunção que mereceriam uma análise mais acurada. Porém...
O velho de novo
Para a psiquiatria do século XXI passaram-se 100 anos e continuamos no século XIX.
O sujeito afogou-se na serotonina, a sobredeterminação enroscou-se na sinapse, e o sintoma acha que é conduta.
Para esta psiquiatria a cultura humana e suas realizações tem a engenhosidade do raciocínio de um rato no labirinto e sua ética provavelmente se encontre no vademecum veterinário.
Ainda bem que faltam ainda 2370 dias para o século XXI. É o tempo que os analistas têm para divulgar o que aprenderam nos últimos 100 anos.