A psicanálise como diagnóstico da psiquiatria
  Márcio Peter de Souza Leite 
(in Pulsional Revista de Psicanálise, ano XII, nº 120, p.p. 36-40, abril/1999,
in Opção Lacaniana, nº 23, dezembro/1998)

 

Lacan na "Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos escritos" referindo-se à clínica psicanalitíca, diz: "Existem tipos de sintomas, existe uma clínica. Só que ela é anterior ao discurso analítico...".

Afirmar que "existem tipos de sintomas" implica em se tratando da clínica psicanalitica que, quando ao se falar de tipos diferentes de sintomas, se esteja fazendo referência à descrição de fenômenos que seriam observáveis fora da transferência, sendo que a nomeação e classificação destes fenômenos seria uma referência às categorias descritas e classificadas antes da descoberta da psicanálise.

A outra afirmação contida nesta mesma citação, a de que "existe uma clínica", é sem dúvida uma alusão à uma entendida clínica como o resultado da aplicação de critérios com os quais se definiram e se relacionaram os diferentes tipos de sintomas descritos.

Ou seja, a clínica pensada dentro deste sentido, seria uma convenção segundo a qual se identificaria e se classificaria estes diferentes tipos de sintomas, classificação esta feita através de uma sistematização que possibilitou a separação e ordenação destes tipos de sintomas entre si.

Talvez por isto, na conversação de Arcachon, J.A Miller referindo-se à epistemologia das classificações, citou a Lévi-Strauss, que sugere que o princípio lógico que rege as classificações seria a possibilidade de "opor termos que (cito Lévi-Strauss) um prévio empobrecimento da totalidade empírica permite estabelecer como distintos".

Desta maneira uma classificação poderia ser entendida como sendo o resultado do emprego da análise e da comparação por seriação, para facilitar e promover o conhecimento.

Também por isso uma classificação implica sempre em uma nomenclatura, que é o conjunto de termos particulares a uma arte ou ciência, o que na medicina se refere ao que se chama de nosologia, que é o estudo das doenças, e à nosografia que é a descrição delas.

Quanto à outra afirmação de Lacan, ainda na mesma citação, referindo-se à clínica – "só que ela é anterior ao discurso analítico" – aponta ao fato de que Freud e seus seguidores, continuaram usando a nosografia psiquiátrica clássica, tomando dela suas categorias diagnósticas.

Por exemplo Freud, que foi contemporâneo de Kraft-Ebing, teria tomado deste autor o uso que ele fazia do termo perversão, da mesma maneira que utilizou o termo paranóia tal qual Kraepelin o fazia, criticou a inovação feita por Bleuler com o termo esquizofrenia, e utilizou a noção de neurose da mesma maneira que Charcot.

Mas, mesmo assim, Freud fundou sua própria clínica. E ele fez isto através de uma ordenação de uma nosografia e nosologia própria à psicanálise, o que constituía uma ruptura com a psiquiatria da sua época, conseguindo, porém, ao mesmo tempo, mantê-la e subvertê-la.

Exemplo disto foi a invenção feita por Freud de categorias diagnósticas inexistentes na clínica psiquiátrica de seu tempo, como foi, por exemplo, a introdução do termo neurose de angústia, ou o de neurose atual, como assim também foi subversiva para a época a sua proposta de ordenar estes quadros clínicos entre si com o conceito de psico-neurose.

Ainda da mesma maneira se poderia apontar como sendo inovações introduzidas por Freud à neurose de transferência, à neurose narcísica etc., sendo que esta nosografia e nosologia freudianas marcariam a psiquiatria em quase todas suas classificações diagnósticas.

Porém, recentemente, nos anos 80, a partir do DSM-III, a influência da psicanálise sobre a psiquiatria sofreu um questionamento que marcou uma separação nítida entre os critérios da clínica psiquiátrica e os da psicanalítica.

Já desde o fim do século XVIII, devido à grande disparidade dos critérios usados pela medicina nos diversos países, pensou-se em criar um sistema único de classificação, o que deu origem à classificação internacional das doenças, conhecido pela sigla CID, hoje na sua décima versão.

Em relação à classificação dos distúrbios psiquiátricos, esta tentativa de estabelecer uma convenção diagnóstica que fosse de uso internacional, foi efetivada somente a partir de 1946, sendo que as primeiras propostas das classificações destes distúrbios misturavam ecleticamente as opiniões de Adolf Meyer, presente com seu conceito de quadros reativos, misturados com a nosologia de Kraepelin e também com uma marcada influência de Freud, principalmente no campo das neuroses.

A partir de 1980, com a apresentação do DSM-III, que é a terceira versão de uma classificação dos distúrbios mentais proposta pela American Psychiatric Association, a classificação das doenças psiquiátricas recebeu uma nova formalização que se propunha como a-teórica, a-histórica e a-doutrinária. Nesta classificação o princípio fundamental seria o de não se fazer referências às teorias anteriores sobre a etiologia ou patogenia das doenças mentais que não estivessem de acordo como critério do DSM-III, classificação esta que pretendia ser composta unicamente por diagnósticos descritivos vistos como totalmente comunicáveis e empiricamente verificáveis.

0 DSM-III seria portanto um catálogo que pretenderia esgotar todas as formas possíveis do enfermar e apareceria como uma língua nova produzida por um novo modelo, modelo este que seria o que se poderia chamar de clínica da medicação.

Nascido da psiquiatria universitária norte-americana, conhecida como Escola de St. Louis, o DSM-III teria por modelo a resposta padrão à administração de uma substância química específica. Este procedimento denominado de critério operacional pretenderia preencher a ausência de signos patognomônicos e de exames de laboratório em psiquiatria, e pretenderia medicalizar a psiquiatria retirando-a de uma influência filosófica a que estaria submetida anteriormente, principalmente na sua referência à Jasper e à fenomenologia.

A maneira de pensar adotada pelos autores do DSM-III teria sido a conseqüência de uma revolução lógica ocorrida nos anos 30, que pretendeu fundar uma ciência da mente através do formalismo lógico-matemático aplicado às ciências do cérebro. Esta proposta, que foi atribuida a Nobert Wiener e Warren Meculloch, seria a de mecanizar o psíquico assemelhando-o a uma máquina lógica, que pela naturalização da epistemologia, produziria uma filosofia da mente conhecida como cognitivismo. A partir deste novo modelo classificatório que foi imposto pelo DSM-III, e que é o padrão oficial atual da psiquiatria brasileira e do sistema de saúde, impõe-se ao psicanalista perguntar qual o lugar do sujeito nesta mind inventada por este modelo, no qual a única verdade posssível para o sujeito estaria nos humores contidos nas entranhas do neurônio.

O psicanalista sem dúvida concorda com a existência de diferentes tipos de sintomas. O próprio Lacan articulou a questão que coloca a relação do universal dos diversos tipos de sintomas com o particular de cada sujeito, através da idéia de um "envoltório formal do sintoma", e esta seria a sua resposta ao ordenamento dos sintomas feito pela clínica psiquiátrica, resposta esta feita através da teoria do significante.

Assim ainda na "Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos escritos", Lacan, logo após se referir à existência dos diferentes tipos clínicos acrescenta: "que os tipos clínicos resultem da estrutura eis o que já se pode escrever, ainda que não sem hesitação... ". Ou seja, Lacan não mudou, nem poderia mudar, as categorias descritivas da psiquiatria clássica, porém avançou tentando construir as estruturas que condicionariam estes diversos tipos de sintomas.

Por isto, as entrevistas preliminares se colocariam como um meio do analista investigar estes tipos de sintomas, permitido-lhe fazer um diagnóstico preliminar que lhe possibilite concluir algo sobre a estrutura clínica da pessoa que veio consultá-lo. Pois o que revelaria esta estrutura seria a defesa frente à angustia, fazendo com que a divisão diagnóstica entre neurose, psicose e perversão seja feita a partir da diferença dos efeitos do tipo de defesa que o particular a cada uma destas estruturas produz.

Assim por exemplo, para diagnosticar uma estrutura perversa, não basta ao analista somente perguntar ao paciente sobre sua vida sexual, pois o que define o diagnóstico em psicanálise não é a conduta, o que define o diagnóstico em psicanálise é a posicão subjetiva frente ao sintoma, e isso faz com que o diagnóstico em psicanálise não possa ser separado da localização subjetiva. Ou seja, na experiência analítica, ao tipo do sintoma que o analisante apresenta, deve-se acrescentar a posição que este assume frente ao seu sintoma, o que é feito a partir do seu dizer e não dos seus ditos. Trata-se, portanto, de distinguir entre o dito e uma posição frente ao dito, sendo esta posição frente ao dito o próprio sujeito.

Levando em conta a posição do sujeito frente ao sintoma e não somente o tipo de sintoma, talvez o discurso psicanalítico pudesse esclarecer a clínica psiquiátrica e desta maneira a psicanálise poderia produzir uma clínica nova que não dependesse mais da psiquiatria.

Desta forma a especificidade de uma clínica psicanalítica que não dependesse da psiquiatria, se deveria ao fato dela não situar o diagnóstico no sintoma, mas sim onde, nesse sintoma, se implica urna fantasia que o determina, e desta maneira se deslocaria uma clínica centrada unicamente nas formas do sintoma, para uma outra onde se privilegiaria as modalidades da posição do sujeito na fantasia.

Tomando-se a definição de paradigma feita por Kuhn, como um conjunto de pressupostos compartilhados pela comunidade de praticantes de uma ciência, poderíamos perguntar pelos paradigmas da psiquiatria representada pelo DSM-III, e também pelos da psicanálise e indagar se ele poderiam se articular entre si.

O paradigma do DSM, foi visto por uns como epidemiológico, por outros como neo-positivista, ou pragmático, ou fisicalista etc, não havendo nenhum acordo quanto ao seu modelo teórico. Não poderia por isto mesmo sugerir-se que o DSM-III, com seu a-teorismo, também implicaria a existência de um a-paradigmatismo?

Mas, além da incoerência epistemológica que este modelo apresenta, o que nele mais incomoda ao analista é a consequencia terapêutica que ele impõe, conseqüência que é o recurso à psicofármacos como único agente de transformação possível.

Recurso este que exclui toda e qualquer responsabilidade do sujeito pelos seus sintomas, fazendo com que, por detrás da proposta terapêutica deste tipo de psiquiatria, esteja a ideologia de um cérebro sem sujeito.

Fato este que contradiz frontalmente a posição da psicanálise, posição a que se refere Lacan, desta vez em "A Ciência e verdade", onde diz: "Somos sempre responsáveis da nossa posição de sujeito. Que isto se chame, onde quiserem, terrorismo".

Podemos concluir com Lacan que a resposta da psicanálise à esta psiquiatria é uma resposta feita pelo recurso à ética da psicanálise, que é uma ética desarticulada dos ideais e do bem-estar e que visa o tratamento do sintoma não tomado como uma mera conseqüência do funcionamento neuronal, mas uma ética que toma o sintoma como função de um real que é a estrutura que se expressa na linguagem, e que compromete o sujeito.

Concluindo, se na psiquiatria o diagnóstico se refere unicamente à descrição de fenômenos pensados como estaticamente, invariantes, a psicanálise sem negar a existência destes fenômenos, vai além da sua descrição e indaga sobre sua estrutura de linguagem e responde a isso com formalizações que ampliam o limitado campo da psiquiatria.

Respondendo a esta ampliação, atualmente na psicanálise de orientação lacaniana recorre-se a outras formalizações da sistematização sintomática, como, por exemplo, faz ao recorrer à noção de doenças da mentalidade, opostas ao que poderia ser formalizadas como doenças do Outro, ou usa-se de construções como o que se chama de lapsos do nó, que foram os últimos recursos usados por Lacan para formalizar o que nos critérios anteriores seria inclassificável.

Por isso, o analista se aproxima ao que sempre disseram os bons médicos, dando o devido lugar ao diagnóstico: deve-se tratar o doente, não a doença.

 

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