O sonho do cérebro
Márcio Peter de Souza Leite
(in Revista Insight, 1999)
• O sonho no cérebro de hoje
• O cérebro no sonho ontem
• Sonho e cérebro: o real
O sonho no cérebro de hoje
Muito se tem escrito sobre os sonhos. Parece que nunca será suficiente. Nos dias de hoje a polêmica que envolve os sonhos, está permeada pela influência da filosofia da mente, com sua decorrência que é cognitivismo e suas ramificações como a inteligência artificial, além principalmente das neurociências.
Dentro deste novo momento do conhecimento o cérebro passou a ser entendido unicamente como um sistema físico, funcionando como se fosse um computador, produzindo-se, como conseqüência desta posição, a ausência de um sujeito desejante, de um sujeito que possa ser implicado na responsabilidade de seus atos e de suas escolhas.
Com esta nova posição substituiu-se a idéia de sujeito desejante, de um sujeito implicado na realização de seu destino, pela concepção de um homem neuronal, reduzindo-se com isso o humano a um saco de neurônios.
Dentro das investigações neurobiológicas o sonho foi reduzido meramente a uma conseqüência do funcionamento cerebral. Demonstrou-se que o sonho ocorre regularmente durante o sono e entendeu-se que o sonho seria apenas o resultado do processamento da informação sensorial pelo cérebro.
Haveria, desde esta hipótese, um duplo aspecto desta informação: um primeiro relacionado ao processamento de informações do mundo exterior e do corpo, e uma outra forma de processamento que decorreria da informação não dependente da entrada sensitivo-sensorial naquele momento e que faria referência ao material interno guardado previamente na memória.
Para sustentar esta posição, os defensores da teoria do sonho como efeito do processamento de informação sensorial se valem de experiências que pretendem ter demonstrado uma localização cerebral que daria conta do seu desencadeamento, o que ocorreria nos núcleos celulares bulbo-pontinos. Daí se desativaria o sistema reticular ascendente no mesencéfalo gerando com isso a produção de um neurotransmissor, a serotonina.
Decorreria daí o fenômeno a que se chamou de período REM do sono, sigla que se refere a rapid eyes movement, e que é concomitante à aparição de alterações elétricas localizadas no córtex visual, as quais por sua vez podem ser registradas através do eletro-encefalograma.
O sono portanto, desde o ponto de vista do registro biológico, tem dois componentes, um que se chama NREM, (no REM) e outro que se chama REM (rapid eyes movement). A primeira parte do sono se caracteriza por não apresentar estes movimentos oculares rápidos, sendo que a segunda fase do sono apresenta movimentos oculares rápidos.
É no momento do sono REM, caracterizado pelos movimentos oculares rápidos, que ocorre o sonho, concomitantemente a uma série de fenômenos neurovegetativos, além de uma grande atividade cortical e uma acentuada atonia muscular.
O cérebro no sonho ontem
Porém existem outros pontos de vista possíveis sobre os sonhos. O próprio lugar que eles ocuparam no pensamento dos homens em todas as épocas, sugere que sua importância transcende sua explicação neurobiológica.
Os sonhos desde sempre fizeram parte dos sistemas de crença das diversas culturas. Os sonhos foram sempre o senhor absoluto do mundo interno de cada homem, sendo mesmo a manifestação viva da expressão de uma realidade que transcende os limites da sua consciência e do seu livre arbítrio.
Daí os sonhos sempre haverem cumprido um papel formador da cultura ao introduzir um além da lógica estabelecida, fato este que confronta o sujeito com um desconhecimento que termina por modificar sua percepção da realidade. O sonho ao impor a experiência do invisível, aponta a uma possibilidade de percepção que vai além dos sentidos, ampliando a percepção humana.
Por isso o sonho ter sido sempre associado à percepção do futuro. Já no Egito antigo o sonho foi utilizado como recurso para se encontrar a cura das doenças. Nos relatos bíblicos os sonhos expressam o acesso a um saber exterior à realidade imediata dos fatos. Na Grécia o sonho foi investigado tanto pelo seu efeito de obstáculo à lógica, como também foi entendido como mensagens divinas. Na idade média os sonhos eram pensados como sendo o veículo usado pelos poderes diabólicos ou divinos.
O iluminismo, com ruptura que produziu na ordem teológica que determinava o entendimento do mundo de então, possibilitou a existência do individualismo, fato que permitiu o entendimento psicológico dos sonhos, ao se admitir seu caráter único e particular para cada um.
Esta guinada da percepção do homem sobre seu lugar no mundo e o significado de suas expressões psíquicas foi efetivada principalmente por Freud, que vindo da neurologia, ao descobrir o inconsciente, enxergou não só um além do cérebro no sonho, como desfez sua interpretação mística, situando o sonho como um exemplo que demonstra o descentramento do homem em relação à sua consciência.
Freud igual que a neurobiologia contemporânea, também partiu da premissa do sonho como efeito de um processamento da informação sensorial. Freud tal qual a neurobiologia atual também apontou duas fontes para as informações a serem processadas: Uma relativa ao mundo exterior e ao corpo e a outra relativa ao material interno guardado na memória.
O que difere Freud da neurobiologia é que Freud não se limitou a descrever o fluxo do input e do output dos estímulos, ou a descrever os ciclos do sonho, mas os relacionou com a questão do desejo.
Ao introduzir a questão do desejo nas produções do espírito, Freud subverteu uma orientação unicamente biológica da condição humana, e fez do desejo uma ponte do passado com o futuro, ressituando o homem não como um mero efeito de uma regulação maquínica, mas situando a essência mesma do humano no desejo. Desejo este que se expressa pela máquina utilizando a máquina neuronal, porém sem se reduzir a ela.
Com esta intervenção, que é a concepção de aparelho psíquico como diferente do cérebro, a partir de Freud a relação do homem com a natureza pode ser expressada de maneira diferente. Entre elas uma subversão do tempo cronológico, tempo que regula os ritmos biológicos, e aparece subvertido por aquilo que os sonhos ensinam, apontando a um outro tempo para o sujeito.
Freud expressou isso ao término da “Interpretação dos sonhos”, quando afirmou: “Diríamos que o sonho nos revela o passado, pois procede dele em todos os sentidos. No entanto, a antiga crença de que o sonho nos mostra o futuro não carece por completo de verdade. Representando-nos um desejo como realizado, nos leva realmente ao futuro. Mas este futuro que o sonhador toma como presente está formado pelo desejo indestrutível conforme modelo de dito passado”.
O sonho abordado pela psicanálise, vai além da sua causação biológica. O sonho abordado pela psicanálise permite questionar a essência do humano, matéria feita de sonhos. O sonho abordado pela psicanálise subverte a noção do real, e demonstra que cada um de nós, embora tenhamos a mesma estrutura cerebral, vive num mundo único e sem rival.
Sonho e cérebro: o real
Qual a verdade revelada pelo sonho? Seria a verdade de uma realidade condicionada unicamente pelo funcionamento cerebral, que criaria o sonho como uma vivência decorrente de um processamento da informação sensorial, ou o sonho atingiria a essência do ser e apontaria a um desejo que constitui o fio do seu destino?
Uma paciente de Freud lhe contou um sonho que por sua vez ela havia escutado em outro lugar. Ele foi sonhado por uma pessoa que havia passado vários dias, sem um instante de repouso na cabeceira da cama de seu filho que estava gravemente doente.
A criança morreu e o pai dela pode ir finalmente deitar-se para descansar no quarto ao lado de onde se achava o cadáver da criança. Deixou um amigo velando o corpo da criança, e manteve a porta semi-aberta por onde entrava a luz das velas que foram postas ao lado do caixão.
Depois de algumas horas de sono, o pai da criança que havia morrido sonhou que seu filho se aproximava da cama, lhe tocava o braço e murmurou no seu ouvido, num tom de acusação: “Pai, não vês que estou queimando?”
Ao ouvir estas palavras ele acorda sobressaltado, percebe uma claridade intensa que ilumina o quarto onde seu filho morto estava sendo velado, corre para lá encontrar seu amigo que ficara tomando conta do caixão dormindo, e vê uma vela caída sobre o caixão que havia posto fogo na mortalha.
Como explicar este sonho? Se tomamos a hipótese dele ser apenas o processamento da informação sensorial, poderíamos supor que a claridade que entrou pela porta aberta, ao estimular seus olhos, provocou a necessidade de processar este estímulo.
No entanto, Freud, na interpretação deste sonho, após conconcordar com esta explicação dá um passo a mais, e se pergunta o porquê do conteúdo do sonho, porque o filho teria dito ao pai: Não vês que estou queimando?
Mais uma vez Freud admite que esta frase ouvida pelo pai possa ser somente a elaboração de um estímulo anterior, pois não seria improvável que o filho pudesse haver se queixado dessa maneira ao pai, visto haver apresentado febre na evolução de sua doença.
Qual o desejo que se realiza neste sonho? Freud aponta que no sonho o filho se comporta como se estivesse vivo, e este seria o desejo que se realiza neste sonho. O que Freud não diz, é o que vai além do resto diurno desagradável que comporta a recordação do filho morto, e que atinge o pai na sua própria condição de mortal, pois ao negar a morte do filho também estaria sempre negando também a sua.
O Não vês, da frase dita pelo filho ao pai, aponta ao que ele nada pode fazer para impedir sua febre, impedir sua doença, e seria uma construção do pai frente à culpa por haver deixado o filho morrer.
Qual é então a realidade que acorda este pai? Qual é a verdade deste doloroso momento? Qual é então a realidade que conforma o destino de qualquer homem? Seria ela constituída apenas pelos estímulos sensoriais, no caso deste sonho, pelo clarão produzido pela mortalha pegando fogo, ou pela dor, pela culpa, pela existência insofismável da morte que se apresenta a um pai que perdeu seu filho mais próximo? O real a que se confronta este pai é o do seu filho queimar pelo fogo ou queimar pela febre?
Lacan comentando este sonho e sua interpretação por Freud, indaga: “Por que então sustentar a teoria que faz do sonho a imagem de um desejo, com um exemplo em que, numa espécie de reflexo flamejante é justamente uma realidade que, quase decalcada, parece aqui arrancar o sonhante de seu sono?”
Do que é que o filho queima?
“Do peso dos pecados do pai”, nos diz Lacan.
Qual é então a realidade que constrói este sonho, qual é então a realidade que constrói a vida que por sua vez constrói os sonhos?
O que o sonho mostra é a ruptura entre percepção e a consciência. Este espaço é o que Freud chamou de a outra cena. A outra cena é este espaço que depende do cérebro, depende da percepção, depende da realidade, depende do clarão produzido pelo fogo, mas só toma sentido em função de uma outra maneira de funcionamento da mente ao qual Freud chamou de processo primário.
Quando o pai da criança morta é estimulada pelo clarão do fogo o que fez com que ele não se despertasse? Por que antes de acordar ele sonhou?
Antes de acordar o clarão existia não para a percepção do pai, mas tão somente para sua consciência. Enquanto isso o sonho existia neste outro lugar entre as percepção e a consciência que Freud chamou de outra cena.
Nesta outra cena o sujeito quer continuar a dormir, e dormir aqui significa mais que sua definição biológica, significa fazer o ser se aproximar de um ideal que constitui seu destino, nem que seja apenas o de evitar o desprazer.
O problema que este sonho coloca então, mais do que questionar a relação do prazer e da realidade, é sobre o que é que faz a pessoa acordar. Lacan neste ponto se pergunta: “O que é que desperta? Não será, no sonho, uma outra realidade? Outra realidade que é da criança que está perto de sua cama do pai e lhe murmura em tom de acusação: Pai não vês que estou queimando?”
Não será que estas palavras passam a realidade que causou a morte da criança?
Onde está ela, a realidade neste acontecimento?
Temos neste exemplo, como de algum modo acontece em todos os sonhos, o embate entre a ilusão de que nossa vida é o efeito do processamento da informação sensorial e a demonstração de que este processamento de informações veicula a essência desejante do homem, desejo este que o faz se referir a uma outra realidade, a um mundo interno que apenas toca, se apóia no externo.
Assim, um encontro se dará sempre entre o sonho e o despertar. Um encontro se dará sempre entre aquele que dorme e cujo sonho não conheceremos e aquele que só sonhou para não despertar.
Chegado neste ponto Lacan pergunta: Não despertaríamos então apenas para continuar o sonho que nos permite dormir?
O despertar, como não ver que ele tem um duplo sentido — que o despertar que nos restitui a uma realidade construída e representada, tem duplo emprego?
Conclui-se que o real é um além do sonho, e que temos que procurá-lo no que o sonho escondeu.
É este o real que comanda nossas vidas, e é a psicanálise que o designa para nós.