Travessia da fantasia e identificação ao
sintoma: lógica ou política?
Márcio Peter de Souza Leite
(in Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, número 26, abril/2000)
I. Política do tratamento e fim da análise
II. Fim da análise: travessia da fantasia, identificação ao sintoma
III. O real vence o verdadeiro
I. Política do tratamento e fim da análise
Uma das significações da palavra política refere-se à habilidade no trato das relações humanas com vista à obtenção dos resultados desejados. A palavra política, aplicada à psicanálise permite diferenciar, tanto um uso referido à política em geral, como à política da psicanálise ou à politica do tratamento [1].
Lacan no escrito "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" [2] introduziu na direção do tratamento a clássica tripartição feita Clausewitz entre tática, estratégia e política, assimilando-os respectivamente à interpretação, à transferência e à finalidade da análise. Desde este ponto de vista, tática e estratégia organizam-se a partir de uma política, que por isto mesmo, no caso da psicanálise, refere-se aos (cito Miller) raciocínios e argumentações que concernem a finalidade do tratamento [3].
Na teoria dos jogos, o recurso à estratégia depende de uma política, que a pode ressignificar, tornando possível enganar o adversário, o que pode ser feito de duas maneiras: o engodo e o blefe. O engodo seria não seguir as regras do jogo, ou seja, seria colocar-se fora da convenção significante. O blefe, consiste em não seguir o plano que se pode deduzir do emprego da tática, e trata-se de uma estratégia possível de ser incluída na política do jogo.
No texto "A instância da letra no inconsciente ou a razão depois de Freud" [4] Lacan, referindo-se à sessão analítica, fazendo uso de uma metáfora bélica, afirma: "...se posso fazer meu adversário cair no engodo com um movimento contrário a meu plano de batalha, esse movimento só exerce seu efeito enganador na medida em que eu o produza na realidade para meu adversário... é claro que, minha movimentação de tropas de há pouco pode ser compreendida nesse registro convencional da estratégia de um jogo, onde é em função de uma regra que engano meu adversário, mas, nesse caso, meu sucesso é avaliado na conotação da traição, isto é, do Outro que garante a Boa Fé" [5].
Quer dizer, qualquer política, inclusive a da direção do tratamento analítico, está imersa em uma convenção significante. A teoria dos jogos demonstra que nos casos de alguns jogos, onde o jogo é de soma zero e a informação perfeita (ex. jogo de xadrez) a partida está totalmente determinada. A conversação entre os jogadores não influi no resultado porque as estratégias ótimas existem independentemente deles. Para outras situações (ex. jogo de pôquer), o blefe está incluído na previsão das estratégias e forma parte das jogadas possíveis e suas intervenções aparecem no cálculo. Ajustando esta condição à ação analítica, Lacan no texto "A coisa freudiana ou sentido do retorno a Freud na psicanálise" [6], no apartado a ação analítica, referindo-se a que o analista intervém na dialética da análise cadaverizando sua posição, diz que convém ao analista que ele esteja advertido da diferença radical entre o Outro a quem sua fala deve endereçar-se e a esse segundo outro, que é o que ele vê: "O que se chama lógica ou direito nunca é nada além de um corpo de regras que foram laboriosamente ajustadas num momento da história, devidamente datado e situado por um sinete de origem, ágora ou foro, igreja ou partido. Nada esperarei dessas regras, portanto, fora da boa-fé do Outro, e, em desespero de causa, só me servirei delas, se o julgar conveniente ou for obrigado a isto, para divertir a má-fé" [7].
Posteriormente, no Seminário XVI, Lacan assimila o conceito marxista de mais-valia ao objeto a, o que possibilita articular a política ao sintoma e sua interpretação, com o gozo, e com os discursos que o regulam. No Seminário XVII Lacan justifica esta aproximação: "Só é factível intrometer-se no político se se reconhece que não há discurso, e não só analítico, que não seja do gozo, ao menos quando se espera dele o trabalho da verdade" [8].
Coerente com esta posição, em Lituraterre [9] Lacan aproxima a política da psicanálise ao que depois chamaria de semblante: "O sintoma institui a ordem em que se revela nossa política, implica por outra parte que tudo o que se articule por esta ordem é passível de interpretação. É por isto que tem justa razão por a psicanálise como cabeça da política. E isto poderia não ser muito fácil para o que foi considerado como política até aqui, se a psicanálise tivesse conhecimento disso".
O conceito de gozo ressignifica o enfoque econômico da metapsicologia freudiana centrado numa energética, para um enfoque econômico centrado no que Lacan chama de economia política do gozo, o que implica que o gozo como tal tem uma distribuição que é efeito da estrutura do discurso. A idéia da distribuição do gozo como efeito da estrutura do discurso, refere-se à definição de economia política como ciência das leis da produção, da distribuição e do consumo das riquezas, ao que os tratados de economia acrescentam a circulação das riquezas [10].
A produção do gozo é coextensivo a uma economia política porque, enquanto satisfação da pulsão, o gozo impõe uma relação com a contabilização da satisfação, e na analogia com a economia política, pode ser pensado em termos de ganho e perdas. O sistema simbólico introduz para o falante, no que se refere à satisfação sexual, como efeito da desnaturalização operada pelo significante, uma dimensão de perda de gozo.
Porém, a perda principal a que o sujeito está submetido é a perda de amor, e esta ameaça faz o sujeito renunciar ao gozo, produzindo o paradoxo da ética que é o fato de que quanto mais virtuoso o sujeito, mais ele se recrimina, produzindo um gozo que equivale à renúncia da satisfação, pois quanto mais se renuncia ao gozo, mais o super-eu se faz exigente.
O objeto a definido (no Seminário XVI) como preparado especialmente pela sua estrutura para ser o lugar da captura de gozo [11], o coloca numa dupla função: a de de causa de desejo, o que o faz responsável da mortificação do corpo pelo significante, e também na função de captura deste plus, deste excesso de gozo, que é a recuperação de uma perda, que é a perda de gozo devido à renúncia do gozo.
A esta função do objeto a como recuperação de gozo, Lacan chamou de mais-de-gozar, relacionando-o com o conceito marxista de mais-valia e com lustgewinn, ganho de prazer, introduzido por Freud na análise dos chistes.
Privilegiando-se então o uso da palavra política, que a relaciona com a tática e estratégia, e também com a economia política, pode-se inferir que a política da sessão analítica decorre da orientação que visa possibitar o fim da análise que leve em consideração o sintoma como modo de gozar. Por isto uma política para a sessão analítica deve se valer de uma concepção de fim de análise que considere uma economia (política) do gozo, o que faz o analista ter de valer-se da (cito Miller) redução do fator quantitativo [12] visto que o significante não tem só o efeito de mortificação do corpo, mas é causa do gozo, e produz libido sob forma de mais-de-gozar.
II. Fim da análise: travessia da fantasia, identificação ao sintoma
De que maneira uma política do tratamento poderia articular-se com uma lógica do tratamento? J.A. Miller no texto "Introdução à lógica da tratamento do pequeno Hans, segundo Lacan" [13] opõe a estrutura do discurso à lógica do tratamento. A estrutura do discurso comporta transformações decorrentes da distribuição do gozo, havendo uma circularidade infinita decorrente da estrutura permutativa dos discursos. A lógica do tratamento pelo contrário, apoia-se na idéia de que para o sujeito há um número limitado de significantes essenciais que permutam, e quando estas permutações ocorrem há uma mudança qualitativa que permite a possibilidade da conclusão do tratamento. Desta forma a questão da conclusão do tratamento deve colocar-se em respeito à repetição de gozo, o que torna necessário uma questionamento se existiria uma lógica formalizável do fim do tratamento que vá além da estrutura do discurso.
A formalização do final de análise, (Miller) [14], encontrou em Lacan duas vertentes diferentes: uma primeira, que não constitui propriamente uma doutrina do fim de análise, se daria através da proposta da desidentificação ao falo, que centrada na noção de cumprimento da metáfora paterna, institui o Outro.
Uma segunda vertente ocorreria não como uma desidentificação ao falo, mas com a queda do objeto a. Esta posssibilidade, ao contrário da desidentificação fálica que institui o Outro, produz o desvanecimento do Sujeito Suposto Saber, o que ocorre pela redução libidinal da fantasia, que foi formalizado como travessia, tendo como efeito uma destituição subjetiva, e revelando-se o segredo do gozo do Sujeito.
Há também em Lacan a conciliação entre estas duas vertentes, pois além do efeito semântico do significante, também existe uma outra face do significante, a letra, que tem função de gozo, mas está fora da significação. A este dupla função do significante é o sentido-gozado, entendido como efeito do investimento libidinal na significação.
Antes de ser relevada a aspecto do significante como produtor de mais-de-gozo, o que ressignificou o lugar do corpo na psicanálise, a ação analítica apontava ao cálculo do significado a partir dos tipos de articulação dos significantes, apresentados por Lacan como metáfora e metomínia, não há possibilidade de cálculo da libido. É esta perspectiva que deve orientar a política do tratamento, pois o ato analítico ao se produzir entre a redução significante e a redução quantitativa [15], produz uma ruptura de causalidade entre o significante e o gozo, visto a libido investir o efeito semântico do significante. Como é justamente na fantasia que a libido se articula ao efeito do significante, o desvestimento libidinal da fantasia determina o fim da análise como passe, e por isso a política da sessão analitica, que visa à travessia da fantasia, aponta a um desvestimento da fantasia, que é o que Lacan denominou travessia da fantasia.
Mas se o significante não tem somente efeito de mortificação do corpo, mas é também causa do gozo, o significante não atrai a libido, mas a produz em forma de mais-de-gozar, e é a isso que é o que Lacan chama de sintoma, referindo-se a que a própria fala está implicada no gozo, como aponta o conceito de falasser.
O sintoma vai além da fantasia concebida como efeito do um corpo mortificado pelo significante. Se o significante mata o gozo, da mesma forma o produz fazendo que a mortificação do corpo pelo significante não seja o essencial, pois o significante tem uma incidência de gozo sobre o corpo, e é a isso que Lacan chama de sintoma, pensando-o como um real, que através de seu efeito de mais-de-gozar determina o regime de gozo do ser falante.
A formalização do fim da análise, concebido como travessia da fantasia, encontra uma complementação na noção de identificação ao sintoma [16] que seria um equivalente a um "eu sou como eu gozo" [17], o que retira o fim da análise de estar referida unicamente a um desinvestimento libidinal, e a coloca como saber haver-se aí com seu sintoma [18]. O sintoma assim pensado não é mais mensagem, mas função da letra que resulta dos acidentes da história, na medida que a letra é o que condiciona a história, e por isto tem valor de gozo. Esta redução do sintoma à letra produz uma renovação do estatuto do simbólico, produzindo com isto uma varidade (verdade mais variedade) do sintoma, na medida que sua variedade está marcada por uma verdade irredutível.
O inconsciente formalizado como inapreensível, é (cito Lacan) alguma coisa que vai mais longe que inconsciente [19], marca a dimensão da impostura, do engano, da mentira do simbólico, introduzindo uma inacessibilidade do real, fazendo com que o inconsciente deva ser apreendido fora de uma busca do sentido.
Seria então possível articular-se travessia da fantasia com identificação ao sintoma? Seria possível conciliar uma lógica do tratamento analítico com uma política do tratamento? Como entender a conclusão do relatório da Escola da Causa Freudiana, apresentado no primeiro Congresso da Associação Mundial de Psicanálise - "O passe e os destinos psicanalíticos do sintoma" - que afirma que a identificação ao sintoma não deve ser correlacionada à travessia da fantasia nem de forma necessária, nem de forma suficiente?
Tomemos a proposta feita por J.A. Miller do passe perfeito [20]. Passe perfeito seria o caso em que se observasse no final de uma análise um desinvestimento súbito e radical da relação com o analista, com a conseqüência da expulsão do sujeito para fora do discurso analítico. Esta expulsão subjetiva aconteceria quando o gozo primordial suprimido é colocado em oposição ao sujeito. Dentro deste raciocínio o objeto a em oposicão ao sujeito deixa o lugar que tinha na fantasia, perdendo sua função de causa do desejo do analisante. Ou seja o objeto a deixa de ser semblante e se torna real para o sujeito, fazendo do simbólico semblante em função de sua inconsistência.
O passe perfeito privilegia a relação sujeito barrado-objeto a, que é a escrita da fantasia. O passe perfeito comporta um desvinculação ao analista diferente de uma desidealização, pois é um desinvestimento libidinal que corresponde ao que Lacan chamou de travessia da fantasia. Porém não se atravessa um sintoma, um sintoma tem que se viver com ele, um sintoma implica em saber haver-nos com ele, o que faz com que o passe não reduza ao desinvestimento libidinal.
Como limite ao passe perfeito pode-se apontar que a travessia da fantasia concebida como desinvestimento da fantasia não modifica a permanência da libido, o que mantém o sintoma como modo de gozar. Daí a solução introduzida por J.A Miller do parceiro-sintoma, ou seja o Outro como meio de gozo, pois se o gozo é auto-erótico, autístico, mesmo assim inclui o Outro, porque o gozo se produz no corpo do Um através do corpo do Outro [21].
A identificação ao sintoma e a travessia da fantasia, pensada desde o modelo do passe perfeito, concordam na produção de uma renúncia ao simbólico, fazendo da travessia da fantasia uma travessia do simbólico ao real, o que torna possível que a identificação ao sintoma possa decorrer de um fim de análise, concebido desde a perspectiva da travessia da fantasia. A correlação entre estas duas formalizações do fim de análise, na conversação do Rio de Janeiro em 1998, foi comparada por J.A Miller à uma questão liliputiana, aludindo a um debate sobre o lado correto pelo qual se deve começar a comer um ovo.
III. O real vence o verdadeiro
Decorrente da travessia do simbólico ao real, é um erro supor que o analista interpreta o inconsciente, pois a interpretação é primordialmente a do inconsciente [22]. O inconsciente quer ser interpretado, e como interpretar é decifrar, desde a mudança de perspectiva que comporta uma ênfase no real, coloca-se a atenção não mais no sentido conseqüência do descimento, mas no gozo do ciframento.
A possibilidade de se produzir uma ruptura entre significante e o gozo deve-se a que a libido investe o efeito semântico (semântica enquanto leis de transformaçào do sentido) do significante, e foi a isso que Lacan chamou de sentido-gozado que é o investimento libidinal da significação enquanto efeito semântico do significante. O fim da análise depende de um desivestimento da fantasia, que corresponde à travessia da fantasia. Como o significante não só mortifica o corpo como também tem uma incidência de gozo sobre o corpo localizado no sintoma. J.A Miller [23] propõe uma mudança de perspectiva para ação analítica que vise o sintoma como um além da fantasia, como um obstáculo ao fim da análise. Então se o passe não é um simples caso de desivestimento libidinal [24], impõe-se a questão do modo de gozar de cada um, o que aponta o Outro definido como modo de gozo, chamado por Miller de parceiro-sintoma.
E como então ir além do semântico, se o real exclui toda espécie de sentido? J.A. Milller no curso "A experiência do real no tratamento analítico [25] opõe a interpretação como decifração referida ao sentido do sintoma, à interpretação como desarranjo, referida ao gozo. A decifração diz respeito ao recalcado e seu retorno, o desarranjo se refere ao inconsciente não recalcado. A interpretação como desarranjo introduz a noção de falasser, o que possibilita abordar o corpo vivificado pelo significante. No falasser a função do inconsciente se completa com o corpo, com a que há de real no corpo. Por isso o sintoma deve ser pensado a partir da fantasia e isto é o que Lacan chamou de sinthoma. Por isso há que se reter o escrito na palavra e conduzir o sujeito aos significantes unários, insensatos, que funcionado como fenômenos elementares, produzem um deciframento que não dá sentido.
Será então a sessão analítica, proposta como uma unidade a-semântica, que visa apontar ao sujeito seu gozo, uma questão da lógica, ou da política do tratamento?
[1] Miller, J.A, Política Lacaniana, Biblioteca de la colecion Diva, Bs. As, 1998.
[2] Lacan, J., in Escritos, J. Zahar Editor, RJ., 1998, p.591.
[3] Miller, J.A., op. Cit.
[4] Lacan, J., in op. Cit .p .496.
[5] Lacan, op. Cit, p. 529-30.
[6] Lacan, J.,op. Cit., p. 402.
[7] Lacan, J., op. Cit. p. 432.
[8] Lacan, J., Sem. Livro XVII, O avesso da psicanálise, J. Zahar editor, RJ., 1992.
[9] Lacan, J., in Literature, Paris, 1971, num 3, p. 3-10.
[10] Lalande, A., Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, Martins Fontes, S.P., 1993.
[11] Lacan, J., De um Outro a um outro, 1968-69, sem. Inédito.
[12] Miller, J.A., La logica de la cura, EOL, Bs. As, 1993, p. 9.
[13] Miler, J.A., O osso de uma análise, Biblioteca Agente, Salvador, 1998.
[14] Miller, J.A., op. cit.
[15] Miller, J.A., op. cit.
[16] Ibid.
[17] Ibid.
[18] Lacan,J., L'insu que sait de l'une bévue s'aile a mourre, sem. Inédito, 11 nov. 1976.
[19] Ibid.
[20] Miller, J.A., El pase perfecto, in El peso de los ideales, Ed. Paidos, Bs As, 1999, p. 137.
[21] Miller, J.A., O osso da analise, op. Cit., p 107.
[22] Miller, J.A., La interpretacion al reves, in Entonces..., Minilibros Eolia, Bs. As., 1996, p.7.
[23] Miller, J.A., O osso de uma análise, op. Cit.
[24] Miller, J.A., O osso de uma análise, op.cit.
[25] Miller, J.A., curso 1998-99, inédito, aula de 27 de jan 1999.