A verdade como sujeito do gozo
Márcio Peter de Souza Leite
(in Dora On-Line Revista de Psicanálise e Cultura, maio de 2000)
(in Carta de São Paulo - Boletim da EBP-SP, agosto/2000)
I - Pode-se pensar a psicanálise contemporânea a partir da existência de três paradigmas: o freudiano caracterizado pelo paradigma pulsional, o kleiniano caracterizado pelo paradigma objetal, e o lacaniano caracterizado pelo paradigma do Sujeito.
O termo Sujeito, no entanto merece algumas precisões: no "Dicionário Aurélio" o termo Sujeito aparece definido como: ser individual, real, que se considera como tendo qualidades ou praticado ações. No "Dicionário de filosofia de Oxford", Sujeito aparece como sinônimo de Eu. No "Vocabulário técnico e crítico de filosofia" de A. Lalande, Sujeito aparece definido desde a lógica, a metafísica, a psicologia, a sociologia, o direito e a filosofia. O uso do termo Sujeito varia também dentro da filosofia. Por exemplo, para Heidegger, Sujeito é uma categoria da filosofia que se deve desconstruir. Para Marx a história é um processo sem Sujeito, portanto Sujeito seria uma categoria da ideologia. A fenomenologia por sua vez identifica o Sujeito à consciência.
Pensado desde a psicanálise, constata-se que Freud não utilizou o termo Sujeito, mas não foi alheio à questão, e a abordou com outra terminologia, podendo-se dizer que Freud usou o termo Das Ich para se referir ao Sujeito da experiência.
Em Lacan o termo Sujeito está presente desde seus primeiros escritos, e seu uso parece equivaler a ser humano. Depois Lacan diferencia o Sujeito da lógica do Sujeito gramatical, assim como esses Sujeitos do definido por ser oposto ao objeto. Lacan também diferencia o Sujeito noético, gramatical, do Sujeito anônimo e ambos do Sujeito cuja singularidade se define por um ato de afirmação. É a este Sujeito, entendido como o que se define por um ato de afirmação, que Lacan diferencia do Eu. O Eu é entendido como a sensação de um corpo unificado, e na Teoria do Estádio do espelho, encontra-se produzido desde a imagem do outro.
Em diferença do Eu, que para Lacan é construído desde a imagem do outro, o Sujeito decorre do Outro (com maiúscula), que é referência à linguagem enquanto efeito da ordem simbólica. Por isso o Sujeito é conseqüência do significante, e está regido pelas leis do simbólico. Para Lacan, portanto, a causa do Sujeito é a estrutura do significante. Para Lacan o Sujeito não é uma sensação consciente, uma ilusão produzida pelo Eu, senão que é insconsciente, e por isso não é o agente da fala, suporte da estrutura, mas descentrado, acéfalo, dividido, evanescente. O Sujeito na psicanálise é explicitamente diferente da consciência, portanto, é um Sujeito não fenomenológico, não é uma categoria normativa, ele é uma categoria clínica, e não remete a uma totalidade.
O Sujeito da psicanálise é o Sujeito do inconsciente, e como o inconsciente está estruturado como linguagem, o sujeito do inconsciente decorre do significante. O sujeito é o que representa um significante para outro significante. Devido ao fato do ser humano ser atravessado pela linguagem, para o ser falante, sempre haverá Sujeito do inconsciente.
II - O Sujeito do inconsciente testemunha a dependência do falante à ordem simbólica que pré-existe à sua constituição. A linguagem, como paradigma da ordem simbólica depõe da relação do Sujeito com o saber, constituindo a evidência empírica do tratamento analítico, o que foi nomeada como transferência. Dai Lacan ter formalizado a transferência como um Sujeito Suposto Saber.
Mas como os saberes mudam, pode-se então supor que o Sujeito também muda. Daí Lacan ter insistido na existência de um Sujeito próprio à sua época, que ele chamou de moderna. Lacan em "Ciência e verdade", posicionando-se sobre esta questão, utilizou a expressão um certo momento do Sujeito como também, ainda referindo-se ao Sujeito, falou de um momento historicamente definido, e ainda, em relação ao Sujeito, refere-se a um momento historicamente inaugural.
A razão desta possibilidade de temporalizar o sujeito, está na afirmação de Lacan de que o Sujeito está definido em relação ao saber. Como o saber muda, o Sujeito também muda, causando o surgimento de um Sujeito novo em função da nova relação deste com o saber.
Para Lacan o Sujeito novo seria o Sujeito da ciência, fundamento da modernidade do Sujeito. Para Lacan o aparecimento de um Sujeito que se poderia chamar de moderno, está historicamente localizado a partir da publicação das "Meditações metafísicas" de Descartes, que com a operação do Cogito teria produzido este Sujeito novo.
Situar o Sujeito moderno como decorrente da operação cartesiana, é centralizá-lo em relação à uma razão objetiva. Este sujeito “reflexivo”, seria moderno por diferir de um anterior, cuja característica seria a de ser centro do conhecimento.
Para Lacan o Sujeito cartesiano é o pressuposto da noção de inconsciente, pois a psicanálise, tal qual Descartes, parte do fundamento do sujeito da certeza, ou seja, o Sujeito pode ter certeza de si desde que se possa destacar no seu discurso dúvidas que aparecem como reveladoras de um Sujeito dividido. O lugar do “eu penso” é para Freud independente do “Eu sou”.
Para Lacan, um dos temas que caracteriza o pensamento moderno, é a idéia de um personagem vivendo só em uma ilha deserta, e mencionando Robinson Crusoé, sugere que esta idéia representa o começo da era moderna, pois seria fundamental para o homem moderno poder afirmar sua independência, e autonomia em relação a todo amo e a todo Deus.
Lacan faz referência ao homem moderno relacionado-o ao discurso da liberdade, da mesma maneira que faz referência à uma ciência moderna, que segundo ele se caracterizaria pela eliminação do simbolismo religioso dos céus, o que possibilitou estabelecer os fundamentos da física atual.
Para Lacan foi Descartes quem através de seu Cogito fundou o Sujeito moderno. Caberia então a pergunta: há um Sujeito que seja atual, produzido por um saber novo compartido nos dias de hoje?
Levando-se em consideração a articulação entre Sujeito e história, para alguns autores haveria um Sujeito pós-moderno decorrente da mudança de saber ocorrida neste século, pois a partir da Teoria Quântica, da Teoria da Relatividade de Einstein, da desmonstração da incompletude de qualquer sistema feita por Goedel, da Teoria dos Transfinitos de Cantor, da Lógica Paraconsistente de Newton da Costa, da Teoria das Catástrofes de Reneè Thom, para o saber compartido socialmente, tornou-se comum e aceitável a idéia da incerteza, de incompletude, da improbabilidade do provável e da probabilidade do improvável, caracterizando o que se veio a chamar de Nova Ciência. Esta nova maneira de pensar rompeu com os paradigmas newtonianos de uma certeza calculável e demostrável, modificando os fundamentos do saber contemporâneo.
E por não ser mais um Sujeito que se refira a um saber unificado, o sujeito pós-moderno seria um sujeito sem paradigmas de consenso, como por exemplo ocorre em relação às mudança dos costumes sexuais, ou em relação às mudanças ideológicas, fazendo do Sujeito pós-moderno um Sujeito que sofre da ausência de ideais pré-estabelecidos.
III - Talvez por tudo isto, um último destino para a noção de Sujeito surgiu atualmente no campo do saber, que é sua desconstrução (Derrida) fundando um novo momento na filosofia, a que se chamou de “pós-estruturalismo”, momento este é apresentado como a morte do sujeito.
A possibilidade da inexistência de sujeito, teria inaugurado, segundo alguns autores, o que se pode chamar de subjetividade pós-moderna, questão que, levando-se em conta que existe uma articulação entre sujeito e história, permite perguntar: como situar a responsabilidade deste novo Sujeito no mundo moderno? Em que a psicanálise pode contribuir para modificar as formas contemporâneas do mal-estar na cultura?
Lacan no texto "Função da psicanálise em criminologia", aproximou a psicanálise do Direito, ao correlacionar as duas com a produção de uma verdade. Neste texto Lacan mostra que o que se chama de Eu não pode ser uma mera referência às funções psicológicas da consciência, mas sim deve indagar como o Sujeito pode se aproximar da verdade. Através do paralelo com a confissão (admissão de culpa), comum tanto ao direito como à psicanálise, Lacan chama a atenção que importante não é a confissão mas o reconhecimento (da verdade). Neste ponto Lacan sugere que para se saber o que é um Sujeito, para saber como ele se reconhece em seu ato, seria pela prática das ficções jurídicas, de seu manejo, de sua teoria, que poderíamos apreender algo sobre a estruturação do Sujeito (em relação à veradade).
O que se trata então, não é da existência ou não de um Sujeito, pois para a psicanálise o sujeito é evanescente, ele é apenas efeito do significante. Porém, a existência do significante não pode ser negada e por isso, para a psicanálise, o Sujeito é um Hypokaimenon, ou seja, não tem substância, pois depende do significante.
Daí a necessidade de Lacan introduzir o conceito de Parlêtre, (este sim substancial no sentido de ousia) conceito que, ao articular o corpo com o significante, torna possível tomar-se a verdade como causa material, ou seja no verdadeiro trata-se de reconhecer (não confessar) o gozo, conceito que passa a ser a chave para a verdade do Sujeito.
Podemos então concordar com Tercio quando levanta a possibilidade do Sujeito ser uma invenção do analista, e existir só virtualmente (idealmente). (Há autores que afirmam que o inconsciente só existe na relação analítica). Porém, o gozo não é virtual e não ganha significância somente a partir do analista, pois o gozo é um real que inscreve o efeitos da palavra no corpo.
Por isto, o analista entenderá sua época a partir dos novos semblantes que servem para distribuir o gozo, sendo que aparentemente existe uma tendência de procurar o gozo sem que haja a mediação do Ideal, o que caracterizaria a tendência da subjetividade moderna.
Resumindo, para a psicanálise, o Sujeito é sempre responsável. Porém, é responsável pela verdade. Verdade esta indicada pelo seus modos de gozo. Seria exagerado concluir que, para a psicanálise, somos sempre responsáveis, e não há inimputabilidade?
A posição de Lacan sempre foi clara, tendo afirmado, no texto "Ciência e Verdade": "...somos sempre responsáveis da nossa posição de sujeito. Que isto se chame, onde quiserem terrorismo".