Abordagem psicanalítica artística
nos estados psicóticos
Márcio Peter de Souza Leite
(in Boletim de Novidades, ano VII, nº 63, p.p. 7-13, julho/1984)
(Texto escrito a partir de conferência pronunciada no Instituto Goethe em 01/11/1988)
• Resumo
• Teoria da Estética em Freud
• A expressão artística em pacientes psicóticos
• Para uma Teoria da Estética Psicótica
• Crítica da Razão Simbólica
Resumo
Márcio Peter discorre sobre a teoria da arte na obra freudiana, concluindo que, na opinião de Freud, a produção artística é uma sublimação de desejos inconscientes recalcados do artista e que, por isto, a sua produção obedece aos mesmos critérios de formação que os sintomas neuróticos.
Porém, na produção artística de pacientes esquizofrênicos o que se observa, à diferença das outras produções artísticas, é a posta em jogo da desorganização da estrutura psíquica, revelando-a de forma radical.
O autor propõe uma interpretação da arte de pacientes psicóticos a partir da teoria do estádio do espelho de Jacques Lacan, visto que a teoria freudiana se mostra insuficiente para dar conta da produção artística de pacientes psicóticos.
Teoria da Estética em Freud
Não há nenhuma definição de arte da qual se possa dizer que tenha sido de aceitação universal. A reflexão sobre a beleza e as Belas Artes existe desde os pensadores helênicos, na época de Sócrates, senão com outro sentido, em filósofos anteriores.
Até a metade do século XVIII não se adotou o termo estética com o significado que agora tem, de designar a filosofia do Belo.
Porém, até hoje, qualquer tentativa de se estabelecer os critérios do que é artístico, é sempre insatisfatória.
Modernamente, a questão trazida pela produção artística passou a contar com um outro importante instrumento de investigação, a psicanálise, que, pela sua particular metodologia, permite conhecer, mais que propriamente a obra de arte, também conhecer e aprofundar nas causas da produção artística.
Este foi um tema que nunca deixou de atrair Freud, que sobre isto escreveu intermitentemente, e muitas vezes contraditoriamente, durante toda a evolução da sua obra.
Os críticos de Freud, baseando-se em geral na conhecida “Introdução à psicanálise” de 1917, sustentam que ele considerava o artista como um quase neurótico, cujas pulsões o levavam a buscar fama, fortuna, honra, poder, e o amor das mulheres, mas que lhe faltaria capacidade para obtê-los.
Ao não alcançar sua meta na realidade, o artista desenvolve outros interesses, com freqüência afastando-se da realidade para expressar seus desejos, principalmente os sexuais, criando fantasias. A partir dessa posição, um freudiano deveria, presumivelmente, buscar no trabalho do artista as marcas da sua motivação neurótica, ou sexual, e ignorar as qualidades essenciais de forma e técnica, que gravitam, em torno do valor da obra de arte.
Esta posição simplista provém das primeiras especulações de Freud que, por exemplo, colocava numa carta a um amigo em 1897 que o “mecanismo de criação literário é idêntico ao das fantasias histéricas”.
Em outros textos, Freud reconhece, porém, a necessidade que o artista tem de manter o contato com a realidade, e chegar a uma síntese de sua experiência com o seu desejo e fantasias neuróticas. Isto quer dizer que Freud retoma a diferenciação de uma produção sem valor de outra realmente “artística”.
Isto talvez explique a freqüente falta de coerência nas posições de Freud sobre a arte, pois ele, sem dizê-lo, traçava uma diferença entre o artista comum e o gênio.
O neurótico não criador, o homem que se entrega às suas fantasias, o mal artista, segundo a opinião de Freud, evita a realidade ou a inclui numa proporção muito pequena na sua produção.
Aliás, é famosa a fórmula exposta em “Totem e tabu”, livro escrito por Freud em 1913, onde ele abarca as principais expressões da cultura, dizendo que:
“A histeria é uma caricatura da criação artística; a neurose obsessiva uma caricatura da religião, e o delírio paranóico uma caricatura dos sistemas filosóficos”.
Segundo a psicanálise, a inspiração criadora depende da atitude do artista poder entrar em contato com as suas imagens perdidas e com os sentimentos de seu passado infantil através de recordações e fantasias.
Esta seria a vantagem dos artistas plásticos e dos poetas, que por estarem menos submetidos que a maioria dos homens a fatores repressivos da cultura, teriam maior facilidade de acesso às suas fontes inconscientes.
Este material, no entanto, sofre as mesmas modificações que o material onírico, havendo mesmo uma estreita correlação entre a produção artística e o sonho.
A possibilidade de se ter um acesso fácil ao material inconsciente, sem se deixar dominar por ele, mantendo um controle sobre o processo primário, é o que caracteriza o psiquismo do artista. A isso Freud chamou de “flexibilidade de recalque” por parte do artista.
Assim, o recalque sexual como fator de criação e apreciação das artes, é uma idéia chave da estética de Freud.
Porém, esta única concepção não satisfaz, pois o conceito de libido ampliou também a idéia de sexualidade, de modo que incluísse aí também a atividade cultural, além da atividade biológica sexual.
Desde este ponto de vista, a noção de beleza deriva de sensações sexuais e o amor à beleza aparece como exemplo perfeito de uma pulsão inibida quanto a seu fim: é a idéia de sublimação que viria trazer um novo avanço nas posições de Freud em relação à produção artística.
Esta seria vista como uma maneira de se conduzir impulsos inconscientes elevando-os à categoria de expressão artística. Ou seja, para um impulso inconsciente chegar a se transformar em expressão artística, as idéias recalcadas; se servem de símbolos não inibidos conscientemente, e socialmente aceitos. 0 que seria que motiva o artista a produzir constantemente estas sublimações? A resposta de Freud seria que o artista tem exigências inusualmente poderosas, as quais se vêem impedidas de satisfação pela disposição de sujeito, que passa a viver num mundo fantasioso , limítrofe com a neurose.
Assim o artista não sucumbe à neurose, pois representa como satisfeitas suas fantasias, através da obra de arte. Esta suaviza os aspectos angustiosos dos desejos recalcados, oculta suas origens no artista e, mediante a observação de regras estéticas, suborna o apreciador da obra com uma recompensa de prazer. Em resumo, as hipóteses de Freud sobre a arte poderiam ser expressadas como sendo uma defesa frente a idéias e impulsos perturbadores, que encontrariam sua expressão sublimada na expressão artística.
Porém, esta função defensiva, na maioria das pessoas, somente superficialmente se assemelha à produção artística, e geralmente desaparece junto com a angústia, de modo que a enfermidade e a arte se curam ao mesmo tempo. Resta a questão do gênio artístico, que, enfim, a psicanálise não pode explicar. Para Freud, o prazer que se pode obter com a defesa que decorre na produção artística, repousa sobre uma base precária e representa um momento da evolução neurótica.
Toda a questão, do ponto de vista psicopatológico, está ligada à natureza do processo de defesa que Freud descreve como uma aversão a dirigir a energia psíquica, de modo tal que dê por resultado o desprazer.
A estética freudiana teria, então, de encontrar um modo de abordar o gozo contemplativo do espectador e o gozo do criador, para passar de uma psicanálise de arte, para uma estética da arte.
A expressão artística em pacientes psicóticos
Como vimos, Freud identifica a expressão artística a mecanismos neuróticos. Porém, já desde o século passado, o estudo das expressões de pacientes psicóticos, pintura, escultura, literatura, teatro, tem atraído a atenção dos psiquiatras e, mais recentemente, dos psicanalistas. À luz desta investigação, tomam-se más patentes as diferenças conceituais entre os processos neuróticos e os psicóticos.
Haverá uma especificidade da arte psicótica? Quais suas diferenças com a produção dos neuróticos? Do ponto de vista da estética, há uma marcada semelhança da produção artística, principalmente plástica, dos psicóticos com a produção artística das crianças e de certas sociedades primitivas.
Do ponto de vista psicopatológico, a especificidade da arte psicótica depende da delimitação do conceito de psicose e da delimitação da sua tipologia, pois não é a mesma coisa a interpretação de um texto literário de um paranóico, da de um quadro de um paciente esquizofrênico.
É conhecida a análise que Freud faz do texto de Schreber que, se bem não há consenso que seja “artística”, com certeza é literária. É também conhecida a função curativa que a escrita produz em certos pacientes paranóicos.
Para os fins deste ensaio, se abordará principalmente a produção pictórica de pacientes esquizofrênicos, estando claro que esta não representa o universo das possibilidades de expressão dos psicóticos.
O impulso de pintar pode ocorrer em pacientes nos quais a fala e a escrita permanecem intactos ou, então, em pacientes em que há muito existem alterações nestas possibilidades de expressão.
Como nos neuróticos, também nos psicóticos a atividade expressiva, qualquer que seja, tem uma significação dinâmica.
A experiência psicanalítica sugere que se considere essas expressões como parte e sintoma de uma tentativa de cura.
No entanto, se a arte foi para Freud uma via de acesso ao inconsciente, como o era o neurótico, a criança e o primitivo, no psicótico o inconsciente, ao contrário, é uma forma de abertura para a arte.
O inconsciente é criador, por definição, e proporciona espontaneamente suas próprias formas.
A tendência que determina a idéia do mundo se manifesta em imagens simbólicas e espirituais que expressam sua relação do homem com ele.
A arte representa, pois, uma visão de mundo sintética determinada pela estrutura do inconsciente. Ali se pode buscar a origem da arte.
Os sinais sintomáticos do processo esquizofrênico referem-se a uma desorganização dessa estrutura psíquica.
A atividade criadora, nestes pacientes, é o caminho inverso ao processo do enfermar; é uma tentativa de reorganizar, de reintegrar as funções perdidas.
Durante a evolução dos processos psicóticos, a produção artística desses pacientes evidencia uma predominância do “processo primário”. A característica desse processo é a perda de algumas funções do Ego que permite o estabelecimento de alguns parâmetros estabelecidos, como as leis da lógica Aristotélica por exemplo.
Daí a aparência caótica, louca, não compreensível da produção das pessoas neste processo. Também se constata na produção plástica desses doentes, a quase total ausência de figuras humanas. Quando, mesmo assim ela representa o rosto humano, é característico a rigidez com que desenham estas figuras.
Também é característico o vazio da expressão do rosto, o que revela um esfriamento da afetividade, um desligamento do mundo humano e do contato com o semelhante.
Nas criações visuais dos esquizofrênicos, encontramos raramente rostos representados de forma que possamos compreendê-los. E quando isto ocorre representa um avanço na cura do paciente, pois a expressão humana é dirigida aos outros, e sua intenção é a de estabelecer contato.
Alguns autores (Kris) atribuem a dificuldade de representar a expressão facial, observada nas obras de esquizofrênicos, como decorrente de um distúrbio de seus próprios movimentos fisionômicos e da impossibilidade de decodificar a mímica facial do interlocutor.
Para uma Teoria da Estética Psicótica
As teorias freudianas sobre a arte se limitam à estrutura neurótica, onde operam os mesmos mecanismos dos sonhos, ou seja, deslocamento e condensação, tendo como resultado a simbolização como possibilidade sublimada da realização socialmente aceita de desejos recalcados.
Porém, na observação da produção plástica de pacientes esquizofrênicos, se colocam outras questões que ultrapassam a explicação freudiana.
Dentro da produção plástica destes pacientes, se impõe uma desorganização representacional, uma ausência da figura humana coerentemente organizada e, quando esta existe, há uma ausência de expressividade do rosto humano.
Dentro da terminologia psicanalítica, isto é dito como havendo um predomínio do processo primário, havendo falta de organização, de submetimento às leis da lógica clássica, uma falta de adaptação aos critérios de realidade.
A própria evolução dos estilos artísticos tende para este tipo de representação da realidade vivida pelo artista, rompendo com os padrões clássicos (reais?). É o que mostra o impressionismo etc., atingindo sua culminância no surrealismo, cubismo e, principalmente, no abstracionismo.
Seria coerente designar estes estilos de arte moderna, ou moderna seria a aceitação pública de produções mais próximas de nossos padrões inconscientes? 0 que a clínica nos ensina é que, desde o ponto de vista psicopatológico, a expressão criativa nos pacientes esquizofrênicos é uma tentativa de reestruturação, de reorganização do seu mundo, e isso se faz, progressivamente, a partir da possibilidade de representação da figura humana, da imagem do outro e de si próprio.
À diferença do neurótico, no psicótico a simbolização está submissa a uma dificuldade da captação espacial, onde se situa o lugar da organização corporal.
No neurótico, o corpo organizado se simboliza no que lhe falta em termos de sexualidade e morte. Ao esquizofrênico lhe falta o próprio corpo, que aparece despedaçado, perdido. A sua tentativa expressiva é uma tentativa de reunificação, de reintegração, de reencontro com sua unidade perdida.
Daí a importância das atividades de Terapia Ocupacional, não só as atividades de expressão plástica, pois muito mais que através da psicofarmacoterapia, é no âmbito do ser e suas relações com o mundo, onde a cura do esquizofrênico tem jogado suas chances.
Teoricamente, poderíamos encontrar uma possibilidade de formalizar estas observações clínicas da produção de pacientes esquizofrênicos, que fogem ao referencial freudiano, tomando a proposta implícita na teoria de Lacan, sobre o Estádio do Espelho.
Esta teoria, além de dar conta do momento constitutivo da função do Eu na subjetividade humana, também organiza a questão da captação espacial e suas conseqüências para esta subjetividade. Esta teoria parte da observação de que o bebê humano nasce com seu sistema nervoso imaturo, pois este ainda não está mielinizado ocorrendo tal fato numa orientação céfalo caudal no período de até aproximadamente dezoito meses após o nascimento.
A decorrência deste fato é a incapacidade de organização motora do bebê, qual se dá progressivamente. Porém, o que se observa é que antes de haver uma possibilidade orgânica da criança, através da coordenação motora, de estabelecer sua unidade, ela já se reconhece a si mesma no espelho.
Isto quer dizer que há uma antecipação do psicológico ao biológico, e este fato é o que irá orientar a conformação da estrutura psíquica do sujeito humano.
Na espécie humana, a visão da própria imagem, ou a de um semelhante, tem um efeito constitutivo. Decorre, disto, que o sujeito humano é estruturado por um elemento que lhe é exterior, lançando-o numa alienação que decide do seu desejo.
O que se observa na produção artística dos pacientes psicóticos é justamente uma regressão a esse estado anterior ao estado do espelho, em que o corpo aparece não organizado, aparece despedaçado. A produção plástica dos pacientes esquizofrênicos mostra, justamente, este distúrbio da captação espacial que é organizada a partir da captação da estrutura do próprio corpo. Os diversos níveis de organização do espaço ou da imagem corporal representados na atividade plástica culminando na representação do rosto humano, significam a evolução da reintegração do esquizofrênico no processo de cura.
Esta organização, porém, não se dá pelos critérios anátomo-fisiológicos, mas através da organização da estrutura significante que se ordena segundo a história única de cada paciente.
Neste sentido, não há uma ética da estética, não há arte psicótica, existem sujeitos se buscando num outro incompleto, sujeitos perdidos num açougue infernal que é o próprio corpo.
A arte estará na sensação de prazer do observador, identificado com o esforço heróico desse sujeito em reorganizar o universo a partir da sua própria perdição.
Esforço que superamos na infância e que este igual luta por reencontrar.
Crítica da Razão Simbólica
A caracterização das correntes de psicanálise pode-se fazer através da teoria dos símbolos. Freud, Jung, Lacan representam várias formas de encarar o problema conformando uma ideologia psicológica da arte.
Para Freud, o símbolo é alguma coisa que se tem que decifrar. Ele o opõe à razão, ainda que o explique em forma causal e determinista.
Jung se ocupa dos elementos arquetípicos da formação do símbolo. Vê, no símbolo, um substituto de algo e acentua seu caráter conformador a partir de si mesmo.
Lacan relaciona o Imaginário com o Simbólico e destaca a supremacia do símbolo sobre a imagem, mas o imaginário não é ilusório, é o resultado da própria estruturação do sujeito pela sua imagem corporal no estado do espelho. Lacan apresenta o acesso ao simbólico como superando a relação imaginária, e somente ao sair dela. A ordem simbólica se estabelece como constituindo o sujeito e o inconsciente.
Assim, em Freud, se trata de decifrar os conteúdos simbólicos. Os símbolos não são fixos, mas uma simbólica é possível e ele a estabelece.
Em Jung, o simbolismo parte das formas e imagens de uma experiência numínica. Os símbolos são fixos e existe uma única simbologia universal.
Para Lacan, os símbolos provêm de um jogo único para cada sujeito, sendo particular apenas para aquele inconsciente. Não há simbologia que não seja particular; não há relações simbólicas universais.
Desde este ponto de vista só é possível a interpretação da produção de um paciente a partir das associações produzidas por este paciente em torno da sua expressão artística. Ou seja, há uma soberania da palavra sobre o simbolismo, e ela, a palavra, é que vai dar valor às suas produções plásticas, que só aí adquirem sentido.