O que é a orientação lacaniana?
Descartes, o inconsciente lacaniano e a substância gozante
  Márcio Peter de Souza Leite 
(Seminário apresentado na USP-Oficina em 2000)



  I - O inconsciente freudiano e o lacaniano
 II - Orientação lacaniana
III - O erro de Damásio e o homem desnaturalizado
IV - O inconsciente lacaniano
 V - Motrealisme


I - O inconsciente freudiano e o lacaniano

O inconsciente lacaniano é uma das possibilidades da leitura do inconsciente freudiano.

Tentarei mostrar a novidade desta maneira de entender o inconsciente, demonstrar porque essa visão é mais apropriada à prática da psicanálise no momento atual.

O que é a obra de Lacan há cem anos do seu nascimento? Uma obra é o conjunto da produção de um autor que, com a morte dele, possibilita ao leitor lhe dar um sentido. A obra só existe pela leitura que se faz dela; ela não existe em si mesma. É sempre um leitor, um comentador quem ressignifica o conjunto da obra, a partir de pontos específicos.

A obra de Lacan tem vários comentadores, que sugerem maneiras diferentes de periodicizar a produção lacaniana. Estas leituras, em princípio, nem sempre concordam sobre o que Lacan quis dizer. O estilo de Lacan facilita o efeito de discordância. O que não quer dizer que não possamos acompanhá-lo, e que não devemos resgatar os avanços, as novidades, que as propostas de Lacan trazem para a psicanálise e para o entendimento do homem sobre si mesmo.

Em 16 de novembro 1976, cinco anos antes da sua morte, Lacan fez o Seminário ”Linsu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre". Nesse seminário Lacan introduz algo além do inconsciente. O próprio título do seminário é um exemplo, a possibilidade homofônica suportada pela materialidade da letra aponta alguma coisa que vai além do inconsciente, já uma noção nova do inconsciente, diferente da noção freudiana de inconsciente como recalcado que retorna simbolizado, alienado no sentido diferente do que queria dizer antes.

A confusão homofônica é suportada pela materialidade significante, assim como a leitura rápida do título desse seminário pode produzir equívocos. A questão é: o que suporta a possibilidade desses equívocos? O que suporta a possibilidade do equívoco é o suporte material, a materialidade, condicionado nesse exemplo na língua francesa.

Pouco antes da proposta de introduzir alguma coisa além do inconsciente freudiano, enquanto recalcado, Lacan em uma das conferências “Joyce, o sintoma II” diz: “De onde minha expressão de parlêtre o fato de sermos animais mamíferos percorridos pela linguagem".

A expressão parletre substituirá o inconsciente freudiano. Alguns autores querem que o Unbewuste expresso nessa homofonia seja o inconsciente inventado por Lacan, o inconsciente lacaniano.

Em 1972, no Seminário XX, Mais ainda, Lacan falava do inconsciente: “(...) o inconsciente, não é que o ser pense, como o implica, no entanto, o que dele se diz na ciência tradicional – o inconsciente, é que o ser, falando, goze e, acrescento, não queira saber de mais nada. Acrescento que isto quer dizer – não saber de coisa alguma”, (p.143).

Era como Lacan pensava o inconsciente em 1972: que o ser falando, goze. No mesmo Seminário, na página 189, ele diz: “Se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque, a linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função da alíngua”.

Como o inconsciente está estruturado como uma linguagem se a linguagem não existe? A linguagem tem a estrutura de alíngua – é a redefinição de Lacan, o avanço. O inconsciente estruturado como uma linguagem é uma leitura de Lacan do inconsciente freudiano. Para adjetivar o inconsciente como lacaniano, é necessário pensar num outro inconsciente, numa outra leitura do inconsciente, que ultrapassa a noção anterior, passível de se deduzida da obra de Lacan.

À página 190, Lacan insiste na noção de inconsciente: “Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua.” (…) “É nisto que o inconsciente, no que aqui eu o suporto com sua cifragem, só pode estruturar-se como uma linguagem, uma linguagem sempre hipotética com relação ao que a sustenta, isto é, alingua”.

Bem antes, em 1964, no Seminário XI, Lacan falava do inconsciente: “O inconsciente freudiano nada tem a ver com as formas ditas do inconsciente que o precederam, mesmo as que o acompanhavam, mesmo as que o cercam ainda.” (p.29).

Tento mostrar como Lacan introduz a ultrapasssagem do inconsciente freudiano. O próprio Lacan demonstra como Freud produz uma ultrapassagem da noções anteriores do inconsciente. Então, Lacan faz uma subversão da subversão da noção de inconsciente: “O inconsciente de Freud não é de modo algum o inconsciente romântico da criação imaginante. Não é o lugar das divindades da noite.” (p.29).

No texto “Posição do inconsciente”, Lacan é mais taxativo: É preciso, sobre o inconsciente, entrar no essencial da experiência freudiana. O inconsciente é um conceito forjado no rastro daquilo que opera para constituir o sujeito. O inconsciente não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo daquilo que não tem o atributo (ou a virtude) da consciência. (Escritos, p.844).

Anteriormente, em 1953, no início do seu ensino, Lacan fala sobre o inconsciente de outro ponto de vista, ultrapassado em relação ao último momento: “Mas a verdade pode ser resgatada, na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar nos monumentos: e esse é o meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave;

– nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveris quanto eles, quando não lhes conheço a procedência;
– na evolução semântica: e isto corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter;
– nas tradições também, ou seja, nas lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história;
– nos vestígios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá.”

Temos aqui uma outra noção de inconsciente ligada ao sentido, ligada à produção de um saber, à história, à articulação de acontecimentos que produzem algum outro sentido diferente do anterior. São momentos diferentes da noção de inconsciente em Lacan. Momentos que mostram um movimento, uma precisão, um avanço.

No ínicio o inconsciente está pautado em relação ao equívoco na comunicação, refere-se a um dito que não se intencionava comunicar, mas um querer dizer, querer dizer uma coisa e falar outra, ou seja, o inconsciente como o não sabido é subvertido. O segundo movimento de Lacan aponta um querer gozar, um efeito de gozo qua as palavras produzem e não a intencionalidade da significação.


II - Orientação lacaniana

Se antes Lacan entendia o inconsciente como mortificando o corpo, o fato do animal humano ser um animal desnaturalizado pelo fato de falar, ter de fazer referência a ordem simbólica que o aliena; ser percorrido por uma linguagem, barraria o gozo, seria aquilo que impede o sujeito satisfazer suas pulsões funções. Para o sujeito viver na cultura ele paga um preço que é postergar suas estimas, a satisfação imediata do seu desejo.

No segundo momento Lacan considera que a fala produz gozo: gozamos porque falamos. Há uma inversão de perspectiva.

A capa do seminário XX é uma imagem de Santa Tereza, de Bernini: é o rosto de uma pessoa que goza. Como se trata de uma santa não é um gozo sexual, é um gozo de outra ordem. Supomos que ela está em êxtase por amor a Deus.

A expressão do rosto deixa impregnada a idéia de gozo, de um corpo percorrido pelo significante; supomos que Deus só exista para o parlêtre, e não exista para o mundo animal. Deus é um efeito da possibilidade do homem nomear alguma coisa que vai além do sentido, além de suas limitações materiais e sensoriais.

A possibilidade de algo do significante marcar o corpo é a noção de gozo em Lacan. Para demonstrar o gozo vou usar, articular o inconsciente freudiano, com o inconsciente lacaniano, a partir da tendência atual de se pensar o funcionamento da mente que é um pensamento condicionado pela neurobiologia, pela psiquiatria biológica, e pelo cognitivismo, que supõe a materialidade cerebral como causa da conduta do sujeito humano, pois representam a ideologia dominante, baseada no neopositivismo dominante, que faz uma crítica à psicanálise vista como uma conseqüência do dualismo cartesiano.

“Orientação” vem de “orientar”, significa “estabelecer uma direção”, determinar em um movimento, o ponto do qual se parte e para onde vai. O termo “lacaniana” que adjetiva a orientação, refere-se à concepção da psicanálise desenvolvida durante o ensino de Lacan. A orientação lacaniana é uma leitura de Freud, é uma concepção da psicanálise, assim como existem outras, a kleiniana, bioniana, kohutiana.

Com que critério então podemos falar na existência de uma orientação para a psicanálise? Depende de uma concepção de final de análise, enquanto finalidade, com objetivos, metas, com parâmetros bem determinados, que permitem formalizar o início do tratamento e seu fim, no sentido de término, de conclusão de uma análise.

Em psicanálise, podemos falar de orientação se houver uma formalização do início e fim da análise. Orientação lacaniana é uma práxis, que estabelece a possibilidade de haver na experiência analítica, um movimento que vai de um início, em direção a um fim.

Em Lacan isso ficou determinado pelo que se condicionou chamar de teoria do final de análise, que estabelece que o término, a finalidade, a meta da análise corresponda ao qual ele chamou de destituição subjetiva. Resumidamente, podemos entender o que é destituição subjetiva, essa novidade introduzida na teoria lacaniana, acompanhando o movimento de alguém que procura uma análise, onde vem buscar um saber sobre seu sofrimento.

O que permitira a essa pessoa livrar-se de seu sofrimento, é uma mudança em relação ao que ela não sabe, o que tem o efeito de modificar o que ela sabe. Na medida em que ela aceita o que ela não sabe. Quer dizer, posição subjetiva chamada por Lacan de destituição subjetiva, decorre de uma modificação do sujeito em sua relação com o saber. Nesta nova posição subjetiva, obtida como efeito da análise, o sujeito não supõe mais que haja um saber sobre seu sofrimento, determinado saber ligado a uma certa ideologia, uma certa convenção social, uma certa leitura de cérebros, a astrologia, a medicina alternativa, as religiões.

O sujeito chega a uma posição em que não supõe mais no Outro um saber sobre o seu sofrimento, o que quer dizer que o Outro não é mais responsável pelo que lhe acontece. Ele é o único responsável pelo seu sofrimento.

A destituição subjetiva, conseguida como efeito da experiência analítica, é uma resposta para o mal-estar na cultura, para a dor de existir, resposta que difere das feitas pelas religiões que acreditam numa salvação. Difere também das propostas filosóficas que, apostando na impossibilidade da existência de uma verdade, aconselham a ataraxia, que é a ausência de desejo, ou a apatia, que é a ausência de paixões, como a posição subjetiva ideal para o homem sábio.

A destituição subjetiva é a meta do tratamento analítico, e produzi-la constitui tanto o final de uma análise, no sentido de fim; como sua finalidade, no sentido de objetivo.

A possibilidade de um sujeito alcançar esta meta, que é o fim de uma análise, depende de uma concepção de inconsciente que se pode precisar como o inconsciente lacaniano.

Uma análise que seguisse a orientação de Freud seria infinita, não teria término, não teria fim, pois como a orientação freudiana fundamenta sua ação na comunicação feita pelo analista do desejo inconsciente recalcado do paciente, e como a interpretação não tem limites, como a interpretação é infinita, uma análise conduzida somente pela comunicação do sentido que explique as razões dos sintomas, também seria infinita.

Freud estabeleceu os critérios para o início do tratamento, porém Freud não concebeu um final para a análise, entendendo-a como infinita. Lacan propõe um fim para a análise que não é meramente uma interrupção da análise.


III - O erro de Damásio e o homem desnaturalizado

O mundo de hoje é um mundo subvertido pelas comunicações, onde cada sujeito tem em um ano, acesso a mais informação que nossos antepassados em toda uma vida.

Esta enxurrada de informações, influencia tudo na vida de um sujeito, desde a vida sexual, subvertendo os papéis masculinos e femininos, como cria novas maneiras de estabelecer vínculos afetivos, como por exemplo, casamento entre homossexuais, paternidade feminina, maternidade masculina, inseminação artificial, e toda uma combinatória antes impensável para a condição humana.

As informações, transmitidas através da mídia está cada vez mais presente no mundo atual, basta termos consciência da revolução que a internet está operando em nossos costumes, e esta quantidade enorme de informações, estão constantemente modificando o sentido das identificações do sujeito, e relativizando significações que antes eram fixas para determinados grupos sociais.

Por exempo, o significado de pátria, aparece hoje em dia subvertido pelo conceito de multinacional. As profissões não são mais transmitidas dentro do âmbito familiar; as virtudes como a honra, a justiça, a honestidade, adquiriram outro sentido num mundo regido por uma ética do lucro; da mesma forma que mudou o sentido da vida, mudou o sentido da morte, que agora acontece escondida nas UTIs.

A mídia criou também novos conceitos de felicidade, e impõe consumos desnecessários, que escravizam os sujeitos numa exigência de consumo inesgotável, sempre em função de um mercado cada vez mais voraz, que não respeita a singularidade do indivíduo, e anula a sua liberdade de não querer. No que tange à saúde, as mesmas considerações são válidas. A busca da eterna juventude consome milhões de dólares, a possibilidade do homem ser sempre potente, o Viagra alterou e desestabilizou a relação da sexualidade com o desejo.

Porém é no campo do sofrimento psíquico onde as características neopositivistas da ciência atual, atingem suas maiores proporções, produzindo um uso cada vez maior de psicofármacos, produzindo uma verdadeira cosmetologia química do psíquico.

Encontra-se na mídia, com freqüência cada vez maior, uma tendência de explicar as situações humanas como decorrentes unicamente de processos cerebrais.

Tomarei como exemplo uma reportagem publicada na revista “IstoÉ” de 23 de fevereiro de 2000. O termo fobia designa medo persistente e irracional de alguma situação, objeto ou atividade que não ofereça perigo real. Qual é a explicação, a causa da fobia? Há o estímulo – a simples visão de uma barata, por exemplo – a mensagem chega ao córtex cerebral, onde é processada e reconhecida como algo ameaçador. Na seqüência, a informação é enviada para o hipotálamo – estrutura cerebral onde ocorre a liberação de adrenalina e noradrenalina; do hipotálamo, o estímulo continua em direção à hipófise e, em seguida, para as glândulas supra-renais, que liberam uma outra categoria de hormônio: o cortisol.

Nesta visão o sujeito é tratado como um circuito neuronal. A psicanálise pensa a fobia como medo, claro, a base da fobia é o medo, que produz todas essas reações fisiológicas. Mas a psicanálise introduz a individualidade, a subjetividade, o único, o particular de cada um que faz com que reaja de forma diferente a estímulos comuns.

Houve uma reportagem nas páginas amarelas da revista “Veja” sobre “Distimias” – o nome técnico para mau humor. Faz uma prevalência em que a maioria das pessoas têm mau humor, a maioria é distímicas, e que deveria ser tratada com anti-depressivo. Aliás, uma tendência na psiquiatria atual é que todos devem tomar anti-depressivo. Onde entra a particularidade do sujeito? E as significações que dão sentido àquele estado de humor? Não se pode normatizar, colocar em tabelas estatísticas algo tão relativo, sutil, como o estado de humor de cada um.

Uma outra conseqüência na mídia desta forma de pensar pode ser encontrada na reportagem da “Folha de S.Paulo” de 20 de março de 2000 sobre o livro de Antônio R. Damásio ao ser lançado recentemente no Brasil, pela Companhia das Letras: “Cérebro e corpo se unem em novo livro”. “De onde vêm as emoções? Como as células tornam alguém consciente?” Antônio Damásio, pesquisador na Universidade de Iowa, EUA, neurologista português, lidera uma equipe que trata e estuda pacientes com lesões cerebrais – que, devido a acidentes ou doenças, perderam a capacidade de sentir medo, reconhecer rostos ou se lembrar quem são.

Damásio parte desses casos para desenvolver uma teoria provocativa sobre a consciência, que coloca o corpo, e não somente o cérebro, no centro da ação.” Ele continua na mesma ideologia, do homem neuronal. Só que ao localizar o ser do homem, a alma, não o faz na serotonina, mas no corpo, pois a mente não termina no cérebro.

Existem transmissores que partem da córtex e chegam à ponta do dedão. Perguntaram a Lacan sobre a sede do pensamento. Ele respondeu que pensava com os pés, uma forma de dizer que a localização cerebral não responde a uma evidência química esse localizacionismo que exclui a possibilidade de existir um corpo.

Outra maneiras de explicar as razões das condutas humanas podem ser encontradas em um outro livro de Antônio Damásio, O erro de Descartes, um texto que toca o centro da questão. Os autores que tratam do tema, excluem totalmente uma subjetividade, logo uma responsabilidade do sujeito em suas ações e a determinação da conduta são vistas como produzidas pelas redes neuronais e os neurotransmissores que ali operam para o cérebro. Neste modelo a exclusão do sujeito caracteriza a ciência.

Outra conseqüência do cogito cartesiano, foi a divisão entre psíquico e soma. “Penso logo sou”, implica em um quem pensa, a res cogitans, que não tem existência material. “Eu sou” é a res extensa, e existe materialmente.

Qual então, o erro de Descartes para Antônio Damásio? Poderíamos começar com um protesto e censurá-lo por ter convencido os biólogos a adotarem, até hoje, uma mecânica de relojoeiro como modelo de processos vitais. Mas talvez isso não fosse muito justo, e comecemos, então, pelo ‘penso, logo existo’: “(...) A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o ato de pensar como uma atividade separada do corpo, essa afirmação celebra a separação da mente, a ‘coisa pensante’ (res cogitans), do corpo não pensante, o qual tem extensão e partes mecânicas (res extensa)”. (Antônio R. Damásio, O erro de Descartes, Companhia das Letras, 1996, p.279).

Damásio propõe corrigir o erro de Descartes. O tomamos aqui como paradigma das tendências das ciências naturais, paradigma da psiquiatria biológica atual, paradigma do cognitivismo. A tendência atual é de se criticar tudo que se sustenta no dualismo como sendo ultrapassado, como sendo inexato, como sendo biológico, como sendo os restos de uma filosofia velha, totalmente superada, caduca, que se preferiria recuperar a possibilidade de se pensar o que é a mente, o que é o ser humano, com um novo recurso metodológico, que é reduzi-lo a seu cérebro, o que vai ser chamado de monismo. O monismo, é o que se opõe ao dualismo, não tem cérebro e mente, é uma coisa só.

Damásio propõe a adoção de uma perspectiva do organismo que não só tem que passar pelo código físico, mas tem que passar pelo domínio do tecido biológico. Ele sugere que se pense a mente pelo tecido biológico, pela córtex cerebral. É a proposta de toda essa tendência. Isso caracteriza o momento atual ao qual a psicanálise se choca, se opõe.

A tendência atual das ciências da mente – que se chama mind, uma palavra que não é nem psíquico, nem indivíduo, nem ser, um termo novo – é negar o dualismo e adotar o monismo, não qualquer monismo (pode-se ter vários tipos de monismo), mas um monismo fisicalista, quer dizer, mente e cérebro são a mesma coisa. A mente é conseqüência do funcionamento cerebral.

Na tradição filosófica um monismo fisicalista que tome por base o funcionamneto cerebral pode ser identificado a um materialismo. Este materialismo assim definido passa a ser também uma ontologia, uma teoria do ser, e tem por conseqüência uma visão de mundo, uma concepção do mundo. É o que está acontecendo: subverte a ética, subverte a moral, subverte as possibilidades de imputabilidade das ações do sujeito, desresponsabiliza o sujeito pelos seus atos. Há uma subversão total de toda uma construção da sociedade humana criticada como idealista.

Ser materialista nesta concepção é reconhecer que o é o cérebro que pensa. A idéia é o cérebro que pensa exclui a existência de um sujeito, refere-se a uma máquina pensante que não tem nenhuma produção além das suas articulações neuronais.

A culminação desta tendência na época atual é a inteligência emocional que tenta mostrar como os sentimentos dirigem os pensamentos. O cara pensa, mas antes ele tem uma atividade neuronal chamada emoções que determinam o pensamento. O autor desta idéia admite que existe o pensamento, mas o pensamento está condicionado pela emoção. Por isso, inteligência emocional. Como educar as pessoas? Não adianta educá-las no ideal, na lei, implicá-las na racionalidade, no motivo das coisas. Deve ser educada na emoção que seria a razão da produção humana de função superior e intelecção dependeriam apenas das emoções (ira, tristeza, medo, prazer, amor, surpresa, vergonha).

Porém a psicanálise não é dualista. A psicanálise se originou de uma posição monista. O fundamento da psicanálise é monista. A crítica da psicanálise como dualista, como idealista, não converge com a proposta inicial da psicanálise que se propõe como monista e como materialista da mesma maneira que as ciências cognitivistas, que a psiquiatria biológica. Porém, não o mesmo monismo nem o mesmo materialismo.

É também neste ponto especifico onde o adjetivo lacaniano, usado para precisar o inconsciente, toma sentido.


IV - O inconsciente lacaniano

A psicanálise não é dualista. Ela é materialista, monista, mas tem uma precisão nessa função de monismo e essa precisão é o que consiste no inconsciente lacaniano que fundamenta uma outra possibilidade, que não é o monismo nem o dualismo. É ser monista de uma forma diferente que não seja o fisicalismo. O inconsciente lacaniano refere-se à uma substância gozante, que não é nem res extensa , nem res cogitans.

Na imagem de Santa Tereza, existe algo da ordem da substância, observem o rosto, a expressão, um efeito no corpo que não depende do cérebro mas do significante. Não é só significante, não é só corpo. É um terceiro elemento, uma coisa nova – é o que aponta a psicanálise lacaniana – o gozo, essa novidade, essa substância que é conseqüência do sujeito, mas no falar.

Vou situar o inconsciente lacaniano, contrapondo-o à neurobiologia, considerando-a não só como interlocutora atual da psicanálise, mas sobretudo como opositora à psicanálise.

A diferenca fundamental entre as práticas que abordam a produção mental desde um fundamento monista fisicalista, leia-se psiquiatria biológica e cognitivismo, exemplo máximos, à diferença da psicanálise, se deve ao fato de que o ser humano, na visão da psicanálise, é um animal desnaturalizado, isto é, rompe com a ordem natural, não segue instintos, o que ocorre devido ao fato dele estar atravessado pela linguagem. É a precisão clínica que a psicanálise traz. O cognitivismo e psiquiatria biológica consideram o homem como um mamífero superior igual aos outros. Por isso prescrevem anti-depressivos em ratinhos, um mamífero superior. Os efeitos produzidos nos ratinhos são transportados para os sujeitos humanos. Eles acham que isso pode ser feito. Há certa semelhança estrutural com o sistema nervoso que permite estabelecer que as conseqüências não equivalem às conseqüências no outro.

A psicanálise descobre, evidencia, demonstra, que o animal humano não é igual aos outros animais. A diferença é porque ele fala. O fato do animal humano falar, o desnaturaliza, faz com que ele rompa com a natureza.

A psiquiatria biológica, ou o cognitivismo, também é chamada de neo-darwinismo, o puro darwinismo. Recentemente, foi publicado um texto do Darwin sobre as emoções. Levamos em consideração os efeitos da fala sobre o sujeito humano.

É exatamente onde a psicanálise se inscreve, mostrando que pelo fato do homem falar, ele não responde às leis biológicas, às leis fisiológicas. Ele é desnaturalizado. Ele tem coisas que os outros animais não podem desvendar.

A descoberta de Freud com as histéricas, por exemplo, mostrou isto, inauguralmente. Logo de início Freud demonstrava que o corpo biológico não é o corpo libidinal, não é o corpo erógeno. A histérica demonstra uma transgressão da neuro-anatomia. Ela vai ter uma paralisia que pela estrutura neuro-anatômica não seria possível, uma cegueira, uma tosse, que não seria possível. A conversão histérica demonstra exaustivamente a transgressão do corpo biológico por uma outra ordem, a ordem simbólica. Um outro corpo se superpõe ao corpo biológico, é o corpo narcísico, é o corpo libidinal, é o corpo herógeno. Há uma subversão do fisiológico.

As doenças psicossomáticas mostram essa subversão. A pisoríase, o que chama atenção no tratamento analítico de quem a porta é a rápida mudança. Numa sessão, o sujeito não tem nenhuma marca de pisoríase. Mas se acontece determinada situação na análise, ele volta com aquela manifestação na sessão seguinte. Desaparece por uma intervenção do analista. Essa marca que o significante faz no corpo demonstra que há uma desnaturalização do sujeito humano que não responde linearmente a essas condições neuro-biológicas. Existem outras forças, uma outra ordem que produz efeitos no corpo.

A anorexia mostra isto. Só é anoréxico quem é percorrido pela linguagem. O sujeito precisa depender do desejo de um Outro para que ele não coma. Pelo contrário, ele não vai comer até se saciar. O sujeito não, se sacia não comendo. Como entender a anorexia pela psiquiatria biológica?

E principalmente, é por onde Freud iniciou, a sexualidade humana mostra essa ruptura radical do homem com a sua natureza. Para o sujeito humano não existe objeto sexual pré-determinado. Como explicar a necrofilia? O fetichismo, condição pela qual o sujeito põe um fetiche, um objeto, no corpo da mulher para poder ter relações sexuais com ela.

Desnecessário demonstrar a quantidade de deixas que a psicanálise traz à tona frente a essa ruptura que consiste essa desnaturalização. O sujeito não está incluído na ordem natural.

Na posição monista fisicalista (leia-se: o cérebro é a mente) ao negar o fato do animal humano depender de simbólico na causação de suas manifetações, nega-se a evidência do animal humano estar alienado em relação a um saber fundado numa ordem simbólica, fato este que determina seu destino.

A negação da desnaturalização do ser humano pelas ciências da mente (que se sustentam na neurobiologia) explica o porque do uso dos psicofármacos, como o único meio possível de transformação. E este sem dúvida é um dos aspectos mais polêmicos da modernidade ou da pós-modernidade. A comodidade em usar Prozac para não se perguntar por que tais alterações. Usar Frontal para fugir de certas situações que o implicam de uma forma, onde o sujeito pode se implicar, se responsabilizar. Toda a facilidade da tecnologia moderna que tem esse efeito fundamental no lugar que o sujeito ocupa frente a si mesmo.

Esta negação da desnaturalização do humano (insisto: entenda-se com este termo o fato do homem falar, o fato do homem ser regido por leis, o fato do homem fazer referência a um sistema simbólico), impõe a aceitação de que o que existe é apenas um cérebro sem sujeito. Numa conferência falei em cérebro sem sujeito pensando estar questionando o psiquiatra em seu âmbito, quando um psiquiatra, presente questionou “pior seria um sujeito sem cérebro”. Uma resposta que me calou totalmente. Estava falando em cérebro sem sujeito, claro, mas não dá para falar em sujeito sem cérebro. Os dois são necessários, cérebro e sujeito.

Freud concebeu o psíquico como se impondo ao corpo, pois como demonstra o sintoma histérico, há uma transgressão do corpo biológico. E foi com a demonstração que o sintoma histérico tem um sentido ligado à história do sujeito, que Freud subverteu a medicina, subditando o corpo aos efeitos da mente.

Em que difere o inconsciente lacaniano do inconsciente freudiano? O inconsciente lacaniano é uma formalização do inconsciente que recupera, ressignifica, rearranja, e avança a noção freudiana de inconsciente.

Freud é materialista, ele se posicionou desde uma ciência da natureza. O fundamento da psicanálise é que ela se increve na ciência da natureza, logo no monismo. Freud colocava de alguma maneira uma continuidade existente entre cérebro e mente. O cérebro é contínuo à mente; é o funcionamento do processo primário. A linguagem, a mente, seria o funcionamento do processo secundário.

Em Freud, o que sustenta a relação de cérebro com a mente? A idéia eram as inscrições psíquicas, formalizadas como traços mnêmicos. Isto é polêmico, mas pode-se pensar desta maneira. Seriam engramas, registros biológicos, cerebrais, que são moléculas que registram experiências.

Há experiências que mostram um conhecimento na espécie animal que pode ser transmitido biologicamente. Por exemplo, há uma experiência sobre planária que li recentemente, sobre a planária que percorreu um determinado labirinto. Depois, macera-se essas planárias, que são animais primitivos, e as coloca no caldo de cultura de outras planárias. As planárias se alimentam por osmose; recebem alimento do meio exterior através da membrana da parece celular. Essas planárias, alimentadas com planárias ensinadas a percorrer o labirinto, aprenderiam o caminho sem serem condicionadas. Pode-se supor com essa experiência que há um registro material, um registro molecular.

Pode-se supor que para Freud o registro das experiências fossem engramáticas; não haveria diferença entre cérebro e mente. Para Freud registro material é cerebral, neuronal. A diferença de Freud para a neurobilogia atual é que se para Freud é possível pensar numa continuidade psicofísica, o cérebro continuando na mente, a mente não funciona como o cérebro. Há uma ruptura: a mente funciona segundo as leis do inconsciente, deslocamento, condensação, recalque, inconsciente. O cérebro depende da mente, mas não é a mente.

Lacan rompe com essa posição logo de entrada. Desde o início há uma ruptura com a possibilidade de leitura sob o ponto de vista do continuísmo psicofísico. Lacan inicia seu ensino criticando essa visão continuísta entre cérebro e inconsciente. O ensino de Lacan começa em 1953. No texto “Função e campo da fala e da linguagem”, quando ele se insurge contra o modelo da psicanálise praticada em Paris, cuja prática era o constituismo psicofísico. O que ele faz é um retorno ao que ele considera os fundamentos da psicanálise que estão no fato do sujeito falar. O fato de que o único instrumento de investigação é a palavra. O que Lacan vai fazer nesse retorno a Freud? Ele vai procurar o fundamento de linguagem que constitui a estrutura de seres, do sujeito humano, carecterizados por serem animais falantes. Ele vai mostrar que a diferença desse funcionamento rompe com a estrutura neurobiológica, com os fundamentos biológicos e neurológicos.

Nesse texto, fundador do seu ensino, no prefácio, ele coloca como epígrafe uma “Citação escolhida como exergo de um Instituto de Psicanálise em 1952”, foi o motivo pelo qual ele rompeu com isso. Os critérios para formação de um analista. Dentro dos estatutos da formação do analista desse instituto dizia o seguinte: “Em particular, não convém esquecer que a separação entre embriologia, anatomia, fisiologia, psicologia, sociologia e clínica não existe na natureza, e que existe apenas uma disciplina: a neurobiologia, à qual a observação nos obriga a acrescentar o epíteto humana, no que nos concerne” (Escritos, p.238).

Em 1952, estas questões já eram atuais no ensino de Lacan. Ele já começa fundamentando porque não há continuismo psicofísico. Por que a neurobiologia não responde às questões do sujeito, do ser humano, do falante. Ele vai responder a isso introduzindo a noção de ordem simbólica. Daí a releitura de Freud a partir da lingüística dos conceitos de significante, metáfora e metonímia.

E o inconsciente lacaniano? Este surge no momento da falência, da concepção da comunicação do saber enquanto agente da cura.

A hermenêutica é a ciência das interpretações que surge como uma necessidade religiosa. Com os livros sagrados havia necessidade de descobrir a interpretação exata do texto. Nomear a verdade de um sujeito também será uma hermenêutica. A psicanálise lacaniana rompe com isso, rompe com a comunicação do sentido, com a interpretação como hermenêutica e propõe um além do inconsciente.

A noção de que o sujeito goza porque fala; é o corpo que determina o porquê ele vai falar isto e não aquilo.

Há uma resposta de Lacan a Descartes. Se Descartes limita o homem à res-tência e à res-cogita, substância pensante e substância material, psico-soma, Lacan diz que o objeto da psicanálise, a ação da psicanálise se dá com a substância gozante. Precisamos do monismo, não é dualismo, não é nem corpo nem mente, é uma coisa nova, é a noção de gozo, é a noção de substância gozante, é uma entidade nova, uma maneira nova de captar a essência do homem, essa essência fundamentada no fato do homem ser percorrido pela linguagem, demonstrado por todas as descobertas freudianas.


V - Motrealisme

Damásio enfatiza que nas nas ciências da mente, deve-se negar o dualismo e adotar um monismo, porém, um monismo fisicalista.

Lacan, que não foi alheio à esta questão, posicionou-se frente à esta questão referindo-se ao termo substância, termo da física aristotélica, e usando-o no sentido cartesiano do termo.

No Seminário XX (p.33, terceira linha), Lacan cita a substância pensante e a substância extensa e, refletindo sobre a substância pensante cartesiana, questiona a substância extensa (Seminário XX, p.34, linha 32) e propõe (Seminário XX, p.35, oitava linha) UMA OUTRA FORMA DE SUBSTÂNCIA, a substância gozante como Partes extra partes da substância extensa.

Esta seria uma proposta monista de Lacan dada como resposta ao dualismo cartesiano. Lacan, no Seminário XX, pp.35 e 36, diz: “Isso só se goza por corporizá-lo de maneira significante... só se pode gozar de uma parte do corpo do Outro... direi que o significante se situa no nível da substância gozante... o significante é causa do gozo... como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material?”.

Materialidade que implica uma relação com a letra, que é o suporte material do significante. No entanto seria a materialidade do significante uma materialidade pensada no sentido marxista , como aquilo que produz efeito?

Lacan, no Seminário L’Une Bevue, responde propondo o neologismo Mot realisme, para substituir a palavra materialisme.

Então o que é uma psicanalise suportada em uma visão monista que ao mesmo tempo denuncia a desnaturalização do homem? Esta psicanalise é a que se refere à orientação lacaniana. Esta orientação refere-se tanto à uma direção do tratamento quanto a uma concepção do inconsciente, chamado pelo próprio Lacan de inconsciente lacaniano.

 

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