Questões preliminares à psicanálise de psicóticos
Márcio Peter de Souza Leite
(Palestra proferida na PUC-SP em 11.11.1987 durante a I Semana de Psicanálise)
• Resumo
• Introdução
• Lacan e a questão das psicoses
• Psicanálise e psiquiatria
• O sintoma e o diagnóstico
• Especificidade da estrutura psicótica
• Função paterna
• A transferência na psicose
• Tratamento analítico das psicoses
• Referência bibliográfica
Resumo
Márcio Peter aborda a questão da clínica das psicoses desde o ponto de vista da psicanálise a partir das contribuições de Jacques Lacan.
É trabalhada a especificidade do conceito de psicose na psicanálise e suas diferenças com o modelo psiquiátrico.
Depois explora-se as possibilidades do tratamento analítico das psicoses considerando a proposta de Lacan quanto à sua etiologia, como falha do acesso do sujeito à ordem simbólica e suas consequências no campo terapêutico, que é uma alteração da manifestação transferencial.
Introdução
Hoje, ao preparar essa fala, tinha pensado em trazer algumas considerações gerais sobre a teoria psicanalítica das psicoses em Jacques Lacan. Quando preparei essa exposição supus um público não necessariamente informado sobre a teoria lacaniana, que apresenta alguma dificuldade de compreensão, e que requer certa frequentação de leitura para poder ter um acesso mais preciso às articulações aí formalizadas. Optei então por partir de aspectos que trouxessem uma polêmica não tão específica como é a prática com psicóticos, mas aspectos mais gerais, principalmente em relação às consequências do posicionamento de Lacan na teoria da psicose, frente às outras disciplinas, ou mesmo as opiniões de Freud em relação a essa questão que, na teoria de Lacan é central.
Eu penso que o tema da psicose, ou das psicoses (seria mais próprio colocar isso no plural), traz ao praticante uma questão anterior: porque ela é, sempre foi e continua sendo, uma situação limite da clínica psicanalítica?
Ou então, segunda questão, quais são as considerações explicitamente técnicas, decorrentes da aceitação de um psicótico em análise? Penso que uma questão decorre da outra, ou seja, essas considerações explicitamente técnicas, decorrem do posicionamento do praticante dentro da orientação na qual ele se situa.
Qual seria então a importância da psicose para a psicanálise?
O problema colocado pela loucura (vou usar o termo loucura como sinônimo de psicose, embora na realidade ele não o seja, a loucura é um campo mais amplo tecnicamente que o das psicoses), o problema colocado pela loucura é insolúvel para o pensar que permaneça no mundo e na sua temporalidade.
O psicótico não tem um mundo, pelo menos o mesmo mundo que o nosso. Por isso catalogamos as suas manifestações como insensatas, irreais, fora de si. Isso seria excluí-lo da humanidade, caso o sentido fosse a essência do homem.
Lacan e a questão das psicoses
Lacan, com a teoria do significante, permite responder a esse problema de uma maneira totalmente nova. A questão da psicose torna-se fundamental para a teoria lacaniana na demonstração da relação do sujeito com o significante.
Se poderia até mesmo dizer que a paranóia está para Lacan, assim como a histeria para Freud.
A entrada de Lacan na psicanálise, se deu pelos limites que o conhecimento psiquiátrico trouxe sobre a paranóia. A questão da paranóia que estava em germe no Lacan entrando na Psicanálise, retornou no cerne da teoria do estádio do espelho, através da noção do conhecimento paranóico.
Da conhecida tese de Lacan sobre a paranóia, tardaram mais de 25 anos para que ele retornasse ao tema já então desde a perspectiva do que Lacan chama de seu ensino. Isto foi em 1956, no Seminário “Estruturas Freudianas das psicoses”, que resultou num escrito com o título de “Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”.
Essa questão, depois desse texto, somente seria retomada por Lacan em 1976, mais de 20 anos depois, no seminário sobre a obra de James Joyce, que se chama “Le Synthome”. Lacan supunha que Joyce tivesse uma estrutura psicótica, embora ele não tivesse tido um surto psicótico. E justamente o que mantinha Joyce fora da psicose seria a sua obra. Quem conhece as obras de Joyce — Ulysses, Finnegan’s Wake, ou o Retrato da artista quando jovem — percebe que há particularidades únicas no uso das palavras. Lacan investiga de que forma a arte de Joyce lhe servia para escapar da psicose.
Porém essa questão é enfatizada de uma maneira muito particular numa comunicação de Lacan de 1977, na abertura da “sessão clínica” em Vincennes, uma colocação que terminou por se tornar palavra de ordem para os analistas lacanianos: “Não retroceder frente à psicose”, visto certamente as dificuldades que esta prática trazia e continua trazendo aos analistas.
Para introduzir o debate sobre a psicose, cito um texto de Lacan de 1946, “Proposta sobre a causualidade psíquica” que é o relato do debate que Lacan manteve com Henry Ey sobre esta questão.
Nessa época dizia Lacan a Henry Ey: “Longe da loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é virtualidade permanente de uma falha aberta na sua essência. Longe de ser um insulto para a liberdade, ela é sua mais fiel companheira, seguindo seu movimento como uma sombra. E o ser do homem, não somente poderia ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se, em si, não trouxesse a loucura como o limite da liberdade.
Essa citação merece algumas considerações. Primeiro, a questão “Longe da loucura ser um fato contingente das fragilidades do organismo”, aí já está o descarte por Lacan da questão da organicidade das psicoses e esse vai ser um dos pontos onde ele vai reintroduzir a especificidade da Psicanálise, como que, decidindo uma polêmica que se mantinha, devido a certa ambiguidade que havia em Freud em relação a, em última análise, poder haver uma explicação neuroquímica das psicoses. Além disso, o que está enfatizando é que a psicanálise, ao descobrir o lugar prevalente da palavra na existência humana, afirma que a palavra, mais que o centro, é o eixo da existência. Eixo, no sentido da palavra buscar nosso destino entre dois limites; o da loucura e o da morte. Desde este ponto de vista a liberdade, esta liberdade que se pretende construir desde a condição humana, tem seu limite na loucura, outra palavra que pode levar o indivíduo a se matar. 0 extremo da liberdade é o de se matar.
Assim, pretender curar a “loucura” (entre aspas), essa loucura como lugar limite, como questionamento do humano, não é demasiado diferente de se pretender expulsar a morte do horizonte de nossa vida.
O louco é o verdadeiro homem livre, pois não precisa de outro, não precisa do semelhante para buscar a causa de seu desejo. Não confundir esta posição, no entanto, com uma certa posição libertária dos anti-psiquiatras que colocavam a loucura como ideal do sujeito humano.
Lacan embora situando a loucura como limite da liberdade do homem, pergunta se este limite não é baseado num engano, que é a própria condição da existência humana.
Psicanálise e psiquiatria
Aproveitando essas colocações, introduz então, a primeira questão preliminar, que é fundamental para se pensar a questão da prática clínica da psicanálise das psicoses, e que é a questão das relações entre a clínica psicanalítica e a clínica psiquiátrica.
Em nenhum outro ponto do campo freudiano, como no das psicoses, a pregnância psiquiátrica está tão marcada. A psiquiatria é anterior à psicanálise. A psicanálise é herdeira, pelo menos da nosografia psiquiátrica, embora tente superá-la. A psicanálise não só utiliza a nosografia psiquiátrica, como a prolonga. As referências freudianas continuarão falando sempre em histeria, paranóia, melancolia, demência precoce, que são sem dúvida, termos herdados do saber psiquiátrico.
Porém Freud cria novas entidades clínicas: neuroses de angústia, neuroses atuais, neuroses narcísicas, neuroses de transferência; quer dizer, a psicanálise não só herda um saber psiquiátrico, como o prolonga. Não se pode deixar de dizer que embora os analistas se lamentem de não haver conseguido eliminar a nosologia psiquiátrica, talvez tenham por ambição fazer com que um dia a psicanálise chegue a se constituir como teoria da psiquiatria. E talvez seja interessante pensar que esta ambição fosse a de Freud também e talvez cumpra aos analistas atuais separar-se desta herança e estabelecer uma nosografia, um discurso, uma terminologia própria unicamente à psicanálise.
A clínica psiquiátrica, toda ela é constituída em fins do século XIX e começo do século XX. Nos anos vinte, já estava totalmente formalizada, não havendo a partir daí modificações na sua estrutura nosográfica. 0 último quadro nosográfico introduzido na psiquiatria foi a paranóia de auto-punição por Lacan. De lá para cá não houve posições de novas entidades clínicas. Isso talvez se deve ao fato de hoje a clínica psiquiátrica ser uma clínica da medicação.
A clínica psiquiátrica atual é a clínica das respostas do sujeito aos psicofármacos, quer dizer, não se classifica mais a manifestação fenomênica de certos sintomas e faz-se o diagnóstico a partir de uma articulação da combinatória desses sintomas, como era a proposta até os anos cinquenta. Atualmente se caracterizam os quadros conforme a resposta à administração dos psicofármacos. Já a psicanálise é a clínica do particular, a psicanálise desloca os parãmetros normativos da psiquiatria, centrados em torno das noções de déficit e de dissociação, para recolocá-los nas relações do sujeito ao outro, que é a estrutura mesma do enquadre analítico.
Dentro dessa estrutura, é onde se fará o diagnóstico. 0 avanço de Lacan consistiu em introduzir o sujeito na psicose, coisa que não havia antes, havendo apenas uma medição da psicose. A psicose era medida em termos de déficit, de dissociação, de não funcionamento de certas funções mentais. Se introduz a questão do sujeito na psicose, já não é mais possível, já não se permite mais que essa questão, a da psicose, seja tratada nestes termos.
O que enfatizo a partir daí, é que “longe da loucura ser um fato contingente às fragilidades do organismo”, Lacan se mantém fiel à descoberta freudiana de que um sintoma tem um sentido, sentido esse independente das vicissitudes do organismo.
Foi aí que se deu a descoberta de Freud, ao perceber que a histeria não é uma produção de uma disfunção orgânica, e sim que ela tinha um sentido ligado à história de vida do sujeito, comprometido com essa história e principalmente que esse sentido, se restabelece através das palavras.
A psicanálise constitui sua clínica partindo da psiquiatria, porém estabelecendo uma especificidade própria. Esta especificidade se demonstra através do único meio que a psicanálise tem para a sua investigação, que são palavras, pois tanto na neurose como na psicose, trata-se da estrutura da linguagem, ou melhor, da relação do sujeito com o significante.
É justamente na relação do sujeito ao significante, ou melhor, numa carência do significante, onde se situa o drama da loucura. Esta é a tese de Lacan.
O sintoma e o diagnóstico
Devo introduzir, então, a primeira especificação da psicanálise em relação à psiquiatria: a questão do sintoma.
O sintoma não é o mesmo no campo psiquiátrico e no campo psicanalítico. Na psiquiatria o campo é constituído pelo psiquiatra. Ele é quem observa, descreve e classifica. A clínica psiquiátrica é uma clínica da observação. Já na clínica psicanalítica, o sintoma só existe se falado pelo paciente. A clínica psicanalítica é a clínica do falado.
O sintoma psicanalítico é constituído na experiência analítica, no endereçamento do discurso do paciente ao analista. 0 analista, desde esse ponto de vista, faz parte do sintoma do paciente.
Uma segunda especificação: a questão da demanda. A análise deve ser feita a partir da iniciativa, de desejo no paciente. Isso porque, ao procurar um profissional, o paciente supõe que este saiba sobre o seu problema, sobre o seu sofrimento. E esta suposição é a estrutura mesma da transferência. É isso que torna possível a análise. Já a demanda feita ao psiquiatra é, na maioria das vezes, uma demanda social ou uma demanda do poder público.
Decorre disto, que a formalização do diagnóstico é diferente para o psiquiatra e para o psicanalista.
Daí a terceira especificação: em psicanálise o diagnóstico é feito na situação transferencial, não a partir dos elementos descritivos, tampouco pela intensidade dos sintomas, nem mesmo pelas noções de déficit e de dissociação.
A posição freudiana de neuroses transferenciais e de neuroses narcísicas, embora superadas por Freud em 1924, quando ele retira a melancolia como a única neurose narcísica e mantém o resto como sendo o quadro das psicoses, foi uma primeira tentativa de um critério específico de diagnóstico das psicoses.
No entanto, antes de entrar na questão da estrutura psicótica, segundo Lacan, tenho que introduzir a diferença entre estrutura psicótica, a psicose e o psicótico.
A estrutura psicótica, que é o que Lacan vai tentar dar conta na sua teoria, é na condição decorrente da estrutura do sujeito que, devido às vicissitudes do Complexo de Édipo, determinará uma condição tal, que pode decorrer na aparição de um psicótico. Quer dizer, uma pessoa tem uma estrutura psicótica e pode desenvolver uma psicose ou não; só vai ser psicótico quem tiver uma estrutura psicótica.
Lacan, quando de sua época de formação psiquiátrica, havia escrito na parede do hospital onde fazia residência em psiquiatria, “só é psicótico quem pode” no sentido de que não é querer ser louco que vai possibilitar que se seja louco, é necessário que haja uma estrutura.
A estrutura psicótica mediante certas situações desencadeia um surto psicótico, que é a atualização dessa estrutura. Já os grupos das psicoses são considerações teóricas em torno dessa manifestação.
Um outro problema que a questão do diagnóstico traz, é a da tipologia das psicoses. Penso que isso é central no que se refere ao posicionamento particular de Lacan em relação às outras leituras de Freud e no que se recupera do saber psiquiátrico e no que isso questiona esse saber.
As psicoses são um saco de gato — se coloca aí tudo e de tudo. Não há um mínimo acordo quanto às entidades nosográficas, há dezenas de classificações que variam, nos países de origem conforme as formalizações aí feitas. Na França é uma classificação, na Inglaterra é outra, na Alemanha é outra, e o Brasil como qualquer país colonizado, depende das influências aqui reinantes, das influências dominantes da cultura que nesse momento sejam mais percebidas aqui.
Para entrar nossa questão precisaríamos partir da idéia de que as entidades clínicas nos seus modelos de constituição não se definem por elas mesmas.
A psicose não se define por ela mesma, neurose não se define por ela mesma. Elas se definem, umas em relação às outras. No entanto, nesta questão da tipologia da psicose, o que Lacan retoma, é que o eixo da psicose seria o eixo paranóia-esquizofrenia. Nisso não sei se haveria um retorno, ou uma crítica a Kraepelin, seria uma questão que teríamos de discutir, mas isso vai marcar um posicionamento fundamental e único de Lacan frente às psicoses.
Colocando a paranóia como eixo em relação à esquizofrenia, o eixo organizador das psicoses passa a ser a paranóia, o próprio conceito da paranóia. Essa não é a mesma posição de Melanie Klein que, fiel a Freud de 1924, que ao introduzir a distinção estrutural entre neurose e psicose no seu artigo “Neuroses e Psicoses” de 1924, mantém unicamente a melancolia como neurose narcísica, ficando as demais entidades aí reunidas anteriormente com o nome de psicose. É então, pergunto, que a posição esquizo-paranóide e a posição depressiva reencontram a sistematização de Kraepelin entre demência precoce e PMD (Psicose maníaco-depressiva)? Então aí nós teríamos o outro eixo das psicoses que vai da paranóia à melancolia.
A teoria de Lacan implica em que a partição se dá entre a esquizofrenia e a paranóia. Então, a organização que Lacan vai fazer no campo das psicoses, a partir da paranóia, seria equivaler a paranóia, na explicação freudiana, ao momento do narcisismo, o que para Lacan corresponderia à fase do estádio do espelho. A esquizofrenia, que na postura freudiana equivaleria a uma regressão ao auto-erotismo, para Lacan corresponderia ao corpo despedaçado. Então para Lacan, nesse sentido, o esquizofrênico adoece por falta de paranóia, falta do estádio do espelho, aquele elemento organizador desse despedaçamento do corpo. A questão que se coloca na prática é se não seria analisável somente a parte paranóica da esquizofrenia, num sentido de que a lógica da psicose se daria somente pela paranóia e a esquizofrenia seria justamente a ausência de uma lógica na relação do sujeito ao significante? É a questão que nos traz uma reflexão sobre o “caso Schreber”. 0 caso Schreber, segundo o diagnóstico dado por Freud, era de demência paranóide, que na classificação atual, depois de Bleuler, equivale à esquizofrenia paranóide. Mas Freud sempre falou no “caso de paranóia” e eu me pergunto se então a única parte realmente analisável das psicoses não seria essa parte paranóica das esquizofrenias. Isso decorre de um posicionamento lacaniano.
A melancolia na psiquiatria aparece sistematizada por Kraepelin, num eixo da melancolia com a mania. É o quadro da psicose maníaco-depressiva. No entanto ele recebe outros nomes: “psicastenia” em Janet; “paixão triste” em Esquirol ou melancolia, como prefere Freud. Na psicanálise, a depressão implica uma avaliação de um estado de ânimo. O inconsciente aparece aí convocado somente no momento da comunicação desse estado de ânimo. Não por ele mesmo. Por isso Lacan diz que toda tristeza é incumbência do pensamento. A vivência depressiva carece então de uma autenticidade ao menos verbal. Assim, Lacan, trata a tristeza a partir do saber.
Penso que esta postura lacaniana é passível de crítica, de reflexão, porque podemos pensar se isso não resulta num idealismo. Se poderia criticar essa postura do Lacan como intelectualismo, por fazer prevalecer somente os significantes.
No entanto, o que interessa mesmo é o registro da perda de objeto, e não o do recalque que classicamente na psicanálise, está em jogo na depressão.
Especificidade da estrutura psicótica
Na neurose o mecanismo é o recalque. Já na psicose que Lacan vai isolar é um mecanismo específico. A posição dele é que não haveria um mecanismo específico para a melancolia; o que haveria aí seria o registro da perda do objeto, e que isto é válido tanto para a neurose como para a psicose. É o luto que, classificamente desde Freud até Melanie Klein dá o paradigma da depressão, seja no neurótico ou no psicótico.
A questão foge assim, segundo Lacan, das estruturas, pois há o fato da perda do objeto se dar na psicose ou na neurose.
Na psicose, principalmente na melancolia delirante, e esta é uma das características que faz obstáculos à inscrição da melancolia como uma estrutura clínica, é o fundo de verdade que ela encerra: o abandono do outro. O outro se repara, ele tem uma falta, uma fenda, e essa falta é de estrutura. Lacan seguindo a Freud, chama isso de lucidez da melancolia, pois nas palavras de Freud mão há outro pecado universal além da dor de existir.
Essas queixas do depressivo, de que não está sendo compreendido, de que as pessoas não lhe dão o que quer, faz Lacan ver um fato de estrutura. Não que isso seja uma estrutura particular, e sim um fato estruturante do sujeito, o sujeito se estruturando a partir da falta.
Uma segunda questão preliminar, então: a especificidade da estrutura psicótica.
Na visão da psicanálise, para um sujeito qualquer, uma organização mínima de significantes é constitutiva de seu mundo. Essa organização não é dada de entrada, ela é dada a partir de uma estrutura mínima que Freud chamou de Complexo de Édipo. A tese de Lacan é que no psicótico esta pertubação dos sentimentos de realidade, das relações com o outro, desse delírio comum que funda o sentido comum; encontra a sua razão num acidente dessa organização significante.
Recolocando a referência ao Édipo no cerne da teoria psicanalítica das psicoses, é no acidente desse registro que Lacan designa o efeito que dá à psicose, a sua condição essencial, com a estrutura que a separa das neuroses. É numa função de inconsciente diferente da de recalcado, onde Lacan funda a especificidade da estrutura psicótica.
Freud havia identificado o inconsciente com o recalcado. Lacan ao colocar que havia elementos inconscientes, que estariam inconscientes por efeito de um outro mecanismo diferente do mecanismo de recalque, ele está fundando, ele esta afirmando que há uma função do inconsciente diferente da de recalcado.
Este é um avanço fundamental de Lacan em relação a Freud.
A tese central de Lacan sobre a estrutura da psicose é a seguinte: há na psicose uma falta essencial de um significante primordial. A falta desse significante deve-se ao fato de ele ter sido, devido a um acidente do Édipo (Verwefen). Verwefen, é um termo freudiano usado muitas vezes como sinônimo de Verleugung, Freud utiliza ora um, ora outro, praticamente explicando o mesmo mecanismo.
Lacan faz é retomar este mecanismo que aparece esparsamente na obra de Freud e unificar isso sob um mecanismo proposto por ele e, sustentado em Freud, e que Lacan chamou de forclusion, e que está traduzido para o português como foraclusão. É que o uso desse nome, se refere a um procedimento jurídico, que significa a questão de um crime após uma certa data, devido a este crime estar prescrito ele não pode ser punido por esse ato, pelo fato de não haver uma legislação anterior a isto. A especificidade desse mecanismo jurídico, segundo Lacan, serve para esclarecer o uso que ele faz nesse conceito que ele retira de Freud.
Função paterna
Termo esse, que toma o seu valor na medida em que se pode diferenciar de outros, vamos chamar assim, destinos do significante, recalque e recusa. Esse significante que falta, devido à foraclusão, é o significante do pai. Não do pai enquanto sujeito biológico e sim da função fálica. Aliás essa valorização da função do pai é um aporte de Freud. Lacan somente o retoma.
Lacan introduz o pai, não como sujeito biológico, mas como significante que ele chama o “Nome do Pai”, o que na teoria lacaniana é o significante da lei no Outro.
Se o neurótico questiona o pai simbólico e imaginário, no núcleo do delírio psicótico existe uma interrogação sobre a função do pai no real.
Lacan define a causa estrutural das psicoses como a impossibilidade de que o significante pai advenha ao nível do simbólico.
Desta forma, Lacan reorganiza o campo psicanalítico das psicoses. A psicose no ensino de Lacan tem uma estrutura. A foraclusão do Nome Pai, este significante fundamental que estabelece a organização de significantes, é o que assegura a estabilidade do pequeno mundo de todos nós. A psicanálise ensina, pelo menos desde essa teoria, que a psicose expõe o sujeito ao nível mesmo da sua estrutura. Lacan chega a dizer que a psicose é a estrutura.
Decorre da posição de Lacan: primeiro, que a clínica psicanalítica das psicoses não inclui uma clínica do indivíduo biológico no vivente, só há sujeito, pelo efeito do significante.
A hipótese de Freud de que o delírio constitui uma defesa frente a impulsos homossexuais, se demonstra insuficiente. A questão homossexual detectada por Freud não é a causa determinante da paranóia, senão o sintoma. Tampouco se trata de uma clínica de desenvolvimento psicossexual, desde o ponto de vista genético. Se Freud enfatizou a regressão narcísica na psicose, não o fez para excluir a função paterna.
Tratamento analítico das psicoses
O que explica a fenomenologia do surto psicótico é um outro conceito que surge dos fenômenos observáveis e que se trata da regressão tópica ao estádio do espelho.
Decorrente destas duas questões que eu coloquei, finalmente a questão central desse debate: É possível uma psicanálise da psicose? Pergunta que adquire sentido desde as colocações de Lacan. Se a psicose decorre de uma alteração do simbólico, e é essa estrutura simbólica que coloca a possibilidade de um Outro, no caso da psicose ao não funcionar o registro do simbólico, não há saber no Outro. Há uma atribuição de certeza ao Outro, não há uma suposição.
Justamente é esta atribuição de certeza que caracteriza a irredutibilidade do delírio do psicótico. A característica da estrutura psicótica é a certeza. O psicótico não duvida de suas afirmações, por isso nós dizemos que ele delira. A via do simbólico, via da análise por excelência, aonde se joga o discurso e seus equívocos, fica alterada. O psicótico estará fora do significado, porém não fora da linguagem.
A transferência, a possibilidade da precipitação da verdade pelo Outro, não opera, ou opera de maneira diferente.
Por isso, a necessidade de Lacan colocar uma questão preliminar a todo tratamento possível de psicose. Para que o tratamento seja psicanalítico, para que não seja uma psicoterapia das psicoses, para que seja psicanálise na sua especificidade, na especificidade que a difere na prática psicoterapêutica, Lacan vê a necessidade com psicóticos, de uma ação que ele chama manobra de transferência.
Este termo merece um reparo, porque não chega a ser um conceito.
O termo que Lacan usa em francês é maniement, cuja tradução mais próxima seria manejo. Mas falar em manejo da transferência é algo que os analistas não vêm com bons olhos, no sentido de que se aprende que, justamente, o analista não deve interferir, deve manter a sua naturalidade, não deve agir sobre o desejo do paciente.
No entanto, essas indicações referentes a esse maniement, a esse manejo, merecem uma tradução mais apurada para podermos entender o que Lacan tenta apontar. E vejam que isso é fundamental na psicose, porque ele vai dizer que um psicótico só é tratável a partir de uma manobra da transferência. Esse termo maniement, em francês, adquire um sentido mais próximo de administração. Seria, então, mais interessante pensarmos em termos da administração da transferência.O termo manobra também é usado como tradução, por ser um termo de logística militar.
Lacan utiliza a referência a Clausewitz para pensar a direção do tratamento analítico em termos de tática, estratégia e política. Tática é o que se joga no momento, estratégia é o que se joga a longo prazo e política é o que organiza a relação da tática com a estratégia. Isso, em termos militares, significa que se pode perder uma batalha, ou se deve, às vezes perder uma batalha, para se ganhar a guerra. Então a manobra também se refere a uma certa consideração de como o analista se situa frente à situação da transferência.
Em termos gerais, se trata de quando a transferência se apresenta como resistência, transferência erótica, por exemplo, e é onde não há efetivação da possibilidade de análise. Só há análise quando a situação é de transferência como saber. Então a ação do analista consiste em possibilitar essa passagem da transferência como resistência à transferência como saber. Essa atuação é o que Lacan sugere que se chame manobra de transferência.
A transferência na psicose
Retomando, então, à questão da especificidade da psicose, é que seu tratamento só seria possível numa ação que se chama manobra da transferência. Essa manobra no psicótico consistiria numa mudança necessária da posição que o psicótico ocupa no início da situação analítica. Pois decorrente da sua estrutura, o psicótico se coloca frente à demanda do outro como objeto. E esse é justamente o lugar que o analista deve se colocar. Não se pode deixar de dizer que essa noção de analista como objeto é uma intuição kleiniana que Lacan recupera. E justamente quando Lacan formaliza a via do real na análise, que é a do analista como objeto, é que se vai tornar possível efetivar a prática psicanalítica com psicóticos.
No entanto, já no texto ao qual estou me referindo, que é de 1956, a posição de Lacan era de que a psicanálise das psicoses era possível.
Porém, isso introduzia a concepção a ser formulada da manobra da transferência que ele na época não tinha elementos para formalizar.
Na época, por não ter elementos para ultrapassar Freud, Lacan não vai mais longe. Seu objetivo era restaurar o acesso à experiência que Freud descobriu, colocando nestes termos o destino do praticante que desconhecesse as lições impostas pela psicanálise, ou as lições impostas pela psicose. Diz Lacan: “Utilizar a técnica que Freud instituiu fora da experiência na qual ela se aplica, é tão estúpido quanto fatigar-se no remo quando o navio está na areia”. Quer dizer, tentar fazer análise num psicótico sem essa manobra da transferência, ou sem essa especificação do que é o psicótico, não poderia ser psicanálise porque os pré-requisitos constitutivos da estrutura da situação analítica não se dão, não se efetuam.
Fica a questão da manobra da transferência que é formalizada, tal qual se entende isso hoje em dia, não a partir diretamente de Lacan.
Ele nunca chegou a formalizar isso, mas seus seguidores, desde certas indicações em sua obra, pretendem formalizar esta manobra da transferência. Ela consistiria numa inversão do lugar que o paciente ocupa em relação ao analista no início da cura. 0 psicótico se coloca na posição de objeto e se dirige ao analista na posição de sujeito. Nessa situação o psicótico está na posição de analista e o analista na posição do paciente. A menos que haja uma inversão dessa posição, a análise não é possível.
Agora, como se faz essa manobra? Qual é a especificidade dessa manobra na psicose, diferente da manobra na neurose?
A indicação que se retira de Lacan é de que o terapeuta se coloque na situação de secretário do alienado. O psicótico é aquele que não teve acesso à castração, por isso ele não tem acesso ao simbólico.
Ao não ter acesso à castração ele é totalmente invadido pelo gozo do Outro, ele é totalmente tornado pelo Outro, nas vozes que ele escuta, nos delírios que ele constroi. São respostas a esse interlocutor que é o Outro com o qual ele conversa, e pelo qual está tomado. O terapeuta nesse momento, ao se colocar como secretário do alienado, na verdade se coloca como sujeito castrado frente a esse outro, marcando esses limites ao psicótico. É interessante que, atualmente, a prática de acompanhantes terapêuticos parece que cumpre exatamente esta função, embora seja uma prática totalmente desvinculada da psicanálise e bastante recente. Mas é usada porque é eficaz.
A noção de manobra da transferência é muito delicada, muito controversa e é importante ressaltar que esses elementos que eu estou expondo são o momento atual da investigação dentro da prática analítica de orientação lacaniana. São questões totalmente abertas, são meramente proposições. Só recentemente é que os analistas de orientação lacaniana estão começando a realizar uma prática neste sentido. O importante é refletir, é enfatizar que houve realmente com Lacan um avanço em relação a Freud no tratamento das psicoses.
Uma consequência importante do seu ensino é que a psicose e a neurose são estruturas separadas e que não se comunicam. Por exemplo: na visão kleiniana, há essa continuidade, sendo a psicose até mesmo uma estrutura fundamental onde a neurose se estrutura como uma defesa dessa estrutura fundamental. Haveria, então, uma continuidade entre elas.
Para Lacan as estruturas da neurose e da psicose são separadas e independentes. Em função dessa especificação é que se justifica uma abordagem particular e única, que os analistas lacanianos fazem da psicose e que até o momento é mais uma promessa do que uma realidade.
É importante mantermo-nos firmes frente àquela proposta de Lacan de não retrocedermos frente à psicose, principalmente frente ao que nós temos que aprender com ela.
Referência bibliográfica
Lacan, J., “D’Une question preliminaire a tout traitement possible de Ia psicose...” in Écrits, pg. 531, Sevil, Paris, 1966.