O Registro do Imaginário e o Estádio do Espelho
Márcio Peter de Souza Leite
(Texto redigido a partir da conferência feita na Escola Freudiana de São Paulo, maio/1979;
publicado na revista Psilacanise - Clínica Freudiana, ano IV, nº 26)
O espelho [2], esse bizarro objeto mágico, sempre foi fonte de inspiração para escritores, poetas e, modernamente, até para cineastas, pois a fascinação desta superfície lisa, não está no que ela é, mas sim nas imagens que reproduz. Magicamente, o espelho mostra o que não se pode ver a não ser desde outro lugar: o mistério do próprio corpo na sua totalidade.
Só com o espelho é que nós podemos olhar nos próprios olhos...
Com Lacan, o espelho abandona essa aura mística e sobrenatural para se tornar uma concepção psicanalítica. Mais que isso, torna-se mesmo o instrumento essencial ao destino de cada homem.
É necessário ressaltar que, independentemente do que a moderna fisiologia aponta sobre a primazia cortical do sentido visual no homem [3], e as articulações que este aspecto possa ter com as já antigas experiências de psicologia comparada que Lacan evoca dos trabalhos de Baldwin, bem como suas referências à nascente ciência da etologia [4], o espelho, no uso que Lacan faz dele, é uma metáfora.
Sua concepção não aponta unicamente a uma questão de psicologia evolutiva, decorrente da prematuração específica do ser humano [6], senão, à questão mesma da estrutura ontológica do mundo. Mundo este tão real para os cegos, como a alucinação o é para os psicóticos. Questão de pecipiens [7], e não de perceptum, como mais tarde se colocará.
Assim prevenidos, ler este escrito de Lacan concebido há quase cinqüenta anos, e que ainda hoje mantém toda sua importância e espanto, requer dois reparos:
Primeiro, o de situá-lo como a conclusão de um percurso, que através do questionamento do Imaginário, aproximou Lacan à psicanálise. Antecedentes estes que marcam sua procura do que ele chamava de conhecimento paranóico. O outro reparo, será o de resignificá-lo com sua produção ulterior, rearticulando-o com os conceitos introduzidos depois.
Aplicando ao próprio Lacan o que nos ensinou a respeito de Freud – que haveria que ser fiel não à letra, mas ao sentido da obra – obteremos uma elaboração mais ampla dos seus desenvolvimentos.
Assim, depois da sua morte, este trabalho de rearticulação après-coup toma maior consistência, possibilitando ordenar e questionar sua produção a partir do efeito retroativo dos próprios conceitos produzidos por ela.
Qualquer ordenação do ensino de Lacan, no entanto, sempre será mera convenção, servindo apenas aos fins didáticos de se poder introduzir o valor do tempo na seqüência das teorizações.
Por outro lado, ler cronologicamente sua obra pode ser uma ingenuidade, se desconhecem suas conclusões. Por isso, a única utilidade dos comentadores de Lacan seria a de encontrar um sentido para cada momento desta obra, em função da sua totalidade. Assim como Lacan produziu um Freud não linear, somente os principiantes no percurso lacaniano não fariam o mesmo com Lacan...
Desta forma, há quem sugira a formalização do "objeto a" [8], introduzido por Lacan em 1962/63, como o divisor de águas de sua produção.
Conceito este que em sua concepção leva a marca da articulação especular, mais precisamente, onde se mostra a relação especular com o outro.
Pois o investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação imaginária, pelo fato de ter um limite: nem todo o investimento libidinal passa pela imagem especular; há um resto, que é o pivô da dialética entre o todo e o falo.
A localização imaginária do falo [9] chegará sob a forma de uma falta: -j [10].
O falo é, sem dúvida, uma reserva operatória; ela não está somente representada ao nível do Imaginário, senão que está cortada da imagem especular.
-φ posteriormente chamado de falo imaginário, em contraposição ao 0, falo simbólico. Articulação muito posterior ao texto primeiro do espelho, e que colhe os frutos das sementes aí plantadas, principalmente no que se refere à distinção e articulação do Simbólico, do Real e do Imaginário.
Esta seria, aliás, outra forma de se pontuar momentos do desenvolvimento lacaniano. Consiste em compreendê-lo como a elaboração sucessiva e progressiva dos três registros acima mencionados.
Assim, o primeiro período, o da elaboração do registro do Imaginário, do qual o estádio do espelho é o texto princeps, se situaria de 1936, data da primeira comunicação feita por Lacan sobre o tema, até 1953, quando a partir do discurso de Roma, que toma o nome nos "Escritos" de "Função e campo da palavra e da linguagem na psicanálise", passa a elaborar o registro do Simbólico com maior precisão.
O terceiro período se iniciou em 1976, ano do Seminário intitulado "O Sintoma", no qual o eixo de referência, a produção escrita de James Joyce, o famoso autor de "Ulisses", introduziria uma precisão no conceito de Real em Psicanálise.
E é justamente neste último período do seu ensino, que Lacan coloca a ênfase na indissociabilidade dos registros, querendo dizer que para que haja UM são necessários TRÊS (registros).
A partir disto, o que importa é a inter-relação entre esses elementos, invalidando a possibilidade de operá-los independentemente.
Conclusão à qual Lacan só pode chegar investigando e formalizando os registros um a um.
Estamos então de volta na questão inicial: Como introduzir o espelho, e o imaginário, considerando-se os quase cinqüenta anos de produção ulterior de Lacan?
Tentaremos seguir o próprio Lacan.
1º Introduzindo a "figura topológica" do nó Borromeano, que representa a possibilidade de articulação destes três registros entre si, com o objeto a.
Sugerindo, a título de síntese, o seguinte resumo das inter-relações dos registros e dos elementos envolvidos na sua formulação:
a) O Imaginário, segundo a concepção do estádio do espelho, tem uma supremacia sobre o Real, pelo menos nas duas formações que são i (a), imagem. do corpo, e m , o eu que se constitui a partir do semelhante.
b) O Simbólico prima sobre o Imaginário no sentido em que a dimensão do sujeito e o I(A) , ideal do Ego sustentado a partir do Outro, ressoam além do espelho.
c) O Real supera o Simbólico em dois pontos: primeiro, a verdade não pode ser toda dita, decorrendo disto que o Real não é simbolizável por completo, Por outro lado, o gozo na função fálica. somente opera a partir de uma exceção:
Estes elementos, no que diz respeito ao texto do estádio do espelho, permitem as seguintes considerações:
O estádio do espelho é uma concepção em princípio sustentada pela idéia da antecipação do psicológico ao biológico, produto de uma insuficiência ocasionada pela falta de mielinizaçao do sistema nervoso (Fetalização).
Assim, do Real das conseqüências desta prematuração específica do ser humano, há uma antecipação do Imaginário, provocando a constituição do Eu.
É justamente a questão do investimento libidinal não especularizável que introduz o objeto a. O corpo elevado a elemento significante se relaciona com a cadeia, sustentada por um Outro e um Ideal. Limite que o Simbólico colocará no Imaginário, e que ressitua a falta num nível estrutural, e não mais num nível unicamente biológico, como no texto de 1949.
Aplicando a isto a escritura da lógica quântica , que é um quantificador universal e que quer dizer para todo, se obtém a fórmula Da mesma forma ,há outro quantificador que se escreve . O uso que Lacan faz disso se refere a estas possibilidades, sendo que a barra sobre as funções significam negação.
Quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro. A esquerda, a linha interior , indica que é pela função fálica que o homem, como todo, toma inscrição, exceto que essa função encontra seu limite na existência de um x pelo qual a função fálica é negada. Aí está a função do pai.
Em princípio, como mostramos, na teoria lacaniana a falta aparece como constitutiva do sujeito, via teoria de Bolk (prematuração específica). Neste sentido, o estádio do espelho não está de todo dentro do campo freudiano, pois busca uma referência do real, entendido como exterior ao campo analítico, para fundar o sujeito numa falta. Porém, a partir do momento que Lacan introduz o Real, Simbólico e Imaginário, a falta aparece fundada primeiro como castração, e logo deduzida da própria estrutura significante. 0 famoso é o que Lacan utiliza para formalizar esta falta e inscrevê-la ao nível do significante mesmo. Nas suas formalizações, existe uma vertente em que se explica a falta como efeito de estrutura sobre o sujeito, o que é, pela sua vez, um efeito desta estrutura. Segundo esta vertente, a estrutura mesmo encerra uma falta. Tal ambiguidade aparece harmonizada no texto "Subversão do sujeito..." onde se demonstra que ambas explicações são necessárias.
Por sua vez, os limites do Simbólico estão no Real, no que toca a uma lógica da concatenação significante, onde o Real do corpo aparece apenas como elemento significante.
Acreditamos pelo exposto, que a leitura do texto ora traduzido adquire uma conotação dupla: histórica, se lido ao pé da letra, e metafórica, se tomados os elementos que o resignificam ulteriormente.
Colocada assim a inter-relação dos registros e a impossibilidade de operar um deles sem recorrer aos outros, voltemos historicamente ao desenvolvimento do registro do Imaginário para situar os textos que aqui aparecem.
O percurso de Lacan anterior à concepção do estádio do espelho indica que chegou a ela através da abordagem da paranóia, resultado de sua tese de doutorado em medicina, apresentada em 1932, que levava o título: "As psicoses paranóicas e suas relações com a personalidade", da qual o conhecido caso Aimée é o paradigma.
Aí se sustenta que o crime paranóico é um ato cometido contra si mesmo, através da imagem idealizada do outro.
Estas conclusões já introduziram a questão do se ver no outro, o que coloca este outro como um espelho que permite ver-se como se gostaria ser.
Conclusões aliás confirmadas e ampliadas pouco tempo depois, num estudo sobre o crime paranóico das irmãs Papin, publicado em 1933 na revista surrealista "Minotaure".
Encontrando na motivação do crime paranóico a ação de uma instância psíquica auto-reguladora e punitiva, Lacan se viu levado à psicanálise, onde a noção de supereu dava resposta a sua investigação.
Quatro anos depois de sua tese, em 1936, com Freud ainda vivo, Lacan faria sua estréia na psicanálise no XIV Congresso Internacional de Psicanálise realizado em Mariembad, onde apresentou uma comunicação intitulada "O estádio do espelho - teoria de um momento estruturante e genético da constituição da realidade conhecida em relação com a experiência e a doutrina analítica".
Esta exposição, feita em 3 de agosto de 1936, nunca teve seu texto publicado, nem mesmo nas atas do congresso, aparecendo apenas o título mencionado no International Journal of Psychoanalysis, 1937, I, 78.
Seria somente treze anos mais tarde, em 1949, quando este mesmo texto, adequado à evolução do pensamento de Lacan, encontraria sua formalização tal qual é conhecido hoje, e cuja tradução aparece aqui.
Isto ocorreu numa comunicação ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise realizado em Zurique, que recebeu o título de O estádio do espelho como formador da função do eu, tal qual nos é revelado pela experiência psicanalítica". Este texto, incluído nos Escritos (1966, págs. 93-100), foi originalmente publicado na revista Francesa de Psicanálise em 1949, vol. 4, págs. 449-455.
Que diferenças há entre estas duas versões e que desenvolvimentos sofreria esta conceitualização na sequência do ensino de Lacan?
Uma das diferenças nos é indicada pelo próprio título das comunicações que sugere em 1949 que o estádio do espelho não é visto apenas como uma fase do desenvolvimento da criança, serão com várias articulações:
1º - Como esclarecedor da função do eu, na experiência que dele nos dá a psicanálise;
2º - O estádio do espelho compreendido como uma identificação;
3º - O estádio do espelho como um caso particular da função da Imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade;
4º - No momento em que termina o estádio do espelho, se dá a inauguração do drama dos ciúmes primordiais;
5º - O esclarecimento, dentro desta concepção, do conceito de narcisismo primário;
6º - O esclarecimento da relação entre libido narcisista e a função alienante do eu, com a agressividade;
7º - Crítica à concepção do eu como centrado sobre o sistema percepção-consciência.
Outras indicações sobre a evolução das idéias de Lacan no período 1936-49, nos podem ser dadas pelos textos: "A Família: o complexo, fator concreto da patologia familiar" [16], aparecido na Enciclopédia Francesa em 1938, tomo 8, onde há uma menção e desenvolvimento da teoria do estádio do espelho, relacionando-o com o complexo de Édipo. "A Agressividade em Psicanálise", informe teórico apresentado ao XI Congresso de Psicanálise de Língua Francesa reunido em Bruxelas no ano de 1948, cujo tema é desenvolvido a partir da relação específica do homem com seu corpo, através das concepções introduzidas pelo estádio do espelho. "Propostas sobre a causalidade psíquica", 1950, onde, além do já exposto, aparece uma articulação entre o conceito do narcisismo tal qual é definido pela concepção do estádio do espelho, e a questão freudiana do masoquismo primordial.
Outras indicações estão no segundo texto aqui traduzido: "Algumas reflexões sobre o eu", comunicação feita por Lacan à Sociedade Britânica de Psicanálise em 2 de maio de 1951 e aparecido no International Journal of Psychoanalisis em 1953 no volume XXXIV, 1-7.
Texto que esclarece e aprofunda as teses de 1949, referindo-se com maiores detalhes à etologia, cujos descobrimentos desconhecia em 1936.
Notas
[2] O espelho também pode ser introduzido do ponto de vista tópico, como referente que permite conceitualizar o espaço. Espaço que a partir da função do espelho na óptica física, pode ser dividido em real e virtual.
0 espelho implica em todo reconhecimento do outro, o que ido é uma exclusividade sensorial óptica (como, por exemplo, no caso dos cegos). Consideração que amplia a questão. O ser humano, à diferença dos outros animais, não completa sua maturação, no que concerne ao sistema nervoso, durante o período intrauterino. Daí a impossibilidade da criança coordenar os movimentos, e o tempo demorado que requer para o ser humano poder andar.
Isto se deve à falta de mielinização da bainha neuronal, que vai se desenvolvendo progressivamente no tempo que se segue ao parto.
[3] Para as questões relativas aos aspectos neurofisiológicos do sentido visual, consultar "El hombre-animal óptico", de J. Cuatrecasas, EUDEBA, 1962. Neste livro, o autor defende que a história natural do homem é a história da sua função visual. Digamos que Lacan começa onde este autor termina.
[4] A Etologia é a ciência que busca a compreensão da conduta humana a partir do estudo comparado do comportamento animal. Seus principais expoentes atuais são K. Lorenz, 5 Timbergen, I. Eibl-Eibesfeldt.
[7] Termos usados por Lacan na "Questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses", de 1956, incluído nos "Escritos". Com eles Lacan quer diferenciar o substrato sensorial, o perceptum, do representado pelo sujeito, o percipiens, que de modo algum são contínuos ou superpostos.
[8] Objeto causa do desejo, conceito introduzido por Lacan na década de 60, mola mestra do seu sistema teórico.
[9]Falo: sobre este conceito, ver o escrito fundamental de Lacan; "A significação do falo", de 1958.
[10] Em relação ao falo, deve-se precisar que o desenvolvimento lacaniano introduz o p , que seria a escrita referente ao pênis real. O W que seria o falo imaginário positivo, o -p o falo imaginário negativo, e o (D o fato simbólico. Freud articula a questão da ferida narcísica, com a experiência da perda do seio no desmame, com a perda das fezes, e até com a separação da criança do corpo da mãe na hora do parto. 0 complexo de castração, porém, só dá sentido a esta série a partir da conexão com a questão da possibilidade de perda do órgão genital masculino. 0 -p é a escrita que Lacan encontrou para a perda que constitui a razão mesma da série que Freud estabelece. Esta questão se articula ao estadio do espelho, enquanto que a imagem do corpo próprio vem ocupar o lugar de uma falta, decorrente da impossibilidade biológica do corpo de organizar esta imagem.
A Topologia é um ramo amplo e fundamental da matemática. Divide-se em dois sub-ramos: a topologia combinatória, e a topologia dos conjuntos de pontos. A topologia combinatória, a que interessa à psicanálise, é o estudo dos aspectos qualitativos intrínsecos das configurações espaciais que permanecem invariantes por transformações biunívoças contínuas. O nó Borromeano é uma figura topológica, que recebe este nome por ser o emblemado brasão heráldico da família dos Borromeus, do norte da Itália. Ele é composto pela amarração de três elos entre si, de tal modo, e esta é sua característica principal, que ao se desatar um dos elos, os outros dois ficam automaticamente livres.
- No texto "T 'Etourdit",de 1972, Lacan escreve o falo , convertendo-o numa função lógica. Uma função na qual o sujeito fica inscrito como uma variável, ou seja: x é fálico.
- Este percurso de Lacan se encontra melhor desenvolvido no livro "Lacan através dos espelhos", capítulo "Lacan criminalista", de 0. Cesarotto e M. Peter de Souza Leite, Editora Brasiliense, coleção Encanto Radical, 1985.
[16] Existe tradução portuguesa, Sociedade editorial Assírio Alvim-Lisboa, coleção "Pelas bandas da psicanálise", 1978.