Neuroteologia e psicanálise
Os nervos de Deus não são neurônios
Márcio Peter de Souza Leite
• Antes do pai: biologia como figura do materialismo
• O pai e o homem desnaturalizado
• Além do pai: O Deus de Schreber e a mulher
Antes do pai: biologia como figura do materialismo
A reportagem de capa da revista "Forbes" [1] celebra o encontro das neurociências com o marketing produzindo uma nova disciplina, a neuromarketing. Existe também a neurofilosofia, que advogando a tese de naturalizar conceitos como desejo, intencionalidade, consciência, foi transformada por Churchland de um neologismo curioso em uma disciplina reconhecida. Há também a neuroética, a neuropsicanálise, a neurobica, etc.
A significação do prefixo neuro implica numa referência às neurodisciplinas e, como sugere Luc Ferry [2], denota a biologia como uma nova figura do materialismo. Fazendo-se porta-voz do privilégio atribuído às neurociências na atualidade, Francis Fukuyama [3] comentando as conseqüências da revolução da biotecnologia, prevê um controle social que no futuro será regulado pelo controle do comportamento. Este controle social teria se tornado possível pela passagem da neuropsicofarmacologia, antes restrita unicamente à modificação de sintomas intensos, para uma atuação sutil no estado anímico, no que foi chamado por Peter Kramer [4] de farmacologia cosmética.
Haveria uma neurobiologia específica dos Homens bomba, dos serial killers, seria exata a hipótese a existência de uma ‘Síndrome amidaliana’ hipótese de uma malformação dessa estrutura cerebral para explicar condutas extremas? Existiria a molécula do fanatismo?
O que caracteriza as neurociências atuais são os avanços tecnológicos na área das neuroimagens que permitiram uma investigação dos neurotransmissores produzindo uma revivência do localizacionismo. Depois da radiografia e da tomografia, a ressonância magnética (MRI) é o mais novo instrumento de investigação do cérebro. Mais recente é, a ressonância magnética funcional que, fornecendo informações sobre mudanças no volume, e oxigenação do sangue, produzem imagens de como regiões específicas do cérebro funcionam. Porém, o mais notável avanço na investigação do cérebro é a tomografia por emissão de pósitrons, ou PET que difere da ressonância magnética, por mostrar não apenas a estrutura e o funcionamento do cérebro, mas também como este usa a energia bioquímica.
A partir de imagens obtidas por PET, pesquisadores procuraram entender o relacionamento entre espiritualidade e cérebro, lançando as bases de uma biologia da fé.
Segundo um novo ramo da neurociência, chamado neuroteologia, há uma ligação entre o cérebro humano e a experiência religiosa. A neuroteologia, ou o estudo da neurobiologia da religião e da espiritualidade, foi destaque graças a um artigo da revista "Newsweek" e ao livro "Why God won't go away: brain science and the biology of belief" ("Por que Deus não vai embora: a ciência do cérebro e a biologia da fé").
Andrew Newberg e Eugene Aquili descobriram em pesquisas feitas com um grupo de monges budistas tibetanos e numa comunidade de religiosas franciscanas que algumas partes do cérebro são estimuladas e outras ficam inativas pelas atividades religiosas como a meditação e a oração.
Segundo os autores “a sensação que os budistas chamam” "unidade com o Universo" e que os franciscanos atribuem à presença palpável de Deus, é uma cadeia de eventos neurológicos que podem ser observados objetivamente, registrados. As tomografias revelaram que, nos momentos de pique das preces e da meditação, o fluxo sanguíneo sofria uma redução drástica e uma intensa atividade elétrica nos lobos temporais acompanhava o êxtase místico, o que leva a considerar uma conexão entre o fenômeno religioso e o ataque de epilético, quando idêntica atividade dos lobos é registrada.
O pai e o homem desnaturalizado
Para a psicanálise não há nenhum Deus, nenhuma natureza bondosa, existe a dor dos desamparados e a neurose religiosa dos que acreditam estar protegidos por Deus.
Os seres humanos moldam Deus à imagem do “pai”. Deus é “um pai enaltecido”; “uma transfiguração do pai”; “um retrato do pai”; uma sublimação do pai, “um suplente do pai”, “um substituto do pai”, "uma cópia do pai", Deus ”é realmente o pai”.
Os deuses são encarregados de uma tarefa tripla: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os seres humanos com a crueldade do destino e compensá-los por seus sofrimentos.
O monoteísmo renovou o relacionamento com o pai. “Agora que Deus é uma única pessoa, as relações humanas com ele podiam recobrar a intimidade e a intensidade da relação da criança com seu pai”.
Além do pai: O Deus de Schreber e a mulher
Lacan assimila Deus ao Outro, lugar da verdade. Para Lacan, Deus não seria nem uma sublimação nem uma idealização do pai. As religiões seriam tentativas de domesticar Deus, de modelar o real com o simbólico das palavras e o imaginário dos corpos. Em lugar de ser uma sublimação ou uma idealização do pai, como supunha Freud, para Lacan as religiões seriam rebaixamentos dos deuses à indignidade do pai.
Lacan delimita um ponto que falta na reflexão filosófica moderna: Deus é existir e não ser. Os filósofos árabes concebem o ser criado como uma essência que não contém em si a razão de sua própria existência. A existência se distingue da essência. Para Deus, existência e essência faz sempre um.
Na leitura de Lacan, a existência reduz a importância da essência: “Sou o que sou”. O ser é uma essência a qual só sua causa confere a existência.”O tetragrámaton impronunciável” Yahve significa a existência necessária. O nome de Deus é mais um eu sou, que um ser ou uma essência.
Zizek no texto "O real da ilusão cristã: notas sobre Lacan e a religião" [5] aponta dois aspectos do Real lacaniano: a Coisa primordial e a letra/fórmula sem sentido, como no Real da ciência moderna. A esses dois Zizek acrescenta um terceiro Real, o “Real da ilusão”, o real de um puro semblante.
Para Zizek há três modalidades do Real, pois a tríade IRS reflete-se no interior da ordem do Real, de tal modo que temos o “Real” (a Coisa aterradora, o objeto primordial), o “Real simbólico” (o significante reduzido a uma fórmula insensata, como as fórmulas da física quântica), e o “Real imaginário” (o insondável que introduz uma divisão em um objeto ordinário).
Como Lacan diz que os Deuses são da ordem do Real, a Trindade Cristã poderia ser lida como Trindade do Real: Deus, o Pai, é o “Real real” da violenta Coisa primordial; Deus, o Filho, é o “Real imaginário”; o Espírito Santo é o “Real simbólico” da comunidade dos crentes.
Freud no estudo de Schreber, mostra a satisfação que o leva a contemplar, vestido de mulher, sua imagem no espelho, que no seu delírio, o leva a copular com Deus fazendo-o digno da fecundação divina.
A este gozo sem limite Lacan chamou de “empuxo-à-Mulher”, explicado como um gozo ligado à falta da função fálica, pois este Deus que goza dele, é o gozo do Outro, um gozo não fálico ligado à falta da castração.
Escreve Lacan: “Sem dúvida a adivinhação do inconsciente adverte o sujeito, desde muito cedo, de que, na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens” ou ser a Mulher de Deus.
A inclinação para a feminização, o “empuxo-à-Mulher”, é uma obrigação na sexuação do psicótico. No livro “Memórias...” com sua transformação em mulher e sua posição diante de Deus, Schreber dá um exemplo da feminização no psicótico: “Só a título de uma possibilidade que haja que ter em conta lhe digo: minha emasculação, de qualquer maneira, ainda poderia produzir-se, ao efeito do que uma nova geração saia de meu seio por jogo de uma fecundação divina”.
Ainda nas “Memórias...” Schreber afirmou: “Por duas vezes já tive órgãos genitais femininos, ainda imperfeitamente desenvolvidos, e experimentei no corpo movimentos de saltos, parecidos às primeiras agitações de um embrião humano. Nervos de Deus, correspondentes a um sêmen masculino, haviam sido projetados em direção a meu corpo por um milagre divino, e desse modo se havia produzido uma fecundação”.
Schreber se coloca como objeto do gozo do Outro, pois "empuxo-à-Mulher" exige a confrontação com as exigências de um Deus tirânico, o que justifica outros sintomas como a tentação suicida, a cadaverização do corpo, o prejuízo do sentimento íntimo da vida, a perda da identidade viril, as tentativas de automutilação, e a demanda de operação cirúrgica.
Schreber o exemplifica com sua transformação em mulher e sua posição diante de Deus: “como seria bom ser uma mulher copulando e ser a mulher de Deus”.
A identificação ao desejo da mãe está no fundamento da psicose: por não poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens.
Freud e Lacan mostram a satisfação que leva Schreber a contemplar, vestido de mulher, sua imagem no espelho. É a dimensão do gozo ligado à cópula divina que o conduz a tornar-se digno da fecundação divina. Nesta figura de Deus que goza dele, evoca-se o gozo do Outro, um gozo não fálico ligado a uma falta da castração.
É este efeito diante do chamado do gozo sem limite, que Lacan chamou de empuxo-à-Mulher, gozo ligado à falta da função fálica. Escreve Lacan: “Sem dúvida a adivinhação do inconsciente adverte o sujeito, desde muito cedo, de que, na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens” ou, ser a "Mulher de Deus".
A foraclusão do Nome-do-Pai tem como efeito fazer existir A Mulher. “Deus é a mulher tornada toda”. “Dito que faz da mulher não-toda o Deus da castração” [6]. “O que, porém, não faz de Deus um Todo não há Outro que responda como parceiro - sendo a necessidade da espécie humana que haja Outro do Outro. É aquele a que se chama geralmente Deus, mas que a análise revela que é simplesmente a mulher encarnação de um gozo infinito, uma Mulher completa, não marcada pela castração” [7].
BIBLIOGRAFIA
[1] Set de 2003, pag. 62
[2] Ferry, L., A sabedoria dos modernos
[3] Fukuyama, Francis. Nosso Futuro Pós-Humano
[4] Kramer,P., Ouvindo Prozac
[5] Zizek S.,O real da ilusão cristã: notas sobre Lacan e a religião, in Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise,Wladimir Safatle (Org), Editora Unesp, 2003.
[6] RSI in Ornicar? Num 5 pg. 25
[7] RSI in Ornicar num 9 pg. 39