A depressão como paixão da alma (ou dor de existir)
Márcio Peter de Souza Leite
A partir de 1980, com a introdução do DSM-III, que é a terceira versão de uma classificação dos distúrbios mentais proposta pela American Psychiatric Association, a classificação das doenças psiquiátricas recebeu uma nova formalização que se propunha como ateórica, ahistórica e adoutrinária. Nesta classificação o princípio fundamental seria o de não se fazer referências a teorias anteriores sobre a etiologia ou patogenia das doenças mentais que não estivessem de acordo com o critério do DSM-III, classificação esta que pretendia ser composta unicamente por diagnósticos descritivos, vistos como totalmente comunicáveis e empiricamente verificáveis.
O DSM-III seria um catálogo que pretenderia esgotar todas as formas possíveis do enfermar e apareceria como uma língua nova produzida por um novo modelo, que se poderia chamar de clínica da medicação.
Nascido da psiquiatria universitária norte-americana conhecida como Escola de St. Louis, o DSM-III teria por modelo a resposta padrão à administração de uma substância química específica. Este procedimento denominado de critério operacional preencheria a ausência de signos patognomônicos e de exames de laboratório em psiquiatria, e pretenderia medicalizar a psiquiatria retirando-a de uma influência filosófica a que estaria submetida anteriormente, principalmente na sua referência a Jasper e a fenomenologia.
A partir dos critérios do DSM-III entende-se por depressão uma reunião de sintomas existentes durante um determinado período de tempo, que caracterizariam um conjunto a que se dá o nome de síndrome depressiva, sem, no entanto privilegiar nenhum desses sintomas, e nem interrelacioná-los.
O agrupamento de sintomas, responderia ao único fato em comum a eles, que seria a resposta à administração de uma mesma substância química (imipramina), e seu critério de ordenação seria o estatístico.
Os sintomas são: humor depressivo, irritabilidade, culpa, anedonia, fadiga, pensamento lentificado, agitação psicomotora, insônia, hipersonia, anorexia, bulimia, perda de peso, ganho de peso, pessimismo, ideação suicida.
Lacan articulou a relação do universal dos diversos tipos de sintoma com o particular de cada sujeito, através da idéia de um "envoltório formal do sintoma". Na Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos, Lacan, referindo-se à existência dos diferentes tipos clínicos diz (cito Lacan): "que os tipos clínicos resultem da estrutura eis o que já se pode escrever, ainda que não sem hesitação ...”.
O que define o diagnóstico em psicanálise não é a conduta, o que define o diagnóstico em psicanálise é a posição subjetiva frente ao sintoma, e isso faz com que ele não possa ser separado da localização subjetiva, ou seja, na experiência analítica, ao tipo do sintoma que o analisante apresenta, deve-se acrescentar a posição que este assume frente ao seu sintoma, o que é feito a partir do seu dizer e não dos seus ditos.
Em psicanálise trata-se, portanto, de distinguir entre o dito e uma posição frente ao dito, sendo esta posição frente ao dito o próprio sujeito.
Desta forma, a especificidade de uma clínica psicanalítica que não dependesse da psiquiatria, se deveria ao fato dela não situar o diagnóstico no sintoma, mas sim onde nesse sintoma, há uma fantasia que o determina. Com esse procedimento desloca-se uma clínica centrada unicamente nas formas do sintoma, para uma outra onde se privilegiaria as modalidades da posição do sujeito na fantasia.
Se na psiquiatria o diagnóstico se refere unicamente à descrição de fenômenos pensados como estaticamente invariantes, a psicanálise sem negar a existência destes fenômenos, vai além da sua descrição e indaga sobre sua estrutura de linguagem e responde a isso com formalizações que ampliam o campo da psiquiatria.
Depressão para Freud: O modelo do luto
Freud tomou da psiquiatria corrente a ordenação de um conjunto de fenômenos, que seriam a tristeza, o desinteresse sexual, a desmotivação, as autoacusações, as idéias de morte que configuravam o quadro depressivo e, a exemplo do que fizera com os sintomas da neurose, articulou-os entre si, procurando uma relação causal entre eles.
Para Freud a angústia seria o sintoma fundamental das neuroses. As neuroses seriam decorrentes das várias maneiras de o sujeito evitar a angústia, constituindo os vários estilos defensivos, que seriam o fundamento dos agrupamentos das neuroses. Corresponderiam, segundo o ensino de Lacan, às várias possibilidades de o sujeito negar a falta no Outro.
Com o grupo de sintomas que naquele momento significava a depressão, Freud ordenou a sintomatologia em torno de um centro, de um fundamento que organizaria as demais manifestações depressivas entre si, e que para Freud, foram articuladas em torno da sua principal evidência, a auto-acusação.
Para compreender as razões das manifestações depressivas e encontrar o seu fundamento defensivo, Freud recorreu ao paralelo clínico com o luto, pois, no luto o sujeito apresentaria expressões semelhantes aos sintomas da depressão.
Nos primeiros textos, Freud frisou a diferença entre depressão e melancolia. Desde 1892 ele utilizou a palavra depressão para descrever uma constelação sintomática a que ele chamou de depressão periódica branda.
Em 1893 Freud diferenciava a depressão da melancolia e afirmava (cito Freud): “essa depressão (a depressão periódica branda) em contraste com a melancolia propriamente dita, quase sempre tem uma ligação aparentemente racional com o trauma psíquico. Este, porém, é apenas uma causa provocadora. Ademais, a depressão periódica branda ocorre sem anestesia psíquica, que é a característica da melancolia”. (Rascunho B, pág. 43).
Em 1917, no texto, Luto e Melancolia, Freud definiu a melancolia como um (cito Freud): “... desânimo profundamente penoso, a cessação do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade e uma diminuição dos sentimentos de autoestima aponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de auto-punição.”
Freud colocou a ênfase do quadro melancólico na dor psíquica que este refere, e que ele caracterizou como o estado clínico da melancolia.
O que causa a dor psíquica?
A falta de objeto seja por uma perda real ou por uma falta imaginária. Freud, à sua definição de melancolia que já citamos, acrescentou (cito Freud): “Este quadro se nos faz mais inteligível quando refletimos que o luto mostra também estes caracteres, à exceção de um só: a perturbação do amor-próprio”.
Ou seja, tanto no luto como na melancolia, encontramos aflição e dor, perda do interesse pelo mundo e pelas coisas, perda da capacidade de escolher um objeto novo, porém o que diferencia o luto da melancolia, é que no luto não há a perda da auto-estima.
Para Freud, na melancolia, não seria o mundo que estaria empobrecido, mas sim o próprio Eu e, como no luto, também na melancolia teria havido uma perda, porém não se conseguiria distinguir claramente o que o sujeito perdeu, e, tampouco ele saberia dizê-lo.
Uma vez reformulada a questão da angústia, em 1925, num apêndice do texto Inibição Sintonia e Angústia, que aparece com o título de Angústia, Dor e Tristeza, Freud concluiu que (cito Freud): “...a dor seria a verdadeira reação à perda de objeto, e a angústia seria a verdadeira reação ante o perigo que ocasiona a perda de objeto”.
A depressão para Lacan: Paixão da alma
Segundo Eric Laurent, existe uma teoria da melancolia no ensino de Lacan, estabelecida já em 1938, e que evoluiu durante toda sua obra.
Em 1938, no texto Complexos familiares, Lacan se referiu à psicose maníaco-depressiva como um transtorno do narcisismo, na medida em que ela viria remediar a insuficiência específica da vitalidade humana.
Em 1946, a ênfase foi posta numa referência direta à pulsão de morte, e Lacan, neste momento, correlacionou o suicídio melancólico com o assassinato imotivado do paranóico.
A partir de 1953, com a introdução da noção do inconsciente estruturado como uma linguagem, a melancolia foi pensada como sacrifício suicida, ou seja, na melancolia o sujeito se nomeia, ao mesmo tempo em que se eterniza e, com isto, Lacan deixou de pensar a melancolia a partir do narcisismo para pensá-la a partir dos efeitos do parasitismo da linguagem no sujeito, estando o sacrifício narcisista subordinado ao sacrifício simbólico.
A partir de 1963, ao relacionar narcisismo e objeto (Seminário X), Lacan produziu um novo referencial para a compreensão da melancolia. Neste momento do seu ensino, Lacan considerou que o sujeito melancólico, pelo atravessamento da imagem que efetuaria no impulso suicida, poderia ser apresentado como o exemplo do impulso de se reunir com o próprio ser. Quer dizer, na melancolia, através do ato suicida, o sujeito se encontra com o objeto a.
A mania será pensada como o contrário da melancolia, ou seja, ela ocorre quando o sujeito não encontra o objeto a, quando nada o amarra à cadeia significante. A partir dessa visão, a mania e a melancolia seriam maneiras diferentes de separar o desejo da causa.
Lacan discordava da leitura dominante na psiquiatria da época que era feita desde o referencial jasperiano e que considerava a depressão a resposta esperada de alguém que perdeu algo. A tristeza estaria em conexão compreensiva com a perda sofrida.
Lacan com a noção de estrutura cínica questiona a assimilação da figura nosológica da neurose depressiva e discorda também da depressão compreendida no sentido jasperiano como referida tristeza, questionando seus traços distintivos negativos: a insatisfação a impotência, a inapetência, a inércia.
Impotência não é tristeza diz Lacan:
“A noção de compreensão tem uma significação muito nítida. É um móbil do qual Jaspers fez com o nome de relação de compreensão, o pivô de toda a sua psicopatologia dita geral. Isso consiste em pensar que há coisas que são evidentes, que, por exemplo, quando alguém está triste é porque não tem tudo o que seu coração deseja. Nada mais falso - há pessoas que tem tudo o que seu coração deseja e que ainda assim são tristes. A tristeza é uma paixão de natureza inteiramente outra”. (55-56)
Em 1973 em Televisão o sentimento depressivo, foi pensado por Lacan pelo viés freudiano da dor psíquica, variando desde uma referência ao budismo através da fórmula da "dor de existir", quanto da elevação da depressão à condição de um afeto normal, que remete à falha da estrutura que obriga o sujeito ao dever de ser "todo" para o ideal, e o dever de "bem dizer" sua relação com o gozo .
Lacan tratou a depressão como paixão da alma, tomando como referência Platão, Aristóteles e São Tomás, e com isso situou-a no campo da Ética.
Lacan definiu então a tristeza como covardia moral, como falta moral, como pecado (no sentido spinoziano), o que quer dizer, em termos analíticos, que se trata de uma decisão sobre a perda.
Do encontro do sujeito com o Outro haveria uma divisão do sujeito e clivagem do Outro, mais a produção de um resto que é o objeto a. Este resto, instituinte do sujeito, seria a causa do desejo. O desejo então não estaria prometido à completude, pois ele seria sempre decorrente de uma perda, na qual o sujeito se funda.
Seria este o luto originário?
A busca desta completude perdida Lacan chamou de Paixão do ser, que são paixões da relação com o Outro. A falta a ser determina a paixão da busca de completude no Outro. As paixões dão consistência ao Outro: o ideal no amor, o apagamento no ódio e o saber na ignorância.
Na seqüência do ensino de Lacan houve uma substituição das paixões do ser pelas paixões da alma, que são principalmente a tristeza e a mania.
Na orientação lacaniana distinguem-se as emoções, que são de registro animal, dos afetos, que são do registro do sujeito, e essas das paixões.
A Ética da psicanálise é a Ética do Bem dizer que consiste em se aproximar de um saber que não se pode dizer, por isto a tristeza. A tristeza é um saber falido do qual o sujeito é responsável.
A psicanálise não é um materialismo do significante, é uma Ética. A estrutura descreve uma combinatória, a Ética implica uma decisão.
Isto quer dizer que na experiência analítica não se trata só de mecanismos estruturais, trata-se de escolhas subjetivas que tem o modelo da escolha forçada.
Esta posição define a direção do tratamento na depressão. Não a considera como efeito de um distúrbio neurobiológico e implica-se o analisante na responsabilidade da perda.
Trata-se, como em todas análises, de terminar com os efeitos de fascinação da palavra para fazer surgir um dizer que deixe “a coisa” falar, e inventar um saber do que não se pode dizer.