O Deus de Lacan
Márcio Peter de Souza Leite


• Deus para Freud
   A religião como neurose obsessiva
   Deus como substituto do pai
   Totem e Tabu
   Futuro de uma ilusão

• Deus para Lacan
   Deus dos filósofos
   Deus está morto
   Deus é inconsciente
   Deus e o gozo da mulher
   Deuses: revelação do real

• Deus ex-siste
• Empuxo-à-mulher; Deus é a mulher tornada toda
• O Deus de Schereber


É aquele ao que se chama geralmente Deus, mas cuja análise
revela que é simplesmente "A mulher”



DEUS PARA FREUD

A religião como neurose obsessiva

A primeira contribuição de Freud à compreensão da religião foi no ensaio Atos obsessivos e práticas religiosas (1907), que trata das similaridades entre a obsessão e a religião.

Neste artigo, Freud conclui: "Poderíamos nos arriscar a considerar a neurose como uma contrapartida patológica da formação de uma religião, e a descrever a neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal”.

Para o obsessivo, "qualquer desvio das ações rituais é acompanhado por uma ansiedade intolerável". Para a pessoa religiosa, os atos sagrados do ritual precisam ser satisfeitos. Tais atos são realizados separadamente de outras ações e devem ser levados até o fim.

Embora o ritual religioso seja público e comum, sua significação também está baseada num significado simbólico. A maioria dos crentes executa o ritual sem preocupação com seu significado e, além disso, são guiados por motivos inconscientes...


Deus como substituto do pai

No ensaio Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910), Freud sugere a conexão entre o complexo paternal e a crença em Deus. Em termos biológicos, a religiosidade está relacionada com a prolongada impotência e necessidade de amparo da criança pequena ao se confrontar com as grandes forças da vida. O indivíduo se sente como se sentia na infância e tenta negar seu próprio desalento por meio das forças que protegiam sua infância.

A proteção contra a neurose que a religião concede é explicada: ela liberta os indivíduos do complexo paternal - do qual depende o sentimento de culpa, e o subjuga.

Não há nenhum Deus, nenhuma natureza bondosa. Há, porém, a dor dos desprotegidos e a neurose religiosa dos que acreditam estar protegidos por Deus.

Os seres humanos moldam Deus à imagem do "pai". Deus é "um pai enaltecido”; "uma transfiguração do pai”; "um retrato do pai; "uma sublimação do pai”; "um suplente do pai"; "um substituto do pai"; "uma cópia do pai"; ou Deus "é realmente o pai”.


Totem e Tabu

Em Totem e Tabu (1913), Freud apresentou uma reconstrução histórica da forma como a religião começou, partindo de Darwin. Afirmava que "os homens viviam originalmente em hordas, todos sob o domínio de um único homem poderoso, violento e ciumento" que tinha direitos exclusivos sobre as mulheres do grupo. Nas mentes de seus filhos, o pai assassinado foi transformado no Deus individual de cada crente.

Imediatamente após o assassinato, a imagem do pai foi reprimida. Ela retornou em uma transferência simbólica, como o animal totêmico e por fim, na criação de uma imagem paterna de Deus.


Futuro de uma ilusão

No ensaio O Futuro de uma Ilusão (1927), Freud começa por localizar a religião no contexto da civilização na medida em que esta ajuda os seres humanos a refrear suas ânsias.

A religião fez grandes contribuições à coerção dos instintos e à civilização. A civilização é absolutamente necessária para regular o poder da natureza. A natureza parece tolerante e "nos deixaria fazer o que quiséssemos".

Porém, "ela tem seu próprio método particularmente eficaz de nos coibir. Ela nos destrói - de modo frio, cruel, implacável, conforme nos parece, e provavelmente por meio das mesmas coisas que nos dão satisfação. Foi precisamente por causa desses perigos com os quais a natureza nos ameaça que nos unimos e criamos a civilização [...] para nos defender da natureza".

Os deuses são encarregados de uma tarefa tripla: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os seres humanos com a crueldade do destino e compensá-los por seus sofrimentos. A última tarefa não é fácil de cumprir e leva ao desenvolvimento de sistemas morais para controlar os males da civilização. Freud afirmava que os preceitos morais eram de origem "divina". Desse modo, no decurso do tempo, a ilusão religiosa promete propósitos superiores e um bom desfecho.

Quando o monoteísmo se realizou na história, veio com ele uma renovação do relacionamento com o pai. "Agora que Deus é uma única pessoa, as relações humanas com ele podiam recobrar a intimidade e a intensidade da relação da criança com seu pai”.

Na opinião de Freud, a realidade e a religião têm pouca proximidade no que se refere aos esforços humanos para desvendar os segredos do universo; "o trabalho científico é o único que pode nos levar ao conhecimento da realidade exterior a nós”.


DEUS PARA LACAN

O Deus dos filósofos: Deus como Outro

No Seminário As Psicoses, Lacan fala de um Deus que engana e outro que não engana. Na neurose, Deus garante que o significante funciona; na psicose, o Deus suprido pelo delírio é sem lei.

Lacan assimila Deus ao Outro, lugar da verdade. No Outro a lei dos significantes funciona - Deus é vivenciado como confiável e como insensato, se não funciona.


Deus está morto

No Seminário A Ética da Psicanálise, Lacan afirma que por Deus estar morto, existe lei. Ele reconhece no Deus morto o jogo significante. Em seu Seminário A Transferência, Lacan diz que as religiões tentariam domesticar os deuses que por sua vez pertencem ao real, do qual são um modo de revelação.


Deus é inconsciente

No Seminário Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Lacan propõem que a verdadeira fórmula do ateísmo não seria que Deus está morto, mas, contestando a fórmula de Dostoievsky - "se Deus está morto tudo está permitido" – para Lacan a fórmula seria: "se Deus está morto nada está permitido".


Deus e o gozo da mulher

No Seminário Mais, ainda, Lacan diz: "E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como sustentada pelo gozo feminino”.

Para ele, Deus não seria nem uma sublimação nem uma idealização do pai.


Deuses: revelação do real

As religiões seriam tentativas de domesticar Deus, de modelar o real com o simbólico das palavras e o imaginário dos corpos. Em lugar de ser uma sublimação ou uma idealização do pai, como supunha Freud, para Lacan as religiões seriam rebaixamentos dos deuses à indignidade do pai.


DEUS EX-SISTE

F. Regnauld (in Deus é inconsciente ) aponta que Lacan delimita um ponto que falta na reflexão filosófica moderna: Deus é existir e não ser. Os filósofos árabes concebem o ser criado como uma essência que não contém em si a razão de sua própria existência. A existência se distingue da essência. Para Deus, existência e essência fazem sempre um.

Na leitura de Lacan, a existência reduz a importância da essência: "Sou o que sou". O ser é uma essência a qual só sua causa confere a existência. "O tetragrámaton impronunciável Yahve" significa a existência necessária. O nome de Deus é mais um eu sou, que um ser ou uma essência.

A existência é dissociada da essência, nem a veicula nem a causa: "Para que algo exista, é necessário que haja um buraco" (Ornicar? Nº 2). Pelo o qual se disse depois que é "suporte do real" ou "o que responde no real” ou "da ordem do real”.

A ex-sistência, é introduzida pela matemática moderna: "É o emprego do escrito µ x. † x)" (Ornicar? Nº 4).

Deus é o não-todo que o cristianismo tem o mérito de distinguir, recusando-se a confundi-lo com a idéia do universo.

Ainda segundo F. Regnauld, a religião teria ensinado Lacan a invocar o Nome-do-pai, representando a Lei, como significante originário. O Deus que interessa à psicanálise é aquele que se revela como Pai, ou como Nome, na tradição judaica-cristã.

Deus é o inominável. Não existe. É "aquilo no qual nenhuma existência lhe está permitida"." (Os Judeus) têm explicado bem o que eles chamam o Pai. O metem num ponto do buraco que não podemos sequer imaginar. “Sou o que sou, isso é um furo, não? Um furo (...), isso engole e logo tem ratos em que isso volta a esculpir. Cuspe que? O nome, o Pai como nome”. ( Ornicar? N° 2)

Deus é a mulher tornada toda "enquanto que a mulher já é não-toda, é porque ela seria o Deus da castração".

“Ela (a barra de negação) diz que não tem Outro que responderia como partenaire - sendo a necessidade toda da espécie humana que haja um Outro do Outro. É aquele ao que se chama geralmente Deus, mas cuja análise revela que é simplesmente A mulher”.


DEUS E REAL

S. Zizek (O real da ilusão cristã: notas sobre Lacan e a religião) aponta dois aspectos do Real lacaniano: a Coisa primordial e a letra/fórmula sem sentido, como no Real da ciência moderna. A esses dois Zizek acrescenta um terceiro Real, o "Real da ilusão", o real de um puro semblante.

Para Zizek, há três modalidades do Real, pois a tríade IRS reflete-se no interior da ordem do Real de tal modo que se tem o "Real real" (a Coisa aterradora, o objeto primordial), o "Real simbólico" (o significante reduzido a uma fórmula insensata, como as fórmulas da física quântica), e o "Real imaginário" (o "insondável que introduz uma divisão em um objeto ordinário").

Como Lacan diz que os Deuses são da ordem do Real, a Trindade Cristã poderia ser lida como Trindade do Real: Deus, o Pai, é o "Real real" da violenta Coisa primordial; Deus, o Filho, é o "Real imaginário"; o Espírito Santo é o "Real simbólico" da comunidade dos crentes.


EMPUXO-À-MULHER; DEUS É A MULHER TORNADA TODA

Em De uma questão preliminar... encontra-se esta frase: "Como podemos perceber, ao observar que não é por estar foracluído do pênis, mas por ter que ser o falo, que o paciente estará fadado a se tornar urna mulher”.

Schreber, fadado a se tornar mulher, indica a impossibilidade de uma escolha do sexo pelo psicótico. Para Lacan, há escolha do sujeito em colocar-se do lado homem ou do lado mulher, independentemente do seu sexo anatômico.

A inclinação para a feminização, o empuxo-à-Mulher, marca uma obrigação quanto à sexuação do sujeito.

Para G. Morel (Ambigüedades sexuales) Lacan indica que não há escolha da sexuação na psicose. Por não conseguir ascender ao significante que lhe permitiria colocar-se como homem na repartição dos sexos e por dever ser o falo, o psicótico é levado a situar-se do lado mulher.

Há um empuxo-à-Mulher, independentemente da posição subjetiva do psicótico. O empuxo­à-Mulher é um efeito da foraclusão do Nome-do­Pai.

A homossexualidade masculina (não psicótica) se inscreve nas fórmulas de sexuação do lado homem, enquanto que o empuxo-à-Mulher se inscreve do lado mulher.

Schreber o exemplifica com sua transformação em mulher e sua posição diante de Deus: “como seria bom ser uma mulher copulando e ser a mulher de Deus”.

A identificação ao desejo da mãe está no fundamento da psicose: por não poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens.

A transformação do sujeito em mulher implica que, para poder ser o falo, é preciso renunciar a tê-lo: o que Schreber traduz no imaginário por "não poder mais possuir pênis". Isto é o que está na origem de sua emasculação.

Freud e Lacan mostram a satisfação que leva Schreber a contemplar, vestido de mulher, sua imagem no espelho. É a dimensão do gozo ligado à cópula divina que o conduz a tornar-se digno da fecundação divina.

Nesta figura de Deus que goza dele, evoca-se o gozo do Outro, um gozo não fálico ligado a uma falta da castração.

É este efeito diante do chamado do gozo sem limite, que Lacan chamou de empuxo-à-Mulher, gozo ligado à falta da função fálica.

Escreve Lacan: "Sem dúvida a adivinhação do inconsciente adverte o sujeito, desde muito cedo, de que, na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens" ou, ser a Mulher de Deus”.

A foraclusão do Nome-do-Pai tem como efeito fazer existir A Mulher, a encarnação de um gozo infinito, uma Mulher completa, não marcada pela castração.


O DEUS DE SCHEREBER

Entre as expressões construídas por Lacan se destaca “ mulher não existe” que não significa que o lugar da mulher não exista, senão que dentro da lógica da sexuação, a classe das mulheres é um lugar que permanece vazio.

Disso decorre a formalização lógica da sexuação da mulher como “não toda” que quer dizer que não existe o Universal da mulher. Outra construção emblemática de Lacan diz que “não existe relação sexual”, e se sustenta pela mesma lógica.

Essas figuras reafirmam o divórcio da sexualidade com a noção de sexuação. Este divórcio culmina na pergunta que se encontra no Seminário XX, no capítulo “Deus e o gozo d'A Mulher”: “E porque não interpretar uma face do Outro, a face de Deus, como suportada pelo gozo feminino?”, que encontra resposta com o dito (Lacan sem RSI in Ornicar? Nº 5 pg. 25) “Deus é a mulher tornada toda”.

“Dito que faz da mulher não-toda o Deus da castração” (F.Regnauld in Deus é inconsciente). O que, porém, não faz de Deus um Todo: (Lacan sem RSI in Ornicar? Nº 9 pg. 39:) “não há Outro que responda como parceiro - sendo a necessidade da espécie humana que haja Outro do Outro. É aquele a que se chama geralmente Deus, mas que a análise revela que é simplesmente A mulher”.

Uma das evidências da clínica da psicose é a figura inventada por Lacan “empuxo-à-Mulher” que junta a clínica da psicose, teologia e feminilidade.

O empuxo-à-Mulher é exemplificado por Schreber, para quem a idéia de transformar-se em mulher é um dos primeiros sinais de delírio. A foraclusão do Nome-do-Pai, explicação da causa da psicose na teoria de Lacan, tem como efeito fazer existir A Mulher, a encarnação de um gozo infinito, uma Mulher completa, não marcada pela castração.

Freud, no estudo de Schreber, mostra a satisfação que o lhe proporciona contemplar-se, vestido de mulher, ao ver sua imagem no espelho, que no seu delírio o leva a copular com Deus, fazendo-o digno da fecundação divina.

A este gozo sem limite Lacan chamou de “empuxo-à-Mulher”, explicado como um gozo ligado à falta da função fálica, pois este Deus que goza dele, é o gozo do Outro, um gozo não fálico ligado à falta da castração.

Escreve Lacan: "Sem dúvida a adivinhação do inconsciente adverte o sujeito, desde muito cedo, de que, na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens" ou ser a Mulher de Deus. O “empuxo-à-Mulher” não é só uma interpretação do gozo, em seu caráter de exigência perpétua de satisfação, é uma tendência da pulsão específica da psicose. No texto “ De uma questão preliminar a todo tratamento possível para a psicose ” diz Lacan: "Como podemos perceber, ao observar que não é por estar foracluído do pênis, mas por ter que ser o falo, que o paciente estará fadado a se tornar uma mulher”, o que indica a impossibilidade da escolha do sexo pelo psicótico. A inclinação para a feminização, o “empuxo-à-Mulher”, é uma obrigação na sexuação do psicótico.

Em “Memórias ...”, com sua transformação em mulher e sua posição diante de Deus, Schereber dá um exemplo da feminização no psicótico: "Só a título de uma possibilidade que haja que ter em conta lhe digo: minha emasculação, de qualquer maneira, ainda poderia produzir-se, ao efeito do que uma nova geração saia de meu seio por jogo de uma fecundação divina".

Ainda em “Memórias...” Schereber afirmou: “Por duas vezes já tive órgãos genitais femininos, ainda imperfeitamente desenvolvidos, e experimentei no corpo movimentos de saltos, parecidos às primeiras agitações de um embrião humano. Nervos de Deus, correspondentes a um sêmen masculino, haviam sido projetados em direção a meu corpo por um milagre divino, e desse modo se havia produzido uma fecundação”.

Lacan retirou o termo "assintótica” de Freud, e expressa com esta metáfora a interminável transformação de Schereber em mulher. Lacan formalizou a psicose de Schreber como similar à função hiperbólica onde a feminização do sujeito se inscreve ao longo das assintóticas, apontando ao infinito. A expressão "empuxo-à-Mulher”, indica esse aspecto inconclusivo do trabalho delirante.

Schereber se coloca como objeto do gozo do Outro, pois o empuxo-à-Mulher exige a confrontação com as exigências de um Deus tirânico, o que justifica outros sintomas como a tentação suicida, a cadaverização do corpo, o prejuízo do sentimento íntimo da vida, a perda da identidade viril, as tentativas de automutilação, e a demanda de operação cirúrgica.

Para G. Morel (Ambiguedades sexuales), Lacan com o “empuxo-à-Mulher” indica que não há escolha da sexuação na psicose. Por não conseguir ascender ao significante que lhe permitiria colocar-se como homem na repartição dos sexos e por dever ser o falo, o psicótico é levado a se situar do lado mulher. Há um empuxo-à-Mulher, independentemente da posição subjetiva do psicótico, pois empuxo-à-Mulher é um efeito da foraclusão do Nome-do-Pai.

A homossexualidade masculina (não psicótica) se inscreve nas fórmulas de sexuação do lado homem, enquanto que o empuxo-à-Mulher se inscreve do lado mulher. A identificação ao desejo da mãe está no fundamento da psicose: por não poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens.

A transformação do sujeito em mulher implica, para poder ser o falo, renunciar a tê-lo: o que Schreber traduz no imaginário por "não poder mais possuir pênis", fato que está na origem de sua emasculação.

 
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