Matéria de que são feitos os sonhos
Márcio Peter de Souza Leite


• Sonhos: estado da arte
• Do erro de Descartes ao erro de Damásio
• A função do sonho: do desejo ao gozo
• O gozo como destino: Lacan e o continuísmo psicofísico
• O sentido: a interpretação revisitada
• Não há clínica sem ética


“Somos feitos da matéria dos sonhos
Nossa pequena vida é cercada pelo sono”
.
(Shakespeare, "A Tempestade", Ato IV, cena I)


Sonhos: estado da arte
Ao longo da história, a humanidade vem tentando entender o significado dos sonhos, ela foi sempre o senhor absoluto do mundo interno de cada homem, sendo a manifestação viva da expressão de uma realidade que transcende os limites da sua consciência e do seu livre arbítrio.

Daí os sonhos sempre haverem cumprido um papel formador na cultura, pois ao introduzir um além da lógica estabelecida, fato este que confronta o sujeito com um desconhecimento que termina por modificar sua percepção da realidade. O sonho ao impor a experiência do invisível, aponta a uma possibilidade de percepção que vai além dos sentidos, ampliando a percepção humana, por isso o sonho ter sido sempre associado à percepção do futuro.

No Egito Antigo o sonho foi utilizado como recurso para se encontrar a cura das doenças. Nos relatos bíblicos os sonhos expressam o acesso a um saber exterior à realidade imediata dos fatos. Na Grécia o sonho foi investigado tanto pelo seu efeito de obstáculo à lógica, como também entendido como mensagens divinas. Na Idade Média os sonhos eram pensados como sendo o veículo usado pelos poderes diabólicos ou divinos.

O Iluminismo, com ruptura que produziu na ordem teológica que determinava o entendimento do mundo de então, possibilitou a existência do Individualismo, fato que permitiu o entendimento psicológico dos sonhos, ao se admitir seu caráter único e particular para cada um.

Esta guinada da percepção do homem sobre seu lugar no mundo e o significado de suas expressões psíquicas foi efetivada principalmente por Freud, que vindo da neurologia, ao descobrir o inconsciente, enxergou não só um além do cérebro no sonho, como desfez sua interpretação mística, situando o sonho como um exemplo que demonstra o descentra mento do homem em relação à consciência.

Na década de 50, com a descoberta de que o movimento rápido dos olhos (o chamado sono REM, ou Rapid Eyes Movement) indicava que o indivíduo estava sonhando, iniciou-se uma nova era de pesquisa sobre os sonhos.

A partir dos estudos da neurobiologia do sono a neurociência vem se ocupando dos sonhos. Para ela o sonho é o resultado da ativação de estruturas cerebrais, não guarda relação com a história individual, e é entendido como parte do ciclo do sono, determinado biologicamente.

Crick e Mitchison propuseram os sonhos como um meio pelo qual o cérebro se livra de informações desnecessárias ou erradas como se fosse um processo de “desaprendizagem”. Outros autores teorizaram que os sonhos consistem de associações e memórias da parte frontal do cérebro, que seriam resposta a sinais do tronco encefálico, sugerindo que o sonho é um “ajuste” do cérebro frontal a estimulação do tronco cerebral.

Hobson, neurofisiologo autor de livro Le cervaux revant, radicaliza e diz que o sonho não tem nenhum significado psíquico como defendem os psicanalistas, sendo apenas, um epifenomeno do sono REM, decorrente de ativação de certas estruturas cerebrais.

Representando uma corrente dentro da psicanálise, que pensa a relação mente cérebro através de um continuísmo psicofísico, está a chamada Neuropsicanálise. Apoiando-se, principalmente em Mark Solms os neuropsicanalistas rebatem aos argumentos de Hobson argumentando que novas pesquisas sobre a neurobiologia dos sonhos mostram que os mesmos ocorrem, não apenas no sono REM, mas também durante o sono não-REM e que, provavelmente, há muitos outros mecanismos envolvidos nos sonhos.

Freud como a neurobiologia contemporânea, também partiu da premissa do sonho como efeito de um processamento da informação sensorial. Freud também apontou duas fontes para as informações a serem processadas: uma relativa ao mundo exterior e a outra relativa ao material interno guardado na memória.

O que difere Freud da neurobiologia é que Freud não se limitou a descrever o fluxo do input e do output dos estímulos, ou a descrever os ciclos do sonho, mas os relacionou com a questão do desejo.

Com a concepção de aparelho psíquico como diferente do cérebro, a partir de Freud a relação do homem com a natureza pode ser expressa de maneira diferente. Entre elas, uma subversão do tempo cronológico, tempo que regula os ritmos biológicos, que aparece subvertido nos sonhos, apontando que há um outro tempo além do tempo cronológico para o sujeito.

Freud expressou isso ao término da Interpretação dos Sonhos, quando afirmou: “Diríamos que o sonho nos revela o passado, pois procede dele em todos os sentidos. No entanto, a antiga crença de que o sonho nos mostra o futuro não carece por completo de verdade. Representando-nos um desejo como realizado, nos leva realmente ao futuro. Mas este futuro que o sonhador toma como presente está formado pelo desejo indestrutível conforme modelo de dito passado”.

O sonho abordado pela psicanálise vai além da sua causação biológica e permite questionar a essência do humano, matéria feita de sonhos. O sonho abordado pela psicanálise subverte a noção do real, e demonstra que cada um de nós, embora tenha a mesma estrutura cerebral, vive num mundo único e sem rival. Ao introduzir a questão do desejo nas produções do espírito, Freud subverteu uma orientação unicamente biológica da condição humana, e fez do desejo uma ponte do passado com o futuro vendo o homem não como um mero efeito de uma regulação maquinica, mas situando a essência mesma do humano no desejo. Desejo este que se expressa utilizando a máquina neuronal, porém sem se reduzir a ela.

Na atualidade para a compreensão da significação e da função dos sonhos podem-se propor, arbitrariamente, três modelos paradigmáticos, embora todos sejam monistas, isto é não separam a mente do corpo. Num extremo está o modelo das neurociências que é um modelo que defende que o sonho é unicamente um produto da atividade cerebral, chamado modelo fisicalista. Neste modelo o sonho tem por função processar os estímulos sensoriais; no outro extremo, está o modelo da psicanálise lacaniana na qual o sonho é entendido como um produto de um sujeito, modelo que poderia ser chamado de descontinuismo psicofísico; e no meio o modelo da neuropsicanálise que vê o sonho como um epifenomeno concomitante dependente do cérebro, que poderia ser chamado de continuísmo psicofísico. A função do sonho para a psicanálise é o de a realização de desejos. Desejo que em ultima análise é o desejo de dormir.


Do erro de Descartes ao erro de Damásio

O mundo de hoje é um mundo subvertido pelas comunicações, onde cada sujeito tem em um ano, acesso a mais informação do que nossos antepassados em toda uma vida.

Este excesso de informações influencia tudo na vida de um sujeito, desde a vida sexual, subvertendo os papéis masculinos e femininos. A internet está operando uma revolução em nossos costumes, modificando o sentido das identificações do sujeito, e relativizando significações que antes eram fixas.

A mídia criou também novos conceitos de felicidade, e impõe consumos desnecessários, que escravizam os sujeitos numa exigência de consumo inesgotável, sempre em função de um mercado cada vez mais voraz, que não respeita a singularidade do indivíduo, e anula a sua liberdade de não querer.

A busca da eterna juventude consome milhões de dólares, a possibilidade de o homem ser sempre potente, com o Viagra, alterou e desestabilizou a relação da sexualidade com o desejo.

No campo do sofrimento psíquico a influencia da mídia, atinge maior proporção, produzindo o consumo cada vez maior de psicofármacos, produzindo uma verdadeira cosmetologia psíquica, como denunciou Peter Kranmer no livro Escutando Prozac.

Coincidindo com zeigeist (espírito do tempo) o livro de António Damásio, O erro de Descartes, toca o centro da questão, situando o epicentro da polêmica da neurociência com a psicanálise no cogito cartesiano, pois sua conseqüência foi o estabelecimento do dualismo, ou seja, a divisão entre psique e corpo. O cogito cartesiano - Penso logo sou, implica em alguém que pensa, o Eu penso, a res cogitans, que não tem existência material, sendo o lugar do sujeito, e o Eu sou, a res extensa, que existe materialmente, e é representado pelo cérebro.

O erro de Descartes para António Damásio é ... "[Descartes] ter convencido os biólogos a adotarem, até hoje, uma mecânica de relojoeiro como modelo de processos vitais. Mas talvez isso não fosse muito justo, e comecemos, então, pelo ‘penso, logo existo'. (…) A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. E, como sabemos que Descarte via o ato de pensar como uma atividade separada do corpo, essa afirmação celebra a separação da mente, a ‘coisa pensante' (res cogitans), do corpo não pensante, o qual tem extensão e partes mecânicas (res extensa)". (António R. Damásio, "O erro de Descartes", Companhia das Letras, 1996, p.279).

Um dos efeitos do dualismo na medicina foi à divisão da causação dos transtornos mentais em causas orgânicas e psíquicas. Estas duas possibilidades foram apresentadas como complementares, ou opostas. A hipótese de uma causação orgânica para os transtornos mentais, chamada de organogênese, na psiquiatria alemã da época de Freud, foi sugerida por Kraepelin como oposta e excludente a uma causação psíquica para estes transtornos, que foi chamada de psicogênese.

Esta dicotomia foi retomada por K. Jaspers com as noções de processo e desenvolvimento. Em Jaspers o conceito de processo psíquico se opõe diretamente ao conceito de desenvolvimento da personalidade, que diferente da noção de processo, e poderia ser expresso sempre através das relações de compreensão. Segundo Lacan a noção de compreensão é um móbil da qual Jaspers fez o pivô de toda sua psicopatologia: (Lacan sem. III, pg. 15) A compreensão só é evocada como uma relação sempre no limite. Desde que dela nos aproximamos, ela é a rigor, inapreensível... “Acaba-se por conceber que a psicogênese se identifica com a reintrodução, relativamente ao objeto psiquiátrico, dessa famosa relação.”

Criticando a noção de compreensão, consequentemente a noção de psicogênese, Lacan, colocando-se também numa posição monista, assim como Freud, afirmou: "há muito tempo que eu não fazia diferença entre a psicologia e a fisiologia” (Lacan Sem. III, pg. 24.).

Como conseqüência, para Lacan, "o segredo da psicanálise é que não há psicogênese" (Lacan, sem. III, pg. 16), e aponta que seria um erro confundir sentido e compreensão.

Para Lacan não há nem psicogênese nem organogênese, há uma causação do sujeito, que se dá a partir da atualização de marcas materiais (letra enquanto suporte material do significante) que condicionam a articulação significante, através da qual o sujeito busca sua satisfação.

O uso do termo Sujeito vem da tradição filosófica. Para Heidegger Sujeito é uma categoria da filosofia que se deve desconstuir. Para Marx a história é um processo sem Sujeito, portanto Sujeito seria uma categoria da ideologia. A fenomenologia por sua vez identifica o Sujeito à consciência.

Pensado desde a psicanálise, constata-se que Freud não utilizou o termo Sujeito, mas não foi alheio à questão, e a abordou com outra terminologia, podendo-se dizer que Freud usou o termo das Ich para se referir ao Sujeito da experiência Depois Lacan diferencia o Sujeito da lógica do Sujeito gramatical, assim como esses Sujeitos do definido por ser oposto ao objeto. Lacan também diferencia o Sujeito noético, gramatical, do Sujeito anônimo e ambos do Sujeito cuja singularidade se define por um ato de afirmação.

É a este Sujeito, entendido como o que se define por um ato de afirmação, que Lacan diferencia do Eu. O Eu é entendido como a sensação de um corpo unificado, e na teoria do estádio do espelho, encontra-se produzido desde o a imagem do outro.

Em diferença do Eu, que para Lacan é construído desde a imagem do outro, o Sujeito decorre do Outro (com maiúscula), que é referência à linguagem enquanto efeito da ordem simbólica. Por isso o Sujeito é conseqüência do significante, e está regido pelas leis do simbólico. Para Lacan, portanto, a causa do Sujeito é a estrutura do significante.

Para Lacan o Sujeito não é uma sensação consciente, uma ilusão produzida pelo Eu, senão que é inconsciente, e por isso não é o agente da fala, suporte da estrutura, mas descentrado, acéfalo, dividido, evanescente.

O Sujeito na psicanálise é explicitamente diferente da consciência, portanto é um Sujeito não fenomenológico, não é uma categoria normativa, ele é uma categoria clínica, e não remete a uma totalidade.

Porém, atualmente não basta dizer que a psicanálise é monista, pois existem vários tipos diferentes de monismo como aponta Searles, ao indicar o behaviorismo lógico, a teoria da identidade tipo, a teoria da identidade ocorrência, o funcionalismo caixa-preta, a IA forte (funcionalismo máquina de Turing), o materialismo eliminativo e a naturalização da intencionalidade.

As neurociências se sustentam num monismo fisicalista, que pode ser entendido como a expressão moderna do materialismo. Andrè Comte-Sponville no livro La sagesse des Modernes: Dix questions pour notre temps, perguntando-se sobre o que é o materialismo, dá dois sentidos a ele: o trivial e o filosófico. "No sentido filosófico o materialismo seria uma ontologia, uma teoria do ser, ou uma concepção do mundo”. Segundo Comte-Sponville o materialismo “é a doutrina em que só há seres materiais: O materialismo seria um monismo físico. Em tais condições, o materialismo se define sobre o todo pelo que exclui: ser materialista é pensar que não existe um Deus transcendente nem alma material... E este ponto é onde se encontram o materialismo contemporâneo e a biologia, e especialmente a neurobiologia. Ser materialista, para os modernos, é em primeiro lugar reconhecer que é o cérebro o que pensa, e extrair as consequências ".

A questão, portanto não estaria em acusar a psicanálise de dualista, como sugerem os representantes da neurobiologia, pois a psicanálise também é monista. A questão estaria em contrapor o monismo próprio à psicanálise ao monismo das neurociências.

Damásio propõe corrigir o erro de Descartes sugerindo que se pense a mente pelo tecido biológico, pelo córtex cerebral. Posição que pode ser tomada como paradigma das neurociências, que é a de criticar tudo que se sustenta no dualismo como sendo ultrapassado preferindo pensar à mente, reduzida ao cérebro, o que vai ser chamado de monismo fisicalista.


A função do sonho: do desejo ao gozo

A tese central de Freud é a de que o sonho é a realização de desejos. Um desejo que cause conflito é afastado da consciência e colocado num outro lugar, uma outra cena, que não segue as mesmas regras da consciência: o inconsciente. Este desejo procura realizar-se a qualquer custo, se não é possível que ele se expresse conscientemente ele busca uma via substitutiva que escape à censura.

Lacan separa a necessidade da demanda e do desejo. Com isso delimita o campo do sujeito sexuado das abordagens teóricas que limitam o humano ao biológico. A necessidade está relacionada com um objeto especifico que possa satisfazê-la enquanto o desejo não esta relacionado com um objeto real, mas está determinado pelos traços mnesicos que cifram a historia do sujeito.

A eliminação da tensão decorrente dos estímulos internos Freud chama vivência de satisfação. A partir desta vivência primária de satisfação se estabelece uma facilitação que ao se repetir necessidade reinvestirá a mesma imagem mnemica com a finalidade de repetir a satisfação original.

Desejar é procurar a identidade de percepção que permitiu uma satisfação. A primeira satisfação é mítica e corresponde à perda do biológico no desejo, O desejo foi categorizado como falta inscrita a palavra, falta a ser, força da pura perda.

Freud propôs dois mecanismos básicos na produção dos sonhos: a condensação e o deslocamento. Lacan assimila estes mecanismos à metonímia (deslocamento), e a metáfora (condensação). O simbolismo mantém uma estreita relação com a metáfora.

Concordando com a neurobiologia que a função do sonho é proteger o sono, a psicanálise acrescenta que sonho é a realização do desejo de dormir. Também há concordância com a existência de fenômenos fisiológicos que acompanham o sonho, entre os quais a atonia muscular.

Freud dava uma importância especial à exclusão da motricidade voluntária durante o sono, pois a ação inibida seria um dos fatores que permitiria que conteúdos inconscientes se manifestassem no sonho.

No seminário Ou pire (21 junho de 1972) Lacan diz “a essência do sono é justamente a suspensão da relação do corpo próprio com o gozo, é bem evidente que o desejo, que, este se suspende ao mais - gozar, mas nem por isto sai ser posto entre parênteses... a única coisa que o liga o desejo do sonho ao inconsciente e a maneira como se deve trabalhar para resolver o problema de uma formula com igual à zero... Isso se anula, se isso não se anular, há o despertar, mediante o qual o sujeito continuara a sonhar em sua vida”.

No sono há uma suspensão da relação do corpo próprio com o gozo, No sono com a suspensão da motricidade não há mais encontro do significante com o corpo suspendendo o gozo, no entanto as determinações significantes do gozo prosseguem.

Pode-se dizer que o desejo no sonho não tende ao gozo, o desejo de dormir é satisfeito na economia zero do gozo, uma economia nula de gozo, o que permite que o desejo se apresente como realizado na língua do gozo, a alingua de onde o gozo provém.


O gozo como destino: Lacan e o continuísmo psicofísico

A posição descontinuista se fundamenta no fato do homem ser um animal desnaturalizado, isto é, rompe com a ordem natural, não segue instintos, o que ocorre devido ao fato de ele estar atravessado pela linguagem.

Lacan na conferência Joyce, o sintoma II diz: “De onde minha expressão parletre (neologismo que condensa a palavra parler, falar em frances e être, ser em francês, traduzido como falente ou faleser) pelo fato de sermos animais mamíferos percorridos pela linguagem" .

Se antes Lacan entendia o inconsciente como mortificando o corpo, o fato de o animal humano ser um animal desnaturalizado pelo fato de falar, ter de fazer referência à ordem simbólica que o aliena, ser percorrido por uma linguagem, barraria o gozo; seria aquilo que impede o sujeito de satisfazer suas pulsões. Para o sujeito viver na cultura ele paga um preço que é postergar a satisfação imediata do seu desejo.

Lacan considera que a fala produz gozo: gozamos porque falamos. Freud com os sintomas conversivos das histerias demonstrou que o corpo biológico tem como agregados o corpo libidinal, ou corpo erógeno, ou narcisico. A conversão histérica demonstra exaustivamente a transgressão do corpo biológico pela ordem simbólica. E principalmente, a sexualidade humana mostra essa ruptura radical do homem com a natureza, pois para o sujeito humano não existe objeto sexual pré-determinado.

Na visão fisicalista (leia-se: o cérebro é a mente) ao negar o fato de o animal humano depender de linguagem, nega-se a evidência de ele estar alienado em relação a um saber fundado numa ordem simbólica, fato este que determina seu destino.

Freud concebeu o psíquico como se impondo ao corpo, pois como demonstra o sintoma histérico, há uma transgressão do corpo biológico. E foi com a demonstração que o sintoma histérico tem um sentido ligado à história do sujeito, que Freud subverteu a medicina, subditando o corpo aos efeitos da mente.

Desde o início do ensino de Lacan há uma ruptura com ponto de vista do continuísmo psicofísico. Lacan inicia seu ensino criticando a visão continuísta entre cérebro e inconsciente. No texto “Função e campo da fala e da linguagem”, ele se insurge contra o modelo da psicanálise ensinada em Paris, que defendia o continuismo psicofísico e faz um retorno aos fundamentos da psicanálise que está no fato de que o único instrumento de investigação e cura da psicanálise é a palavra.

Ele vai mostrar com o estádio do espelho que a captação da imagem especular antecipando a coordenação motora rompe com os fundamentos biológicos e neurológicos e colocam uma primazia do psicológico sobre o biológico.

No texto Função e campo, no prefácio, Lacan põe como epígrafe uma citação encontrada nos Estatutos da formação do analista do Instituto de Psicanálise de Paris: “Em particular, não convém esquecer que a separação entre embriologia, anatomia, fisiologia, psicologia, sociologia e clínica não existe na natureza, e que existe apenas uma disciplina: a neurobiologia, à qual a observação nos obriga a acrescentar o epíteto humana, no que nos concerne” (Escritos, p.238).

Há um avanço de Lacan em relação a Descartes. Se Descarte limita o homem a res-extensa e a res-cogitans, substância material e substância pensante, corpo e pensamento, soma e psique, Lacan diz que o objeto da psicanálise, a ação da psicanálise se dá com a substância gozante.

A articulação entre corpo e psíquico foi proposta por Lacan, abandonando as categorias do dualismo cartesiano de substância pensante e substancia material, com o que ele chamou de substância gozante (substância usada aqui na referência de Aristóteles a Ousia. No Seminário XX (p.33,), Lacan cita a substância pensante e a substância extensa e, refletindo sobre a substância pensante cartesiana, questiona a substância extensa (Seminário XX, p.34,) e propõe (Seminário XX, p.35,) uma outra forma de substância, a substância gozante como Partes extra partes da substância extensa ).

O Sujeito em contrapartida é um upokeimenon, ele é pura suposição significante e não é substancial. Isto caracteriza uma posição monista, não é nem corpo nem mente, é uma maneira nova de captar a essência do homem, essa essência fundamentada no fato do homem ser percorrido pela linguagem.

Esta seria uma proposta monista de Lacan dada como resposta ao dualismo cartesiano. Lacan (Seminário XX, pp.35 e 36) diz: “Isso só se goza por corporizá-lo de maneira significante... Só se pode gozar de uma parte do corpo do Outro... Direi que o significante se situa no nível da substância gozante... o significante é causa do gozo... Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material?”

Materialidade que implica uma relação com a letra, que é o suporte material do significante. Lacan, no Seminário L'Une Bevue... propõe poeticamente o termo Motrealisme, neologismo constituído pela palavra mot, palavra em francês para substituir a palavra homofônica materialisme, materialismo em francês.


O sentido: a interpretação revisitada

A interpretação, visando uma “palavra esclarecedora”, forneceria o sentido oculto do inconsciente, fosse um sonho, um sintoma, um ato falho e apontaria sempre e unicamente a um desciframento que, devido à estrutura da linguagem, seria infinito. Este modelo de interpretação, no último período do ensino de Lacan modificou-se radicalmente, a ponto de ser declarado que a interpretação estaria morta.

A nova interpretação proposta, não seria mais concebida como uma mensagem a ser decifrada, mas um ato que incidiria no gozo produzido pelo ciframento. Encontra-se um paralelo desse movimento em Freud quando mudou o modelo de rebus para o do hieróglifo na interpretação dos sonhos.

Neste novo modelo, a direção de um tratamento indicaria que na era chamada de “pós-interpretativa”, que o analista não deveria se orientar unicamente pelo sintoma e seus sentidos, mas pelo efeito da incidência do Real no significante, através do que Lacan chamou de Sinthome.

Esta intervenção do analista não visaria um desciframento definido pelo estabelecimento de um novo sentido, mas apontaria uma atualização de seu suporte material, chamada por Lacan de “letra” e isto fez com que a prática da psicanálise fosse concebida como uma leitura de uma “Escrita” que seria constitutiva do inconsciente.

No modelo anterior, a compreensão do dispositivo Psicanalítico era pensada de acordo com as propriedades do “Registro do Simbólico”, pelas quais o analisando, via transferência, colocava o analista no lugar de “Mestre do Sentido” e isto faria com que o analista dissesse a verdade sobre o dito do analisando, subvertendo com isso o seu desejo.

No momento posterior do ensino de Lacan, o analista deixou de ocupar exclusivamente o lugar de “Outro”, que é o lugar onde as significações adquirem valor de verdade, para situar-se numa posição equivalente ao de “objeto causa do desejo”.

O analista atuando nesta posição produziu uma reformulação da teorização do Registro do Real, que ressignificado, passou a ser visto como determinando o Registro do Simbólico; com isso houve uma reformulação da categoria de Desejo, que passou a se contrapor ao Gozo, da mesma maneira que o conceito de Significante ficou repartido em dois “litorais” que seria o sentido e a Letra.

O gozo como face de letra do significante, responderia à sua fixidez, que é seu modo de existência fora do sentido. Esta fixidez, esta existência fora do Simbólico, leva a uma reflexão sobre a “materialidade” que condiciona o significante e também requer o estabelecimento de sua relação com a noção de “Substância”, que foi apresentada por Lacan como “substância gozante”.

Se para Freud, a interpretação apontava unicamente à enunciação do desejo inconsciente, Lacan por sua vez desenvolveu um outro modelo para a interpretação, onde ela não mais apontaria às formações do inconsciente entendidas unicamente como realizações de desejos. Através da formalização do “objeto pequeno a” como objeto causa do desejo, Lacan produziu um uso da interpretação que não comunicaria o sentido oculto do sintoma, mas uma interpretação que incidiria sobre a causação material do sujeito.

Daí a sugestão de Lacan de que, o que deve ser interpretado, não são os ditos de um paciente, mas sim o seu dizer. Esta proposta foi equacionada por Lacan em termos de que a interpretação seria o que faz passar um dito do “modal” para o “apofântico”. O modal seria o que inscreve a posição ou a atitude do sujeito com relação ao enunciado pelo verbo. O apofântico seria o dizer particular, que oscila entre a revelação e a asserção. Estes efeitos seriam produzidos pela pontuação, pelo corte, pela alusão, pelo equívoco, pela citação, pelo enigma.

Para Lacan, a interpretação seria um dizer essencialmente silencioso, a qual apontaria que um significante esconde outro significante, ou que uma significação esconde outra significação, procurando, no entanto, o que de Real condiciona este efeito de significação, revelando desta maneira a consistência lógica do objeto que, em última análise, seria o impossível de dizer.

Para esclarecer a maneira pela qual opera a interpretação psicanalítica, Lacan se referiu à lógica, através do pensamento de Frege, que estabeleceu uma diferença entre sentido (Sinn) e significação (Bedeutung).

Frege, oito anos antes de Freud publicar “A Interpretação dos Sonhos” , publicou um artigo com o titulo “Uber Sinn und Bedeutung” , traduzido como “Sobre o sentido e a significação” , com o propósito de separar o conteúdo, a conotação (o Sinn), da denotação (a Bedeutung).

Esta distinção entre Sinn e Bedeutung serviu para demonstrar o caminho que vai do sentido a algo além do sentido, conotando com isto um parentesco entre a verdade e o gozo. O sentido, Sinn, seria o gozo que se situa entre o Imaginário e o Simbólico, já a significação, a Bedeutung, apontaria ao gozo no Real que condicionaria os efeitos do Simbólico.


Não há clínica sem ética

Qual a verdade revelada pelo sonho? Seria a verdade de uma realidade condicionada unicamente pelo funcionamento cerebral, que criaria o sonho como uma vivência decorrente de um processamento da informação sensorial, ou o sonho atingiria a essência do ser e apontaria a um desejo que constitui o fio do destino década um?

Pergunta que aponta a uma ética, porém não a uma ética dos filósofos, mas a uma ética da psicanálise. Esta ética foi sugerida por Lacan como: “ uma ética se anuncia, convertida ao silêncio pelo advento não do pavor, mas do desejo”.

Neste sentido, a ética da psicanálise diz respeito à interpretação do desejo inconsciente que implica o Sujeito na responsabilidade de uma escolha, evitada para não produzir angústia.

O limite disto está na incompatibilidade do desejo com a palavra, o que esboça a virtude alusiva da interpretação, que vai da interpretação definida como tomar o desejo à letra, até a interpretação enquanto incidindo sobre a causa do desejo.

A ética do analisando pode ser formulada como Wo Es war soll Ich werden: Aí onde Isso era, devo advir Eu. Isto quer dizer há ética onde há escolha, decisão, o que se manifesta de maneira exemplar na analogia feita por Lacan da depressão com a covardia moral.

À ética da psicanálise pode-se acrescentar uma ética do desejo, que não é uma ética da liberação do desejo, mas de sua resolução, o que, devido à incompatibilidade do desejo e da palavra, coloca o problema do "bem-dizer".

Ou cabe ao Sujeito renunciar à sua responsabilidade, e medicar-se, perpetuando sua alienação num efeito químico determinante de sua felicidade, por mais oca que seja esta palavra? Daí Lacan ter afirmado: "Somos sempre responsáveis da nossa posição de Sujeito. Que isto se chame, onde quiserem, terrorismo...”. Afirmação que aproxima a clínica analítica da ética e a afasta da psicofisiologia.

 
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