ENSAIOS SOBRE A PSICANÁLISE E O SOCIAL
Mal-estar no capitalismo: declínio da função paterna
Márcio Peter de Souza Leite
O desaparecimento do viril decorreria do fechamento do
masculino em relação à incidência da exceção paterna,
formalizada pela proposição “existe ao menos um“.
Mal-estar na civilização revisitado
Para Freud a civilização é, constituída por uma renúncia à pulsão. O “mal-estar” se deve a essa renúncia de gozo e aos destinos que esses impulsos tomam em cada um.
A Lei que instaura a cultura, a lei de proibição do incesto, ao interditar a escolha do objeto incestuoso, desnaturaliza a vida erótica do homem.
O efeito é o aumento do sentimento de culpa que se liga a uma posição masoquista, que conduz o sujeito a redirecionar contra si o impulso agressivo.
Lacan viveu depois de Hiroshima e Auschwitz, o que quer dizer que não podia desconhecer as devastações produzidas pela civilização tecno-científica. Por isso posicionou-se diferentemente de Freud com relação ao mal-estar na civilização, concebendo-a originada nos efeitos do discurso da ciência. Para Lacan, a queda do saber do mestre transformadas pelo saber científico é o que justifica o mal-estar das sociedades atuais.
O declínio do pai foi posto em evidência por Lacan em 1938, no texto “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, onde Lacan afirma que o declínio social da imago paterna se mostra condicionada pela migração das populações concentrando-se nas grandes cidades. Este fato produz efeitos sobre a estrutura familiar observável no “crescimento das exigências matrimoniais”, acarretando o “protesto da esposa lançado ao marido”.
Lacan diz neste texto: “Não somos daqueles que se afligem com um pretenso afrouxamento do laço familiar (...). Mas um grande número de efeitos psicológicos nos parece se originar em um declínio social da imago paterna (...). Seja qual for o futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja a essa crise que devamos reportar à aparição da própria psicanálise”.
A hipótese é que a descoberta freudiana é, uma resposta às conseqüências do desenvolvimento do discurso da ciência. Por isso, em 1966, Lacan diz que ”A psicanálise é essencialmente o que reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai”.
Lacan no Seminário “As relações de objeto”, caracterizou aos homens de sua época como os homens tipo Hans (referência ao caso de fobia infantil), e que seriam homens angustiados frente às mulheres, homens que não tomam a iniciativa no campo sexual, protótipo de homens passivos que esperam que a mulher-mãe faça por eles.
A instauração do viril é efeito de estrutura que requer uma perda para erogeneizar o órgão peniano, para que a função sexual tome seu lugar. Fato que indica que “existem diferentes modos de distribuir as posições sexuadas no decurso do tempo”.
O desaparecimento do viril decorreria do fechamento do masculino em relação à incidência da exceção paterna, formalizada pela proposição “existe ao menos um”. Isso significa que o viril exige algo além do universalismo do “todos juntos” ou “todos iguais”.
Em “Totem e tabu”, a sexuação masculina é situada a partir da existência mítica de um único homem que contraria a democracia da castração.
Ainda no texto “Totem e tabu”, Freud assinala que a condição de existência da cultura e do próprio sujeito é a instauração da Lei, que ele justifica no mito do parricídio originário.
A lei está na origem da constituição da cultura e do sujeito. Não há como erradicá-la nem como se liberar dela.
A renúncia ao gozo com o objeto incestuoso instaura uma falta em gozar. Freud indica um conflito inconciliável entre a civilização e as reivindicações pulsionais do indivíduo. Lacan pensa os efeitos de capitalismo sobre as relações do sujeito com o gozo, o que permite conceituar as novas subjetividade e os novos sintomas.
O significante (o pai, a cultura e a civilização) não exclui, interdita ou reduz o gozo, mas, ao contrário, inventa novas maneiras de gozar.
A construção do universo masculino evoca o pai primitivo freudiano que pode gozar de todas as mulheres, fazendo com que todos os outros sejam atingidos pela castração.
Esse “homem não submetido à castração” é o único a poder gozar de toda mulher, o único capaz de fundar a identidade feminina. O mito freudiano veicula que a existência da exceção do pai fundador possibilita o aparecimento do clã, ou seja, o conjunto dos filhos castrados.
O mesmo acontece com relação ao sujeito masculino: a castração funciona como limite e, ao mesmo tempo, como sustentáculo de sua posição sexual viril. A castração é o preço a ser pago para que o homem possa ser reconhecido como tal.
O horizonte atual da paternidade é a tendência de se apagar essa dimensão de exceção ou esse “ao menos um”, essencial à transmissão da castração no homem.
O papel do pai era representar a autoridade, “ser pai”, contrariamente a “ser genitor”, supõe o acesso à dimensão simbólica, à linguagem. “Ser pai” tem a ver com a instalação da realidade psíquica do sujeito. A paternidade não é questão de hereditariedade, mas de palavra. A confusão entre pai e genitor instalado pelo teste de DNA, produz uma superposição entre registro do real (a genética) e registro do simbólico (a filiação jurídica).
Esta teorização do pai foi chamada por Freud de “Complexo de Édipo”, metáfora da estruturação do sujeito, operando a instalação das identificações. Metáfora que levada mais longe com o ensino de Lacan, como conseqüência da instalação da linguagem, recebeu o nome de “Além do Édipo”, fazendo do ser humano um ser de gozo que se inscreve na linguagem para introduzir-se no campo do Outro e abordar a realidade.