APRESENTAÇÃO

Formação continuada: a formação do analista
  Márcio Peter de Souza Leite

 
A palavra princípio tem várias acepções, como axioma, postulado, proposição. Que a psicanálise tenha princípios ninguém duvida. Mas haveria um acordo entre os psicanalistas, mesmo entre os que seguem a orientação de Lacan, sobre quais seriam eles?

A I.P.A. tentou resolver esta questão através da ritualização da prática estabelecendo os standards. Lacan propõe uma prática analítica sem rituais, mas não sem princípios. Isto não implica que em questionar não a profissão do analista, mas a questão do ser do analista?

Como concebem sua finalidade, qual o seu fim? A psicanálise cura ou transforma? Quais as invariantes na direção do tratamento?

Numa era onde a individualidade substitui a subjetividade, onde a sombra da depressão domina o discurso da psicopatologia, onde existe o privilégio de uma biopolítica, teria a psicanálise perdido sua força de subversão? Teria a psicanálise se transformado num dispositivo que só serve para formar psicanalistas ou ela se aplica à terapêutica?

Um princípio anuncia nossa posição: o ser humano por ser falante, mortal e sexuado, não se reduz ao biológico.

O sujeito freudiano é um sujeito livre, dotado de razão, uma razão que oscila no interior de si mesma. Uma das significações da palavra política refere-se à habilidade no trato das relações humanas com vista à obtenção dos resultados desejados. A palavra política, aplicada à psicanálise permite diferenciar, tanto um uso referido à política em geral, como à política da psicanálise ou à política tratamento.

Lacan no escrito A direção do tratamento e os princípios de seu poder introduziu na direção do tratamento a clássica tripartição feita Clausewitz entre tática, estratégia e política, assimilando-os respectivamente à interpretação, à transferência e à finalidade da análise. Desde este ponto de vista, tática e estratégia organizam-se a partir de uma política, que por isso mesmo, no caso da psicanálise, refere-se aos (cito Miller) raciocínios e argumentações que concernem à finalidade do tratamento.

Na teoria dos jogos, o recurso à estratégia depende de uma política, que a pode ressignificar, tornando possível enganar o adversário, o que pode ser feito de duas maneiras: o engodo e o blefe. O engodo seria não seguir as regras do jogo, ou seja, seria colocar-se fora da convenção significante. O blefe consiste em não seguir o plano que se pode deduzir do emprego da tática, e trata-se de uma estratégia possível de ser incluída na política do jogo. Qualquer política, inclusive a da direção do tratamento analítico, está imersa em uma convenção significante.

No Seminário XVI, Lacan assimila o conceito marxista de mais-valia ao objeto a, o que possibilita articular a política ao sintoma e sua interpretação, com o gozo, e com os discursos que o regulam. No Seminário XVII Lacan justifica esta aproximação: só é factível intrometer-se no político se reconhece que não há discurso, e não só analítico, que não seja do gozo, ao menos quando se espera dele o trabalho da verdade.

Coerente com esta posição, em Lituraterre Lacan aproxima a política da psicanálise ao que depois chamaria de semblante: "O sintoma institui a ordem em que se revela nossa política, implica por outra parte que tudo o se articule por esta ordem é passível de interpretação. É por isso que tem justa razão por a psicanálise como cabeça da política. E isso poderia não ser muito fácil para o que foi considerado como política até aqui, se a psicanálise tivesse conhecimento disso".

O conceito de gozo ressignifica o enfoque econômico da metapsicologia freudiana centrado numa energética, para um enfoque econômico centrado no que Lacan chama de economia política do gozo, o que implica que o gozo tem uma distribuição que é efeito da estrutura do discurso. A idéia da distribuição do gozo como efeito da estrutura do discurso, refere-se à definição de economia política como ciência das leis da produção, da distribuição e do consumo das riquezas, ao que os tratados de economia acrescentam a circulação das riquezas.

A produção do gozo é coextensivo a uma economia política porque, enquanto satisfação da pulsão, o gozo impõe uma relação com a contabilização da satisfação, e na analogia com a economia política, pode ser pensado em termos de ganho e perdas.

O sistema simbólico introduz para o falante, no que se refere à satisfação sexual, como efeito da desnaturalização operada pelo significante, uma dimensão de perda de gozo. À função do objeto a como recuperação de gozo, Lacan chamou de mais-de-gozar, relacionando-o com o conceito marxista de mais-valia e com lustgewinn, ganho de prazer, introduzido por Freud na análise dos chistes.

Privilegiando-se o uso da palavra política, que a relaciona com a tática e estratégia, e também com a economia política, pode-se inferir que a política da sessão analítica decorre da orientação que visa possibilitar o fim da análise que leve em consideração o sintoma como modo de gozar.

Por isso uma política para a sessão analítica deve se valer de uma concepção de fim de análise que considere uma economia (política) do gozo, o que faz o analista ter de valer-se da (cito Miller) redução do fator quantitativo visto que o significante não tem só o efeito de mortificação do corpo, mas é causa do gozo, e produz libido sob forma de mais-de-gozar.

O dispositivo para incluir os efeitos do gozo na clínica é a formação do analista. A causa do efeito formativo apoia-se em um real que tem no horizonte o desejo do analista, e um saber-fazer-aí com seu sintoma, o que cada um deverá inventar.

A formação deve ser articulada na transmissão teórica e no saber-verdade, fruto da análise pessoal, o que dá lugar ao Instituto como lugar de transmissão da teoria e a Escola como lugar da elaboração da orientação do real da análise do praticante, o que caracteriza um saldo de saber.

A mutação libidinal no praticante está conectada aos saldos de saber, e não implica necessariamente um momento de elaboração de saber. Um saldo de saber da prática armazena sempre uma articulação com um efeito de verdade da experiência.


MEMÓRIA
1991 – O avesso da psicanálise
1993 – A direção do tratamento
1996-97 – Os signos do gozo
1997 – A feminilidade
1998 – A letra
1999 – A clínica do Real
2001 – Além do corpo
2002 – Os nomes do gozo
2003 – Deus e a mulher
2004 – Sujeito e capitalismo
2005 – O último ensino de Lacan
2006 – O laço social

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