Entrevista com Jacques-Alain Miller
Márcio Peter de Souza Leite • Jorge Forbes
(in Carta de São Paulo, número 10, agosto/setembro/2003)
1a. Questão: A Letra e a Carta Amassada*
Pergunta - Você no livro "Os signos do gozo", aponta que, aí, não se trata de um progresso na obra de Lacan, mas de uma mudança de axiomática; apontando esta mudança como sendo o "Há do Um" (II ya de l'Un). Então, em torno desta questão, o que se nos impõe nos nossos estudos é: qual seria a relação entre o Um e o traço unário, entre o Um e a letra; por conseguinte, a relação entre a letra e o traço unário? Isso porque, na obra de Lacan, apresenta-se a letra como o suporte material do significante. Mas em Lituraterre, Lacan coloca a letra como o precipitado do significante. Então, existiriam duas possibilidades: a letra anterior ao significante, ou a letra como conseqüência do significante. Nossa primeira pergunta aponta esta questão.
Miller - Desde o começo de seu trabalho clínico, Lacan interessou-se pelas formas verbais da expressão. Há um conhecido artigo do psiquiatra Paul Guiraud, ao qual Lacan se refere, que estuda as psicoses, as maneiras de dizer, o desvio específico do sentido, as formas aberrantes do significante. Em sua tese sobre a psicose, Lacan claramente utiliza o que naquela época podia ter de filosofia, ou de linguagem, ou de lingüística, quase como se esperasse o que viria depois, ou seja, a lingüística estrutural. Existia já como um lugar preparado e vazio - não falemos ainda de seu ensino - em sua abordagem das coisas; havia uma chamada em direção a uma ciência - ou, pelo menos, uma consideração do tipo científico - da relação entre o suporte material da expressão e os efeitos do sentido. De tal maneira que, depois da 2a. Guerra Mundial, quando Lacan entrou em contato com a lingüística estrutural, ele adotou esse ponto de vista, não diretamente, mas sim a partir da intuição primária de Lévi-Strauss - do ponto de vista saussuriano - tal como Lévi-Strauss pôde conhecê-Io em Nova lorque, enquanto residia nos Estados Unidos. Ele lecionava no mesmo lugar que Roman Jakobson e Lévi-Strauss, ouvindo-o, teve a intuição primária de que isso lhe serviria na antropologia. Foi realmente um passo essencial que deu consistência à idéia de ciência humana, no que concerne à cultura, à antropologia, e às disciplinas deste tipo, que poderiam, assim, escapar ao Humanismo ou ao Empirismo, para tornarem-se científicas através da abordagem estrutural dos fenômenos da cultura.
Se houve algo que se pode chamar de ensino, foi pela aplicação desta perspectiva, que dava um algoritmo para transformar - de maneira sistemática os dados que haviam sido compilados, numa perspectiva que se pode chamar de humanista, empirista, para transformá-los e organizá-Ios como estrutura. Era como um algoritmo, pois consistia em aplicar sistematicamente a vivência "significante -significado", e a noção de uma ordem sistemática do significante extensiva a todos os fenômenos da cultura humana. Isso se percebe em Lacan, e corresponde ao impulso de seu ensino; seus dez primeiros seminários, cada um consiste na leitura, pelo menos como ponto de partida, de uma ou de duas obras de Freud, transformando sistematicamente o que Freud trouxe e organizando o material de maneira estruturalista. Ou seja, uma idéia simples, uma divisão simples entre significante e significado, e passar através dela os dados clínicos, através dos conceitos, através de suas conseqüências, e mostrando que as dificuldades que Freud encontrava, seus paradoxos e seus impasses, se solucionam se fazemos essa partição entre significante e significado. Podemos dizer, também, entre simbólico e imaginário. Foi como uma explosão em cadeia. Este movimento é muito perceptível. Por exemplo, tomemos a famosa posição do falo. Lacan mostra que se concebemos o falo de maneira empirista como o órgão, o pênis, não se entende a existência da fase fálica entre os dois sexos; somente se concebermos o falo como simbólico, diferente da forma e da imagem do pênis e da realidade do órgão, somente com essa distinção se ordena o material clínico. O conceito de recalque, ou regressão, se o concebemos apenas sobre um plano de realidade, implicaria que o paciente realmente voltaria, passaria pelas fases anteriores de seu desenvolvimento, e terminaria como um bebezinho chorando no divã. A regressão não é isso. Há um plano simbólico da regressão, que é retornar aos significantes de demandas anteriores, mas não na realidade. Lacan também mostra que se consideramos o pai somente como um personagem real, não se compreende a função que possui, e que somente se distinguirmos entre o pai real, o pai imaginário e o pai simbólico, se ordenam os dados clínicos.
Este algorítmo, fundamentalmente baseado na distinção" significante-significado", sob sua forma mais complexa é a divisão entre o simbólico e o imaginário. Este algoritmo deu uma grande impressão de novidade e de potência, porque nada resistia à força desse ordenamento. Isso fundamentou a idéia de Lacan, e continua sendo a base da popularidade de seu ensino, e é o que agora colegas que não foram formados por ele, entendem como sendo Lacan: o pai simbólico, o falo, tudo isso o resultado do algoritmo inicial. Isso, claramente, colocava em primeiro plano o semântico, o que implicava uma certa redução do ponto de vista econômico de Freud. E é isso que, de maneira aproximativa, os contemporâneos daqueles tempos consideraram como um intelectualismo de Lacan. O que chamavam assim era a primazia que Lacan dava à semântica sobre o econômico, ou seja, da semântica sobre o libidinal. E Lacan dava razões para isso, pois o significante, na sua emergência, na sua ação, em si mesmo, implica uma deslibidinização, um elemento mortífero, uma ação mortífera, que se encarna sumariamente no que chamou de "barra significante" .Para se transformar em significante um dado, um elemento tomado da realidade, ele deverá ser esvaziado, comprimido, mortificado e é, por isso, que surge, podemos dizer, como emblema. De tal maneira que, correlativamente ao algoritmo inicial, há uma barra evidente, que é a que separa "significante significado", que também suprime o libidinal, para dar lugar à combinação simbólica. Lacan, através disso, podia simultaneamente dar conta da castração. Fazia da castração freudiana o efeito da linguagem ou, melhor dizendo, do significante. Isso implicou muitas transformações dos conceitos freudianos, em particular, do conceito de pulsão. Lacan claramente deu uma versão deslibidinizada de pulsão, quando a apresenta como uma demanda, uma demanda articulada com significantes primários, diferentes dos significantes uportes do significado, ou como uma cadeia significante inconsciente.
Está claro que isso permitia dar conta de muitíssimas coisas com grande eficácia, mas deixava a necessidade de conceituar o libidinal como tal. que aparecia na conceituação sempre como uma inércia, como um resto, como algo a mais que aparecia na dimensão psicanalítica. Quer dizer, como algo real, quando na psicanálise se tratava essencialmente de elementos simbólicos e imaginários, de elementos significantes e de significados. E havia, além disso, o real, do qual Lacan dizia, no Seminário IV: "Do real não falamos". O real não pertence a nossa operação.
Mas, acredito que precisou conceituá-lo, cada vez mais, até chegar na sua criação própria, para além do efeito dessa perspectiva estruturalista, como objeto "pequeno a", que apareceu primeiro à margem de seu ensino, e que se resume finalmente no esquema dos quatro discursos. Existe o significante que, no mínimo, deve ser representado como um par significante, uma vez que ele ocorre essencialmente como um sistema, uma ordem, no mínimo criando uma relação de dois. O efeito de sentido, o significado, como terceiro elemento.
Por muito tempo, Lacan considerava o que chamava "o sujeito" como sendo um efeito de sentido. É a hipótese mais simples, dado que - na análise pensamos que é através das palavras e efeitos de sentido que se transforma o sujeito, então o mais evidente é considerar o sujeito, ele próprio, como um efeito do significante, que responde à cadeia significante. Finalmente, todo o esforço de Lacan foi - a partir de seu ponto de partida - acrescentar o quarto elemento, quer dizer, o elemento libidinal. O divertido é que, vinte anos depois da construção desse elemento libidinal nesta estrutura, fundamentalmente saussuriana ou jakobsoniana, acabou por comprender que não era suficiente, que o objeto "pequeno a" era um artifício fraco demais para dar conta da instância, da pressão, da importância da libido freudiana. Isto é dito no Seminário XX. Finalmente, o objeto "pequeno a" é um semblante, e em comparação com a função do gozo, fica aquém, não dá conta. Foi depois desse Seminário que começou a repensar tudo, não pensar o gozo a partir do "significante-significado", do algoritmo inicial, senão repensar este algoritmo inicial a partir do gozo, que é uma tentativa e tanto. Neste momento, é como se o ensino de Lacan saísse de sua própria lógica, ou fosse conduzido até seu próprio limite; há algo assim como um salto, e a tentativa de ver tudo o que se tinha a partir de uma outra perspectiva, como um anti-Lacan. Muitas coisas que depois surgem, parecem ser de um anti-Lacan, uma crítica de Lacan. Como se Lacan tivesse se tornado suficiente mente velho para dar, ele mesmo, um passo além de Lacan. Assim, a última parte de seu ensino me parece que é uma espécie de tentativa de Lacan para ir além de Lacan, do algoritmo lacaniano. Ao mesmo tempo, não se pode dizer que teve - nesta perspectiva - o mesmo sucesso que na primeira parte; uma vez que não dispôs de um algoritmo tão forte quanto o primeiro; a própria idéia de um algoritmo que funcione não corresponde à perspectiva da segunda e última parte.
Agora, quando vocês bem assinalam que há distinções sobre a letra entre um momento e outro, é por causa disso. É claro que Lacan já havia encontrado esta instância da letra antes, por exemplo, se pensamos na Carta Roubada. Lacan assinalava num primeiro momento, a insistência mesma da carta, que se me lembro bem, é a rainha quem a amassa, e é o ministro que percebe isso, e Lacan diz que nenhum analista descartaria este resto, que é a carta amassada. Assinalando isto, para além do significante e do significado. O significante em seu efeito de significado foi consumido, quando lemos a carta e a podemos entender, já se efetuou a ação do significante; ademais, existe algo que é o objeto material, que vem por acréscimo, que é um objeto que está invisível na palavra. Na fala, o significante se desvanece. É claro que agora temos aparelhos que permitem à palavra tornar-se escritura imediatamente, como quando se utiliza um gravador. O gravador, sendo material, tem a mesma função que a carta amassada.
É este elemento que quando Lacan fala de Gide, também assinala esta materialidade própria das cartas que permite à senhora Gide queimá-Ias. Para machucar, Gide queima as cartas de amor enviadas por ele, que as considerava a mais bonita correspondência amorosa do mundo. Toda a leitura de Lacan termina na materialidade da carta que, uma vez queimada como coisa, ou uma vez queimado o objeto, o significante e o significado se desvanecem, porque não havia outros exemplares, havia um só de cada; se tivessem sido fotocopiadas, a senhora poderia ter queimado as cartas sem maiores conseqüências.
É essa mesma função que figura, no que diz Lacan, como uma espécie de suplemento. Quando ele escreve Lituraterre, faz desta materialidade o centro da operação literária, faz da litura do dejeto o centro ao redor do qual gira a própria literatura, que não gira ao redor do mecanismo que vincula o significante ao significado, senão que gira ao redor da litura, e é por esta razão que seu texto começa com uma homenagem a Samuel Beckett e a seus personagens que falam desde a lixeira.
A perspectiva sobre o gozo também se inverte porque, na primeira parte do ensino de Lacan, do gozo antes do significante não se podia dizer muito. Falava-se somente do resto que fica da libido, depois da operação significante. Corresponde bem ao que diz Freud quando fala da deslibidinização do corpo, e que a libido se concentra em algumas zonas residuais. No último ponto de vista de Lacan, é como se ele tentasse se localizar no gozo primário, para situar o significante a partir deste ponto de vista. Ou seja, é nessa circunstância que pode finalmente problematizar o que esse significante tem de estranho, como se introduz o significante a partir do gozo de um ser vivo, e como se destaca, dentro dos significantes, um significante organizador, um significante amo.
De tal maneira que, no primeiro ponto de vista é como se o problema, como se o conceito essencial fosse o conceito do Outro, enquanto lugar do Outro, enquanto sistema simbólico, mas não um sistema puro, porque tem um desejo, também do Outro. E, na última perspectiva, o conceito essencial é o conceito do Um, que deve ser pensado na distinção do Outro, isto é, na primeira perspectiva, a questão é a do sistema do significante e, na segunda, da existência do significante como tal.
Obs: Agradecemos a Jorge Forbes a revisão técnica.