Entrevista com Márcio Peter (I)
Mário Pujo (in Psicoanalisis y el Hospital, in Carta de São Paulo, Boletim da Escola Brasileira de Psicanálise-SP, no. 7, p. 18-21, outubro/1999)
Mário Pujó - Qual o critério que leva um analista a recorrer a uma medicação?
O psicanalista por sua vez demonstra que o sintoma está relacionado às vivências constitutivas do sujeito, daí que dirige o tratamento produzindo um ato que visa modificar as defesas desse sujeito frente à angústia.
O analista então poderia recorrer à medicação se o sintoma apresentado pelo paciente impedir uma abordagem do mesmo pela palavra, único meio da análise. O uso que o analista estaria fazendo da medicação seria então a de utilizá-la unicamente para uma redução sintomática e não com fins de uma remissão da etiologia desse sintoma. Mesmo porque para o analista o sintoma é sempre uma condensação, ou seja, ele não tem valor por si mesmo, mas somente em relação ao que o constituiu. Ou seja o analista pode aceitar o uso da medicação como tática, nunca como estratatégia, o analista pode tolerar a medicação se esta contribuir para a possibilidade de uma análise, sem se iludir que esta tem uma ação na causa do sintoma tratado. Ninguém pensaria curar uma dor de dente com analgésico, mas não haveria porque deixar de usá-lo.
Mário Pujó - Vantagens e desvantagens de que o mesmo profissional conduza ambos os tratamentos.
Márcio Peter - Vantagens: O manejo da transferência se torna mais administrável. Permite trazer para o plano do discurso os efeitos colaterais da medicação. Permite retirar a medicação em função da posição do sujeito frente ao sintoma. Permite uma sintomatização dos significantes que envolvem a medicação. Possibita a inclusão das fantasias mobilizadas pela intervenção medicamentosa. Desvantagens: Inclui um saber alheio ao dispositivo analítico. A medicação como objeto foge à sua significantização. Fetichização do sintoma.
Mário Pujó - Psicose, delírio e alucinação.
Márcio Peter - Primeiro: a indicação de uma análise e ou de um tratamento medicamentoso e seus efeitos, depende do tipo de psicose. Não é a mesma situação numa paranóia ou em uma esquizofrenia, muito menos em uma mania (mesmo respeitandos as condições do DSM-IV). Se a produtividade psicótica implica numa desestabilização do sujeito em toda sua vida de relação, pode ser necessária a medicação para tornar qualquer tratamento possível. A análise por sua vez só será possível se houver transferência. (Ver Lacan “Questão preliminar a todo tratamento possível...”). Fica a questão da existência de uma transferência psicótica (erotomaníaca?) e as condições que ela impõe a uma análise. Caso ela seja possível, um efeito esperado seria a estabilização (conseguida por uma suplência?) do delírio. (Não se pode esquecer também da proposta de uma clínica universal do delírio).
Caso o paciente seja medicado, o efeito da medicação seria o de uma remissão total do delírio ou também somente o da sua estabilização? Existiria mesmo uma medicação "alucinolítica" (como promete a bula do Haloperidol)?, ou essa substância tem uma ação geral no sistema nervoso (através das vias dopaminérgicas) que modifica todo percepiens em detrimento do perceptum?
Mário Pujó - Luto e tristeza.
Márcio Peter - Para o DSM-IV o luto e a tristeza são sintomas de depressão, mas não suficientes nem necessários para o diagnóstico do transtorno depressivo, por isto esses sintomas por si só não justificam um tratamento com antidepressivos. Muito menos para o analista, para quem tanto o luto como a depressão se referem às perdas objetais, daí que o uso da medicação, vista como objeto, pode metaforizar indevidamente o objeto perdido.
No entanto se a depressão e a tristeza (com ou sem angústia) fazem parte de uma síndrome, na qual outros sintomas, (por exemplo anedonia, lentificação psíquica, anorexia, insônia etc.) impedem a análise, aí a medicação pode ser necessária.
Adendo: Não estou tão certo de que os medicamentos tenham uma "eficácia" tão evidente na modificação destes estados. (Vide e relação dos efeitos placebo/medicação nos ensaios duplo cegos, bem como as diferentes respostas às diversas substâncias oferecidas no mercado, e seus índices de eficácia muito relativos). Como excluir a sugestão?
Mário Pujó - Critério quantitativo?
Márcio Peter - A introdução das "escalas", por exemplo a de Hamiton para medir "quanto" um sujeito esta deprimido, ou as usadas para a ansiedade e mesmo na esquizofrenia, nos levariam a um neo-positivismo objetivante que excluem a existência de um sujeito e de sua lógica.
Talvez aqui caiba a mesma intervenção feita por Lacan em relação ao tempo cronológico, ao sugerir, para o sujeito, um tempo lógico (a presença do outro/Outro como pressa precipitante). Como avaliar sem se colocar como outro/Outro? Há intensidade sem avaliação?
a) exemplo típico é o Prozac, contra o qual pesam evidências que indicam um aumento do risco de suicídio e ou agressões a terceiros como um efeito colateral nada desprezível, convenientemente silenciado nas bulas e nas publicações "científicas" (vide P. Bregget nos seus livros Toxic Psychiatry, ou no recente Listen back to Prozac onde denuncia e documenta o manejo feito pela indústria farmacêutica dos relatos sobre os efeitos colaterais da Fluoxetina descritos na literatura médica). Crítica extensiva a outras substâncias.
b) Contrapõe-se uma "ética do lucro" a uma ética da psicanálise. O lucro se rege pelo valor de mercado, e a psicanálise pelo "bem dizer". Talvez Lacan ao sugerir o discurso do capitalista possa orientar onde está o impossível e a impotência própria a essa situação discursiva que impede que este discurso circule, dialetizando-se com os outros.
c) A ciência moderna e o sujeito moderno são correlacionados por Lacam com o Cogito Cartesiano. O sujeito da psicanálise também. A questão que se coloca atualmente frente aos sintomas contemporâneos, e sobre se haveria um sujeito pós-moderno, diferente do sujeito moderno. Como o sujeito se constitui em relação ao saber, deve-se se perguntar qual a relação que existe com o saber para o sujeito pós-moderno. (Da mesma maneira deve-se perguntar sobre a analisibidade do sujeito pós-moderno visto a modificação da sua relação com o saber logo da sua possibilidade de aceitar um sujeito-suposto-ao-saber).
O sujeito pós-moderno, caracterizado pela ausência de ideais, de paradigmas de consenso, logo distante de toda e qualquer tradição ou rituais, mostra no uso das marcas no corpo, via tatuagens, piercing, ou dos esportes radicais, tipo body-jumping etc., ou mesmo pelo uso que faz das drogas tipo ecstasy, uma relação com o Outro não intermediada pelo significante. Não seria o êxito da psicofarmaterapia uma resposta moderna à angústia, conseguida através do utilização do farmaco como fetiche (pílula da felicidade)?
Mário Pujó - A psicánalise como saída para o mal-estar na cultura? O discurso da psicanálise como alternativa (o único) para o discurso capitalista?
Márcio Peter - A paixão pelo sentido produziu as religiões. A paixão pela psicanálise produz a verdade? (Se a produz, o faz pela emergência do S1, o Significante mestre? Como integrar esta verdade de cada um em uma ética coletiva)?
Outro nome para a situação pós-moderna e o que Lacan se referiu no Seminário AUN, como o Outro que não existe. Decorrente ou não desta constatação, sua proposta de saber fazer com seu sintoma pode não esclarecer muito sobre o fim-finalidade de uma análise, de qualquer maneira a aposta da psicanálise não está no esclarecimento do sentido do sintoma, mas na incidência nas formas de gozo do sujeito.
Cabe a psicanálise poder incidir nos modos de gozo da sociedade contemporânea. Principalmente no gozo que decorre da opção pelo uso de psicofármacos, caracterizados por serem avessos às palavras, e logo à psicanálise. De poder incidir neste modo de gozo depende o futuro da psicanálise.