Entrevista com Newton da Costa
Márcio Peter de Souza Leite • Oscar Cesarotto
(in Revirão, número 3, Rio de Janeiro, dezembro de 1985)


• Motivos • Lógica Paraconsistente • A derrogação do Princípio de Não Contradição
• Lógica do falo & paraconsistência • Lacan precursor • Antecedentes & Desenvolvimentos
• Lógica & Conhecimento • Lógica & Matemática • Lógica & Psicanálise – A questão da formalização
• Lógica do inconsciente, do discurso analítico e da teoria analítica
• Inconsciente & Paraconsistência • Inconsciente & Negação • Lógica Freud-Lacan
• Invariantes • A Matemática de Lacan – o Nó Borromeano • O Matema  • O Teorema de Gödel
• O Tempo Lógico • Perplexidade • Visão profética  •  Música


Motivos

Newton da Costa - Comecei a me preocupar com a Lógica Paraconsistente, basicamente, por três motivos. O primeiro foi que, desde jovem, tive vários problemas de natureza psicológica, e sendo meu avô psiquiatra e minha mãe uma grande admiradora de Freud, naturalmente fui levado à teoria de Freud, para ver se conseguia me “curar”. Em particular, me interessei muito por seus discípulos, principalmente F. Alexander, cuja teoria conheço relativamente bem e procurei empregar para me “autocurar”. Além disso, depois, muitos anos depois, estive durante quatro anos em tratamento psicanalítico. Então, com essa experiência, comecei a ver que; no que posso chamar de discurso analítico, no sentido de diálogo entre a pessoa que está sendo psicanalisada e o psicanalista, evidentemente há contradições. Há contradições em sonhos. Eu cansei de ter sonhos, se bem me lembro, que eram evidentemente contraditórios. Ouvia coisas e fazia coisas que eram contraditórias. Então, pensei cá comigo, também com base em alguns textos de Freud: é possível formalizar um tal discurso?

O segundo motivo que me levou aos estudos sobre paraconsistência foram minhas preocupações com o socialismo, especialmente com Marx. Sempre gostei muito dele, embora não o aceite in totum; hoje em dia estou meio afastado de Marx, mas a filosofia marxista, pelo menos em algumas de suas interpretações, admite a existência de contradições. Aparentemente, algumas interpretações de Hegel também.

E por essas e outras razões, isto é, para ver se era possível, de algum modo, codificar, formalizar, alguns aspectos do pensamento dialético, foi que me preocupei com a paraconsistência. Não tanto que eu quisesse legitimar o pensamento dialético através de uma nova lógica, mas simplesmente para evitar raciocínios do seguinte tipo: Popper, num artigo célebre, What is Dialetic?, diz que a dialética é impossível – se realmente ela contém contradições, como na lógica clássica não é possível haver contradição, quer dizer, se houver contradição, isso “trivializa” a teoria, logo, a dialética seria “trivial”.

Assim, poder-se-ia demonstrar a impossibilidade da dialética com base na lógica Então, pensei que se conseguisse construir um novo tipo de lógica, que permitisse que as contradições fossem aceitas e não esbarrasse em trivialização, então seria possível que esse argumento de Popper não se aplicasse mais à dialética. Quer dizer, a dialética não poderia ser criticada do ponto de vista puramente lógico. Isso não legitima a dialética simplesmente mostra que um argumento deste tipo contra a dialética não vinga.

E a terceira razão foi que, desde jovem, dediquei-me à matemática, estudando especialmente a Teoria dos Conjuntos e certas dificuldades que nela apareceram no começo do século e que se chamam Antinomias Cantorianas, ou Paradoxos Cantorianos, ou as contradições da Teoria dos Conjuntos. Pensei, então, que, ao invés de adotar uma solução para superar essas dificuldades, que consiste em se manter a lógica usual e, vamos dizer assim, mutilar grande parte da Teoria dos Conjuntos, por que não fazer ao contrário? Manter a Teoria dos Conjuntos com suas antinomias, etc., desde que se modifique a lógica subjacente.

Esses foram os três principais motivos que me levaram ao estudo sistemático da Lógica Paraconsistente. Repito: problemas de caráter psicológico, via psicanálise; problemas referentes à dialética; e problemas matemáticos de caráter extremamente técnico, sobre os quais não tem sentido falar aqui. Com o correr do tempo, tive que porfiar muito para poder desenvolver minhas idéias, pois elas eram demasiadamente heterodoxas.


Lógica Paraconsistente

Newton da Costa - Uma das primeiras vezes que tentei fazer conferência sobre Lógica Paraconsistente numa universidade brasileira, sugeriram-me que o melhor seria não pronunciá-la, para não comprometer minha carreira! Acho que foi em 53, em Curitiba. Havia um padre, que prezo muito, que me disse: “Olha, acho melhor você cancelar a conferência, porque tenho a absoluta certeza de que você está ficando psicótico. Um indivíduo que vem me dizer que vai derrogar o princípio da não contradição tem que ser maluco”.

E não foi só isso. Anos depois, um professor amigo meu convidou-me para fazer uma conferência numa das melhores universidades brasileiras, no Departamento de Matemática. Eu fui todo alegre, pensando: “Bem, pelo menos talvez num grande centro eles me ouçam”. No dia da conferência, o professor me procurou muito sem jeito: “Lamentavelmente, não vai haver conferência; ela foi cancelada”. “Mas como, cancelada por quê?” Ele ficou ainda mais sem jeito, não queria dizer, mas depois desabafou: “Meus colegas acham que não é possível uma lógica que não exclua contradições. Ou seja, não é possível uma teoria com contradições. Tudo isso não tem sentido, só um ignorante ou louco pode pensar nisso”. Sistematicamente, durante vários anos, fui taxado de egocêntrico.

Márcio Peter - Nessa época você já nomeava sua lógica de paraconsistente?

Newton da Costa - Não, eu a chamava “lógica para sistemas formais inconsistentes” ou “lógica para teorias inconsistentes”. Lógica Paraconsistente foi uma expressão cunhada muito depois, creio que na década de 70, quando cheguei à conclusão de que precisava arranjar um novo nome para essa nova lógica. Escrevi a um grande amigo meu, o professor Francisco Miró Onesada, um filósofo peruano, e pedi-lhe uma sugestão. Ele, então, me respondeu: “Há três possibilidades, segundo eu penso. A primeira seria dizer ‘metaconsistente’, além da consistência. Mas ‘meta’ já é muito usado em lógica e em matemática: metalógica, metamatemática, etc. Não conviria. Outra seria ‘ultraconsistente’, mas tal denominação também acredito que não seja muito boa. A melhor mesmo talvez fosse ‘paraconsistente’: a Lógica Paraconsistente se situaria ao lado da lógica consistente. Por coincidência, depois que este termo foi cunhado, a Lógica Paraconsistente se desenvolveu extraordinariamente. Isto parece corroborar a tese de que é preciso batizar com um nome muito bom uma nova teoria, uma nova disciplina, para que ela progrida rapidamente.

Oscar Cesarotto - Lacanianamente, diríamos que um significante abre caminhos.

Newton da Costa - Exatamente.

Oscar Cesarotto - Foi necessária uma denominação para que isso tivesse reconhecimento de existência como discurso.

Newton da Costa - Na verdade, desde aquela época, uma das pessoas que mais contribuíram para divulgar a Lógica Paraconsistente foi um matemático francês, professor Marcel Guillaume, uma espécie de mestre meu. Por intermédio de amigos comuns, enviei-lhe vários trabalhos sobre Lógica Paraconsistente. Se ele conseguisse publicá-los, eu continuaria trabalhando no tema, se não, desistiria. Ele se encantou pelas minhas idéias e várias notas minhas foram apresentadas à Academia de Ciências de Paris. É interessante que, depois que essas notas saíram na França, aqui em São Paulo e em outros lugares começaram a achar bom o que eu estava fazendo. É uma coisa estranha: com as notas eu poderia fazer o que quisesse, sem as notas, não.


A derrogação do Princípio de Não Contradição

Márcio Peter - Voltando à questão interna desta Lógica Paraconsistente, a questão de derrogação do princípio de não contradição. Como se dá isso?

Newton da Costa - Na verdade, nem toda Lógica Paraconsistente derroga o princípio da não contradição. O princípio da não contradição poderia ser enunciado assim: dadas duas proposições, uma das quais é a negação da outra, uma delas é falsa. Na Lógica Paraconsistente, pode ocorrer que uma proposição e sua negação sejam ambas verdadeiras. Então, nessa forma, o princípio é derrogado em grande parte das lógicas paraconsistentes. Mas existem outros tipos de Lógica Paraconsistente. Recentemente, estive pensando numas coisas que Lacan escreveu e acho que, por causa disso, em alguns casos a Lógica Paraconsistente que se aplica não é tanto esta que derroga diretamente a lei da contradição – é a Lógica Paraconsistente generalizada. Isto é, uma lógica é paraconsistente neste sentido se nela for verdadeira uma tese incompatível com a lógica clássica.


Lógica do falo & paraconsistência

Newton da Costa: Lacan tem aquelas conhecidas fórmulas lógicas do falo, inaceitáveis do prisma da lógica clássica; elas não constituem propriamente uma verdade meio intuitivamente, desenvolveu uma Lógica Paraconsistente. Ou melhor, ele pelo menos enunciou alguns princípios tais que, com base neles, é possível desenvolver uma Lógica Paraconsistente. Não só em sentido estrito, que derroga a lei da não contradição, mas também no sentido amplo, com fórmulas e teoremas que são incompatíveis com a lógica clássica. As quatro fórmulas que ele escreveu não encerram nenhuma contradição, se você adicioná-las à lógica clássica. Trivializam tal lógica.

Márcio Peter - Eu havia entendido, dos nossos contatos anteriores, que, a partir da Lógica Paraconsistente, a lógica formal clássica seria um caso particular.

Newton da Costa - Em alguns tipos de Lógica Paraconsistente existem duas categorias de proposições: as que se “comportam bem” e as que se “comportam mal”. As que se comportam bem satisfazem a lógica clássica. As que se comportam mal, essas não satisfazem, derrogam algumas das leis da lógica clássica, por exemplo, a lei da não contradição. A Lógica Paraconsistente serve para que se consiga formalizar teorias que encerram contradição, ou, agora inspirando-me um pouco em Lacan, que contenham fórmulas, teoremas incompatíveis com a lógica clássica. Isto é, teorias que não possam ser trabalhadas, sistematizadas, pela lógica clássica. A lógica do falo de Lacan, como já afirmei, aparentemente é paraconsistente na segunda acepção acima.


Lacan precursor

Newton da Costa - Fui levado a estender o conceito da Lógica Paraconsistente tendo em vista tais questões – num dos meus últimos trabalhos, que vai ser publicado na Bélgica, Lacan é citado, inclusive. Tenho a impressão de que é um dos primeiros trabalhos de lógica de caráter técnico em que se cita o Lacan. Ele me inspirou. E não foi só essa parte de Lacan que me chamou a atenção. Ele também trata de derrogação da lei de identidade. Também tratei da lógica não reflexiva, ou lógica de Schrödinger, na qual não vale o princípio da identidade, no mesmo sentido em que na Lógica Paraconsistente não vale a lei da não contradição. E Lacan também fala em lógica intuicionista, que derroga a lei do terceiro excluído. Desenvolvi muito o que se chama lógica paracompleta, que é uma lógica que derroga esse princípio. A lógica intuicionista é um caso particular da lógica paracompleta. Assim, eu diria que Lacan, sob certos aspectos, foi um precursor não só da Lógica Paraconsistente, mas também da lógica não reflexiva e da lógica paracompleta em sentido amplo.

Márcio Peter - Você disse que Lacan, intuitivamente, haveria proposto a Lógica Paraconsistente. E você, como chegou à Lógica Paraconsistente? Houve um método intuitivo?

Newton da Costa - Houve uma maneira intuitiva, informal, acho que por trás de qualquer formalização tem que haver algo intuitivo, um background intuitivo. Agora, para poder expor essa idéia intuitiva subjacente, tive que ser muito técnico. Não acredito que pudesse explicar em poucas palavras o que me motivou. A maneira de formular, de escolher os axiomas, foi sempre levando em conta certas particularidades técnicas. A intuição subjacente era a de ter uma lógica que não eliminasse as contradições a priori. Mas realizar isso é uma coisa um pouco difícil. Popper, no artigo de que falei, sobre a dialética, asseverou que tinha pensado numa lógica que não eliminasse a contradição como absolutamente falsa, mas que depois de muito pensar havia conseguido provar que tal lógica era impossível, ou demasiadamente fraca e, por isso, inútil. Portanto, Popper diz que provou a impossibilidade de uma coisa que eu fiz. Isso é interessante.

Oscar Cesarotto - Ele quis fazer primeiro, aí continuou pensando e concluiu que não dava pé. Ele não conseguiu fazer.

Newton da Costa - Mais do que isso. Não somente disse que não conseguiu, mas disse que provou que era impossível. Desse modo, fiz uma coisa que ele provou que era impossível. Várias pessoas que têm grande admiração por Popper, um filósofo de quem gosto muito, sugeriram que eu enviasse meus trabalhos a ele. Várias vezes pensei nisso, mas, por uma razão ou por outra, acabei não enviando. Se Popper tivesse tempo de se sentar e estudar a Lógica Paraconsistente, gostaria de conhecer a opinião dele, e, principalmente, que verificasse que é possível se edificar uma Lógica Paraconsistente extremamente poderosa, mais poderosa que a lógica clássica. A matemática paraconsistente é muito mais forte que a matemática clássica. Vamos esquematizar assim: na matemática paraconsistente, existe uma parte bem comportada que contém a matemática clássica e uma parte mal comportada que contém muitas outras coisas. Alguns dos sistemas de Lógica Paraconsistente que formulei não derrubam a matemática clássica. Ao contrário, eles a contêm. Da mesma maneira que a teoria da relatividade não destruiu a mecânica de Newton, simplesmente a ampliou. A mecânica newtoniana continua valendo, mas com certas limitações.


Antecedentes & Desenvolvimentos

Márcio Peter - A Lógica Paraconsistente já tinha sido desenvolvida antes de suas pesquisas?

Newton da Costa - Eu poderia dizer que duas pessoas, praticamente ao mesmo tempo, criaram a Lógica Paraconsistente. Um lógico polonês muito conhecido, Stanislaw Jaskowski, em 1948, e eu, sem conhecer o trabalho dele, por volta de 53. Esta lógica teve como precursores um lógico russo chamado N.A. Vasilev, que publicou alguns trabalhos em 1910 (como ele só conhecia a lógica tradicional, não pôde desenvolver suas concepções com os recursos da lógica moderna, permanecendo em nível muito rudimentar), e um lógico polonês célebre, J. Lukasiewicz, que, em 1910 também, discutiu a possibilidade de uma lógica que derroga a lei da contradição. Mesmo com Aristóteles, aparentemente, já se tinha vislumbrado a possibilidade de uma tal lógica. Gostaria que isso fosse lembrado, porque prova que estou em boa companhia.

Márcio Peter - No momento atual, quais são os desenvolvimentos da Lógica Paraconsistente?

Newton da Costa - Hoje em dia ela está tão desenvolvida, que eu mesmo não consigo mais seguir sua evolução. Recebo tantos trabalhos sobre o tema que não é possível acompanhá-los. Mesmo que ficasse só estudando Lógica Paraconsistente, não conseguiria mais seguir todos os seus progressos. Não consigo mais seguir a literatura. O que fazem na União Soviética, na Polônia e em vários outros lugares, simplesmente não se pode mais acompanhar. E também já estou um pouco enjoado. Quero fazer outras coisas além de Lógica Paraconsistente. Já começo a ficar meio aborrecido quando vou num lugar e logo me fazem indagações sobre a paraconsistência. Posso assessorar outras pessoas, como no caso de psicanalistas que me procuram, mas trabalhar sistematicamente na Lógica Paraconsistente, não quero mais. Encontro-me numa fase da minha vida em que estou fazendo outras coisas.


Lógica & Conhecimento

Oscar Cesarotto - Que outras coisas?

Newton da Costa - No momento, estou fundamentalmente interessado em filosofia da ciência, especialmente na teoria estrutural da ciência e na estatística. Quase todas as nossas inferências realmente importantes não são dedutivas, são indutivas. Então, agora, me interessa mais esse tipo de lógica. Mas, mesmo assim, acredito que recentemente consegui demonstrar uma coisa interessante: uma lógica indutiva não clássica, senão com características paraconsistentes.

Na lógica dedutiva, as conclusões seguem-se necessariamente das premissas. Na lógica indutiva, não: as premissas apenas acarretam a conclusão com alguma probabilidade. Por exemplo, verifico que o Sr. A morre, e a Sra. B morre, e a Sra. C morre, etc. Daí concluo que “Todo homem é mortal”. As premissas que tenho não me garantem que todo homem seja mortal, com necessidade, mas somente com uma certa dose de probabilidade. Agora estou interessado nas inferências indutivas. Tudo que poderia despender para compreender a matemática e a lógica dedutiva, acho que já despendi. Quero, daqui para a frente, compreender o que se passa com a ciência empírica. O que é inferência científica? O que é a ciência?

Jamais estudei lógica e matemática pela lógica ou pela matemática. Sempre estudei lógica e matemática principalmente para compreender o fenômeno do conhecimento. O que se pode conhecer? O que significa conhecimento? Um amigo meu, Professor Rolando Chuaqui, asseverou que sou um matemático aplicado à filosofia. Por exemplo, no caso da Lógica Paraconsistente, queria verificar, entre outras questões, se era possível uma concepção dialética da natureza e se, por motivos lógicos, poderia refutar a posição dialética. Pode ser que a dialética seja falsa, mas não por motivos lógicos.


Lógica & Matemática

Márcio Peter - Qual é a relação entre lógica e matemática?

Newton da Costa - Lógica e matemática constituem uma mesma ciência. Bertrand Russell costumava dizer que “a lógica é a juventude da matemática, e a matemática é a virilidade da lógica”. Mais ou menos o que penso é isso. Lógica e matemática são duas disciplinas irmãs. Os diversos ramos da lógica, como a Lógica Paraconsistente, podem ser estudados do ponto de vista matemático, como um certo tipo de topologia, etc. E, inversamente, as lógicas servem para fundamentar a matemática. A lógica funda a matemática e, ao mesmo tempo, a matemática pode ser usada para estudar a lógica. Isso é uma coisa linda e aparentemente paradoxal. Como é possível que a lógica sirva de fundamento para a matemática e, ao mesmo tempo, a matemática possa ser usada para resolver problemas profundos da lógica?

Márcio Peter - A lógica é anterior à matemática?
Newton da Costa - Eu responderia que sim e que não. Num certo sentido, sim; num outro sentido, não. Acho que não dá para separar a lógica da matemática. Você usa a matemática para fazer lógica, e usa a lógica para fazer matemática. Logo, se poderia dizer que a lógica é a disciplina fundante da matemática: ela serve para fundamentar a matemática. Mas, por outro lado, a matemática dá instrumentos pelos quais se pode demonstrar teoremas lógicos. Há um feedback: a matemática fecunda a lógica e a lógica fundamenta a matemática.


Lógica & Psicanálise – A questão da formalização

Márcio Peter - Quais seriam as possibilidades de articulação entre matemática e psicanálise? Como você veria a questão de uma lógica da psicanálise e/ou de uma psicanálise da lógica?

Newton da Costa - Em primeiro lugar, gostaria de reafirmar um ponto fundamental: o que significa formalizar? Às vezes ouvimos que não é possível formalizar a dialética, que não é possível formalizar a lingüística. Repito para os meus alunos, sistematicamente, que formalizar não significa colocar uma disciplina numa camisa-de-força.

Formalizar significa algo distinto. Suponhamos, por exemplo, que se vai visitar Paris. Para tanto é bom ter um guia de Paris. É claro que um guia de Paris não é Paris; mas um guia de Paris ajuda a conhecer Paris. Ou quando, por exemplo, se recebe uma fotografia de uma pessoa que se vai encontrar no aeroporto. A fotografia não é a pessoa, e não se pode confundir a pessoa com a fotografia. Mas ela contribui extraordinariamente para que se reconheça a pessoa. Com a formalização se passa algo semelhante aos casos do guia de Paris e da fotografia: a formalização, o formalismo por si mesmo, não resolve problema nenhum, em ciência nenhuma. E nem esgota toda a ciência. Mas ele é extremamente importante para servir como mapa, guia ou foto; existem mapas que cada vez se aproximam mais da realidade. Você pode ter uma fotografia de Paris lá do alto da Torre Eiffel, pode ter um mapa do Quartier Latin. Isso ajuda você, e mais do que isso: uma pessoa que tenha bons mapas e fotos de Paris de certo modo aprimora seu conhecimento de Paris. Ou que possua, por exemplo, um manual com a descrição do que há no Louvre. Aqui não se quer substituir o Louvre pelo manual, nem ele consegue captar tudo que está dentro do Louvre, mas auxilia.

No caso da psicanálise, quando falamos em aplicar a lógica na psicanálise, formalizar a psicanálise, o discurso analítico, não quer dizer que vamos pegar o discurso analítico e colocá-lo numa camisa-de-força de natureza formal e lógica. Não é isso. Na psicanálise devemos considerar o discurso analítico, isto é, o que um paciente conversa com o analista, e a teoria analítica, ou seja, a teoria deste discurso e o corpo de doutrina correspondente. No discurso, nessa troca de palavras, existem certas características gerais que podem ser captadas por uma lógica, mas isso não quer dizer que a lógica seja capaz de captar tudo. Ela ajuda; é como se tivéssemos um mapa de um país, ou um mapa de um metrô. Se um analista tem o mapa, não digo que ele vai resolver todos os problemas, mas ele realmente se orienta. Então, nessa acepção de formalismo, é claro que a lógica é extremamente importante para o psicanalista, porque ela formaliza, ela consegue dar o mapa de alguns aspectos do discurso analítico que são extremamente importantes.


Lógica do inconsciente, do discurso analítico e da teoria analítica

Newton da Costa - Estou falando do discurso analítico como este interplay lingüístico que há entre o paciente e o analista. Nesse discurso, se a pessoa, por exemplo, descreve seus sonhos, começa a fazer associações, a falar, é evidente que há contradições; além disso, esse discurso é incompleto, e às vezes derroga outros princípios da lógica. Porém, há uma lógica subjacente. Repito, essa lógica não esgota tudo, e não vai ser a lógica matemática que vai curar todas as enfermidades do mundo, mas ajuda. E acho também que na teoria psicanalítica – esse é um problema que não tenho meios para resolver no momento, nem conhecimento – talvez haja uma lógica subjacente, uma lógica da teoria analítica, que pode ser que seja a clássica, embora eu tenha minhas dúvidas a esse respeito. Se compreendi Lacan, tal lógica seria não-clássica. Mas, seguramente, a lógica do inconsciente, ou a lógica que se manifesta nesse interplay entre o paciente e o analista, essa lógica informal pode ser formalizada por algum tipo de Lógica Paraconsistente.

Márcio Peter - Você se preocupa em definir o discurso analítico na sua acepção exata; creio que seria de utilidade para os analistas conhecer os alcances e os limites da palavra lógica.

Newton da Costa - Lógica é uma palavra que tem muitas acepções, é preciso tomarmos cuidado. Mas, da forma que eu a estou empregando aqui, lógica é, antes de mais nada, uma ciência, um corpo de doutrina. É a Lógica, com L maiúsculo. Porém, existem lógicas com l minúsculo, que são as estruturas estudadas na lógica. O que é uma lógica com letra minúscula? É exatamente uma estrutura lingüístico-formal que nos permite definir certos conceitos, como, por exemplo, inferência válida. Quais são as inferências válidas dentro da lógica clássica? Partimos de uma linguagem formal, formalizada, formulamos certos axiomas e regras, e conseguimos caracterizar essas inferências. No interplay analítico entre o paciente e o analista, isso não só se manifesta como uma linguagem: nessa linguagem está embutida uma lógica, uma estrutura lingüístico-formal, que nos permite captar vários invariantes. Isso é uma lógica. Na Lógica investigam-se as várias lógicas. Naturalmente, este é um conceito muito vago de lógica. No entanto, não gosto de definir a lógica, por exemplo, como a ciência das inferências válidas, porque a Lógica é muito mais do que isso. No tocante ao discurso analítico, há certas inferências que podem ser captadas, podem ser formalizadas numa lógica, que é paraconsistente e paracompleta, e talvez derrogue outras leis clássicas.


Inconsciente & Paraconsistência

Márcio Peter - Por que é paraconsistente?

Newton da Costa - Paraconsistente, entre outras razões, porque em vários dos casos que Freud analisa, cinco ou seis, se não me engano, em dois deles é absolutamente claro que há situações contraditórias. Mas em seu livro Foundations of Psychoanalysis, Alexander relata casos de contradições muito mais óbvias. É o próprio Alexander quem diz que o discurso analítico, entre o paciente e o analista, derroga as leis fundamentais da lógica. Ele menciona explicitamente a lei da identidade, a lei do terceiro excluído e a lei da contradição. Só que, não sendo lógico, não conhecendo bem a lógica, ele deixou tudo meio no ar.

Tenho a impressão de que o analista percebe que o paciente se coloca, várias vezes, em situações contraditórias. Eu mesmo tive muitos sonhos contraditórios: estava chorando, desesperado, e, ao mesmo tempo, estava extremamente alegre. Logo, estava triste (não alegre) e, ao mesmo tempo, estava alegre. E, por outro lado, me via a mim mesmo no sonho. Eu me via a mim alegre e triste, alegre e não alegre. Recordo-me de outro sonho, no qual vi minha mãe e me disse: “É minha mãe e não é minha mãe”. Naturalmente, pode-se sustentar que aqui não se tratam de contradições efetivas, de conformidade com a lógica clássica. A semântica, por exemplo, parece diferente da clássica. Não nego isso. Na Lógica Paraconsistente, a semântica é diferente. Se essa semântica fosse igual à da lógica clássica, ela não seria Lógica Paraconsistente, seria lógica clássica.

A objeção que se faz à Lógica Paraconsistente geralmente é essa: B não pode ser A e não A ao mesmo tempo, se utilizarmos as palavras em suas acepções usuais. Caso se esteja usando a negação clássica, é claro que não há contradições verdadeiras. O que sustento é que, na Lógica Paraconsistente, a negação é diferente. A negação paraconsistente não é a negação clássica. A negação paracompleta também não é negação clássica. Se a negação paraconsistente fosse a clássica, a Lógica Paraconsistente seria a clássica; se a negação clássica fosse a paraconsistente, a lógica clássica seria a paraconsistente. A negação, como se manifesta num discurso analítico, é uma negação paraconsistente.

Acredito que mesmo nas coisas que as crianças dizem, às vezes, há contradição. O linguajar da criança é contraditório. Pode-se objetar que talvez isto se dê porque elas não dominam as categorias lógicas fundamentais. Não discuto isso. Mantenho apenas que as categorias lógicas que elas usam são mais paraconsistentes do que clássicas. Se você tentar reinterpretá-lo, pode ser que um discurso analítico, um discurso paraconsistente, se transforme num clássico. Mas o “x” da questão é: se eu, no sonho, estou e não estou triste, não posso asseverar que isso está errado, que minha negação não é negação, porque não está de acordo com a lógica clássica. Parece mais correto admitir que minha negação não é clássica, é paraconsistente.


Inconsciente & Negação

Márcio Peter - A articulação entre a Lógica Paraconsistente e a formalização da lógica do inconsciente seria justamente o postulado freudiano de que o inconsciente não suporta contradição?

Newton da Costa - Eu diria apenas que, como o inconsciente está estruturado como uma linguagem, e esta linguagem tem uma lógica subjacente paraconsistente, na psicanálise é importante se tratar de Lógica Paraconsistente.

Márcio Peter - E há algum outro ponto de articulação entre a psicanálise e a Lógica Paraconsistente, a não ser o problema da negação?

Newton da Costa - Sim. Naturalmente, o problema da negação é um dos muitos problemas que podem aparecer. Especialmente dentro de outros textos de Lacan e de outros problemas relativos à psicanálise, poderíamos pensar em outras coisas como, por exemplo, as modalidades deônticas, que podem aparecer no discurso analítico, tais como “eu devo fazer isto”, “isto é proibido”, etc., ou na teoria psicanalítica, provavelmente possam ser de natureza distinta das da lógica clássica; poderiam-se relacionar com uma lógica deôntica paraconsistente, etc. Aliás, convém tecer alguns comentários sobre a Lógica Paraconsistente deôntica.

Em ética existe o problema dos chamados dilemas morais. Um dilema moral é o seguinte: muitas vezes uma pessoa tem que realizar ou P ou não P, e tanto P como não P são proibidos. É o caso típico, por exemplo, de um homem que tenha uma amante. Depois de um certo tempo, ele precisa resolver essa situação. Ou ele abandona a esposa, ou abandona a amante. Abandonar a esposa é proibido do ponto de vista ético, porque vai prejudicá-la, causar-lhe dano. Mas abandonar a amante também o é. Então, ele é obrigado a realizar alguma coisa que é proibida. Qualquer das duas possíveis saídas, ou abandonar a esposa ou a amante, vai criar o que se chama de dilema moral, porque ele é obrigado a fazer uma coisa que é proibida. Pois bem, se usarmos a lógica clássica, como lógica subjacente, não pode existir dilema moral. Ou seja, você pensa que é dilema moral, mas não é. É que você não soube hierarquizar as suas necessidades deônticas. Não pode existir dilema moral, pois, se for proibido P e se for proibido a negação de P, isto trivializa nosso sistema deôntico no sentido de que tudo é proibido. Aí sua ética colapsa.

Por isso, tive a idéia de mudar a lógica, usando uma Lógica Paraconsistente com base na lógica deôntica. Com essa Lógica Paraconsistente é possível existirem dilemas morais. Uma lógica americana, a professora Ruth Barcan Marcus, dá exemplos concretos de dilemas morais, como o caso do aborto. Suponhamos que, como médico, você chegue à conclusão de que uma paciente tem que abortar, porque senão ela morre. Mas se você fizer o aborto, vai matar o feto, o que é proibido do ponto de vista moral, segundo certas éticas. E se você não fizer isso, a mulher vai morrer. Também é proibido.

Surge assim um dilema moral. Um padre poderia argumentar que o dilema ocorre por não sabermos quais são nossas obrigações morais. Deus quer que o filho nasça. É que não conhecemos a hierarquia perfeita das normas éticas. Portanto, não existe nenhum dilema moral: você tem que deixar a mulher morrer. Esta seria talvez a solução de um católico ortodoxo. Mas acho que isso não funciona. E não digo que com a Lógica Paraconsistente se possa provar que existem dilemas éticos. Não é isso. O que penso e que só por motivos lógicos não se consegue provar que não existem dilemas éticos. Mais ainda, creio que há dilemas éticos, como no caso do aborto, como no caso de um homem que tem uma amante. Por exemplo, Sartre defende a existência de dilemas morais, quando se refere ao patriota, um jovem que é arrimo de família: arrebenta a guerra e ele, ou vai para a guerra matar gente, o que é proibido, ou fica cuidando da mãe e não vai para a guerra, o que também é proibido, porque ele deve ajudar à Pátria, etc. Acredito que o problema dos dilemas morais tenha alguma conexão com a psicanálise.

Oscar Cesarotto - Tem. Por exemplo, no Seminário XI, Lacan recria esse dilema em termos de “ou a bolsa ou a vida”. Que é mais ou menos a lógica da castração e do narcisismo, na saída de Édipo, para o sujeito masculino: pode optar por conservar o pênis e perder a mãe. Ou optar por ficar com a mãe, mas então perde o pênis. O dilema está aí. Ambas as soluções são péssimas e o sujeito não pode evitar uma delas.

Newton da Costa: - Pois bem, nesse caso, se a lógica subjacente a isso for a clássica, vai tirar dessa conclusão do Oscar Cesarotto que tudo é proibido, mas isso é falso. Esse é um argumento a favor de tais dilemas. Acho que todos nós, psicanalistas e lógicos, temos teorias comuns extremamente interessantes, e deveríamos nos preocupar mais com elas. Principalmente, fazendo reuniões interdisciplinares entre psicanalistas e lógicos, como nós temos feito ultimamente lá na Biblioteca Freudiana Brasileira. Aprendi muito com essas reuniões.


Lógica Freud-Lacan

Márcio Peter - Você chegou, inclusive, a formalizar um novo tipo de lógica, a lógica FL (Freud-Lacan).

Newton da Costa - Mas ainda não terminei de contestar a sua pergunta. Agora a aplicação da psicanálise à lógica.

Márcio Peter - A pergunta inicial era: há uma Lógica da psicanálise e uma psicanálise da lógica? Qual a opção mais correta? Como você vê essa diferença entre lógica da psicanálise ou psicanálise da Lógica? Essas posições não se invalidam mutuamente? Quer dizer, uma psicanálise da lógica não invalida uma lógica da psicanálise?

Newton da Costa - Creio que não. É exatamente uma situação similar à que ocorre entre lógica e matemática. Aparentemente, parece que existe um paradoxo nas relações entre lógica e matemática. A lógica, sob certos aspectos, funda a matemática, e a matemática é usada para desenvolver a lógica. Acredito que aqui também se passa alguma coisa desse tipo. É evidente que existe uma lógica da psicanálise, em certo sentido. Todavia, por outro lado, também se pode tentar desenvolver uma psicanálise da lógica. Quando fui com Jorge Forbes ao Rio de Janeiro, recentemente, li um livrinho de um discípulo do Alexander, um húngaro, Irme Hermann, que tratava exatamente das relações entre lógica e psicanálise. Ele procurava mostrar como alguns princípios lógicos têm origem psicanalítica. O trabalho pareceu-me extremamente interessante, desbravando caminho. Origina-se, desse modo, uma situação interessante. A lógica serve para esclarecer aspectos da psicanálise, e a psicanálise pode ser aplicada para esclarecer, ou para explicar, certos aspectos da lógica. Essa é uma das aporias, das dificuldades que temos de enfrentar.

Márcio Peter - Poderia falar um pouco da Lógica FL?

Newton da Costa - Poderia, mas acontece que esse tópico é demasiadamente técnico. Foi uma primeira aproximação. O que se procurou fazer foi exatamente apresentar uma primeira possibilidade, uma primeira tentativa de se codificar alguns aspectos formais do discurso analítico. A formalização foi apresentada, mas só há uma maneira de verificar se ela funciona ou não: na prática psicanalítica.

Jorge Forbes - Mas ela já foi um pouco mudada.

Newton da Costa - Claro, mas insisto em que, de qualquer forma, é uma primeira tentativa. E uma primeira tentativa pode estar errada, mas tem a virtude de ser a primeira. Como no caso dos irmãos Wright, quando tentaram fazer o primeiro avião. Voaram poucos metros, porém iniciaram uma nova era de progressos.

Márcio Peter - Mas o que articula essa lógica?

Newton da Costa - Tendo-se em vista que, por exemplo, num discurso analítico, aparentemente há contradições e não é satisfeito também o princípio do terceiro excluído, o problema que tentei resolver foi exatamente o de se buscar os princípios lógicos válidos desse discurso e que sejam compatíveis com dois fatos básicos. Primeiro fato: há contradição no discurso; segundo fato: em geral, o discurso não é completo. Muitas vezes, não posso dizer que uma proposição seja verdadeira ou que sua negação seja verdadeira. Pode acontecer que as duas sejam falsas no discurso, tendo em vista certos exemplos de análise, certas afirmações de Lacan e de Freud. Porém, isso não determina o sistema lógico. Com os dados que naquela época eu tinha, vários outros sistemas eram possíveis. Por tentativa e erro, cedo ou tarde, se conseguirá obter uma lógica que se aproxime da lógica verdadeira do discurso analítico.


Invariantes

Márcio Peter - O que se quer obter?

Newton da Costa - Uma lógica que seja realmente a lógica que me dê alguns invariantes do discurso analítico. Que seja comum a todo discurso analítico. Qualquer que seja o analista, qualquer que seja o discurso, você constata que pode haver contradição. Esta circunstância é um invariante do discurso analítico, ao que tudo indica.

Oscar Cesarotto - Há algo que é específico no agir do inconsciente, através até de um discurso que se pretende coerente. De repente, há incidências, alterações, aparecem contradições nesse discurso. Do ponto de vista da intencionalidade, função da consciência que decorre da estruturação a partir do estádio do espelho, tende-se à coerência. Talvez o fundamento da lógica clássica surja daí.

O corpo ocupa um lugar no espaço; sua reflexão especular é a confirmação disto. Só que esta dimensão imaginária é superada pelo registro do inconsciente, onde o corpo se inscreve como significante, podendo ser representado das maneiras mais bizarras e contraditórias, até impossíveis. O que eu entendi, então, é a possibilidade de se articular tudo isso num sistema mais abrangente que a lógica clássica que, por exemplo, neste caso, só daria conta de uma impossibilidade.

Newton da Costa - Sim. Agora, se isso pode realmente ser feito, só pode ser feito com base “empírica”, como ocorre com a aplicação de uma teoria matemática. Suponhamos a mecânica racional de Newton; ela funcionava e funciona ainda em certas situações. Por quê? Porque as experiências estão mostrando. Faz-se o cálculo do movimento dos planetas, e dá certo. E só aos poucos constatamos que funciona. O mesmo se passa em psicanálise. É preciso encontrar esquemas lógicos e leis tais que o analista, quando estiver em seu trabalho, comece a verificar, e pensar se, de fato, o que o analisando está dizendo satisfaz essas leis ou não, se a lógica proposta funciona ou não. É como, por exemplo, a lógica deôntica. Há várias, mas qual delas se aplica melhor à ética usual? Isso é uma coisa que somente a experiência, em sentido amplo, pode justificar.

Sistemas lógicos, de fundamento abstrato, puramente dedutivo e matemático, existem infinitos; mas qual é aquele que se aplica à realidade? Aliás, lembrei-me de uma boa comparação. Existem várias geometrias possíveis, além da euclidiana: existe a geometria de Lobachewski, na qual, dada uma reta, passam infinitas paralelas a essa reta; existe a geometria de Riemann, na qual por um ponto fora de uma reta não passa nenhuma paralela a essa reta.

Qual dessas geometrias se aplica melhor à realidade? Todo mundo sempre pensou que a de Euclides se aplicasse melhor. E, de fato, para as coisas comuns, por exemplo, para levantamentos topográficos, ela é aceitável. Agora, sabe-se que, para grandes concentrações de massa e para regiões muito grandes do universo, a geometria que se aplica melhor é a de Riemann. Isso é conseqüência da teoria da relatividade. Logo, o problema tem que ser resolvido com base em considerações de caráter empírico, pela experiência. Por tal método, parece possível constatar-se que a regra de modus ponens (das proposições “Se A, logo B”, e “A”, conclui-se “B”) vale no discurso analítico.

Gostaria de mencionar, no entanto, que, nos poucos contatos com pessoas psicóticas que tive, parece que elas não utilizam, como deveriam, a regra em apreço. Muitas vezes tive a impressão de que um psicótico aceita que A implica B, aceita A, mas que aparentemente não é forçado a aceitar B.

Márcio Peter - E que B tem aí o valor de C.
Newton da Costa - Sem a regra de modus ponens, a lógica seria muito mais complicada. Um esquizofrênico que conheci parecia às vezes não tirar as conseqüências óbvias das premissas que admitia. Ele aceitava uma série de coisas, embora não deduzisse. Tenho a impressão de que a lógica de um psicótico é tão patológica, que não permite que se tire certas conseqüências óbvias.


A Matemática de Lacan – o Nó Borromeano

Márcio Peter - Qual a sua opinião sobre a formalização “matemática” da psicanálise que Lacan tentou?

Newton da Costa - O que conheço de Lacan foi o que discuti com vocês, principalmente com Jorge Forbes. Assim, o nó borromeano, quando Lacan faz aquela comparação do nó com as relações entre Imaginário, Real e Simbólico, é extraordinariamente fascinante, porque acho muito difícil, em linguagem comum, conseguir-se fazer uma comparação tão bonita e fecunda. Porém, tirar da topologia dessa figura alguma conseqüência fundamental para a psicanálise, tenho as minhas dúvidas. Mas, como valor heurístico, acho a comparação absolutamente genial. Até gostaria de saber se Lacan tinha algum amigo matemático. Como foi que ele tomou contato com essas coisas?

Oscar Cesarotto - E interessante que, 20 anos antes de ter na mão o nó borromeano, ele já falava que esses três registros estavam amarrados com um nó.

Newton da Costa - Então, ele já falava sem conhecer o nó. E depois, quando o viu, foi que se deu conta da analogia...

Oscar Cesarotto - Conta-se, sem muita certeza de verdade, que ele teria encontrado o nó no brasão de uma família da nobreza. A partir desse momento heurístico, a partir do momento em que concretizou esse achado, ele pretendeu ir um pouco além, entrando no que chamava de Real. Real, terceira dimensão, aquilo que ex-siste, porque cada vez que se fizer a mesma coisa com três fios, vai acontecer aquilo, o nó. Continuando por aí, estabeleceu a relação do Real com a matemática. Além de colocar, inclusive, que teria gostado muito de ser matemático. Então, a nossa pergunta seria a seguinte: como você acha que Lacan utilizou os elementos da matemática, de uma maneira adequada, correta, para dar conta de uma teoria que é psicanalítica?

Newton da Costa - Penso, até onde li e até onde percebi, que a principal razão para fazer essa aplicação de Lacan é heurística. Quer dizer, precisamos de imagens, precisamos de certos conteúdos geométricos ou matemáticos que nos esclareçam, de maneira intuitiva e bonita, certas situações. Todavia, até que ponto, dessas elocubrações matemáticas, se possa tirar conseqüências para a psicanálise, isso dependeria de se saber até que ponto essas elocubrações refletem o “formalismo”, nas situações que elas iluminam. É evidente, por exemplo, que a fita de Moebius esclarece várias coisas em psicanálise. Não tanto em matemática, onde é algo trivial. Quando certas situações em psicanálise são comparadas com a fita de Moebius, isto nos esclarece. Porém, até que ponto a topologia, a geometria da fita de Moebius contribui para se desenvolver um tema psicanalítico, aí dependeria de se saber até que ponto essa configuração geométrica traduz ou representa a situação analítica. Quanto mais ela a representar, mais haverá possibilidade de se raciocinar geometricamente, tirar conseqüência importante para a psicanálise.

No começo, eu achava essas comparações puro jogo verbal. Depois de alguma reflexão, cheguei à conclusão de que essa é uma das maneiras mais fecundas de se elucidar, de se precisar um fato, uma situação. Por exemplo, o nó borromeano: quando entendi qual era o problema, que de fato o Real, o Imaginário e o Simbólico estavam amarrados de tal jeito que o nó refletia melhor do que qualquer explicação, percebi sua relevância heurística. Porém, se da teoria matemática se pode tirar conseqüências psicanalíticas, não tenho certeza.


O Matema

Márcio Peter - O que você acha do conceito de matema? Não é um conceito matemático?

Newton da Costa - Eu preferiria que você falasse como você conceitua o matema. Depois eu respondo.

Márcio Peter - É uma criação, um neologismo de Lacan, provavelmente baseado no conceito de mitema de Lévi-Strauss, onde se procura uma unidade mínima que dê conta de uma estrutura.

Oscar Cesarotto - E cuja transmissão fosse a mais “objetiva “possível, como sendo uma formalização de uma invariável.

Newton da Costa - Como já disse uma vez a vocês, suspendo o meu juízo no momento. Porém, uma coisa importante tem sido sempre buscar invariantes. Então isso, provavelmente, vai ter um grande significado, no futuro. No momento, talvez por deficiência minha, principalmente na teoria de Lacan, não saberia o que dizer. Precisaria conhecer a teoria mais profundamente, ver qual é de fato o significado de matema, como ele se comporta, quais as suas propriedades, para poder dar uma resposta mais sensata.

Márcio Peter - Você acha possível operar com os matemas?

Newton da Costa - Por que não? Talvez até pudéssemos definir uma estrutura matemática diferente das usuais. O que acho – no começo não achava, mas cada vez acho mais – é que todas essas comparações são extremamente interessantes como motivações heurísticas. No entanto, motivações heurísticas podem ficar só nas motivações heurísticas, sem se poder desenvolvê-las com maiores detalhes, com maior profundidade. Talvez se consiga alguma coisa importante.

Tenho a impressão, por outro lado, que algumas coisas que Lacan fez estão muito no começo. Será preciso um exército de pessoas para realmente desenvolver todas as suas idéias. E isso não pode ser realizado por um matemático ou por um psicanalista. É preciso ser efetivado por um grupo de pessoas, lingüistas, lógicos, etc., muita gente em conjunto. Uma das facetas interessantes desta revista Série Psicanalítica é exatamente o caráter interdisciplinar da tarefa a que ela se propõe. A psicanálise chegou a tal ponto, principalmente depois de Lacan, envolve tantas coisas, tais como a lingüística, matemática e lógica, que é absolutamente necessário haver colaboração. Um dos corolários mais notáveis da obra de Lacan foi o de que a partir dele a psicanálise se “socializou”, num certo sentido. Ou seja, não é possível mais se fazer psicanálise ficando-se isolado. Torna-se necessário um trabalho de equipe, sem dúvida nenhuma; de agora em diante é preciso, sempre que houver um grupo de psicanalistas, que ele seja auxiliado por lingüistas, matemáticos e lógicos, etc.


O Teorema de Gödel

Márcio Peter - Isso me lembra uma questão mencionada pelos psicanalistas, uma referência obscura ao teorema de Gödel. Como você entende a vinculação deste teorema com a psicanálise?

Newton da Costa - Li um texto de Lacan no qual ele faz referência a Gödel. Não me lembro exatamente qual foi o texto – tratava-se do Seminário A Lógica do Fantasma e Ciência e Verdade – porque era bastante complicado. No começo, achei que não fazia sentido algum, mas depois de alguma reflexão pareceu-me sensato mencioná-lo no contexto da psicanálise, como artifício heurístico e analógico. O teorema de Gödel tem um valor heurístico extraordinário. Ele reflete bem o que aparentemente acontece com certos conceitos lacanianos, nos quais há uma espécie de incompletude e de auto-referência. O teorema de Gödel é extremamente complicado, técnico; é o teorema matemático a que talvez, nesse século, mais se faz referência sem se conhecer bem o seu significado.

Ele é um teorema puramente aritmético, sobre o qual se afirma as coisas mais insensatas. Estou cansado de ouvir tantas barbaridades a respeito desse teorema. Surpreendentemente, no caso de Lacan, no começo fiquei receoso e não gostei, mas pouco a pouco cheguei à conclusão de que o que ele afirmava fazia sentido. No tocante a este tópico, como em quase todas as outras referências de Lacan à matemática, pelo menos aquelas que eu li, todas ainda estão em embrião. Precisaria que se trabalhasse muito para se desenvolver todo o tema. Somente depois é que se poderia dar um balanço definitivo das intuições matemáticas de Lacan.


O Tempo Lógico

Márcio Peter - Uma das coisas que surgiu nas nossas conversas, que você ficou de pensar, é a questão do tempo lógico. A questão da Lógica do tempo.

Newton da Costa - Esse foi um tópico no qual, honestamente, não pensei. Aliás, é algo que gostaria de estudar através do texto de Lacan, que andei folheando, mas achei extremamente difícil. É preciso fazer um seminário e discuti-lo.

Márcio Peter - Quais seriam as possíveis relações entre o tempo e a Lógica?

Newton da Costa - Atualmente, a relação é grande. Naturalmente, a lógica tradicional é atemporal. 2 + 2 = 4 não depende do tempo. Mas, recentemente, desenvolveu-se a lógica do tempo, a lógica cronológica, uma disciplina que os árabes, na Idade Média, tinham investigado extraordinariamente. Não sei bem se foi Avicena ou Averroes quem a desenvolveu muito. A lógica dos árabes era, aparentemente, uma lógica temporal, cronológica. O silogismo deles era um silogismo cronológico. Uma lógica bastante “temporalizada”.

Então, não vejo por que não se tentar amarrar mais ainda o tempo e a lógica. Mesmo porque a realidade é temporal e esse é um dos grandes paradoxos, uma das grandes dificuldades da aplicação da matemática à realidade. A matemática é algo, pela sua própria constituição, atemporal. Você não diz que 2+2=4 hoje, e amanhã não. Todas as teorias matemáticas banem o tempo. Mas como é possível se aplicar a matemática à natureza, se a natureza é essencialmente tempo e mudança? Como é que se pode aplicar conceitos absolutamente imutáveis a uma realidade que muda? No fundo, é um paradoxo. Você encontra uma dificuldade enorme em aplicar algo que bane o tempo a uma coisa absolutamente temporal. Não existe realidade sem tempo. No entanto, não sei bem se Lacan usa o tempo lógico na acepção da moderna lógica cronológica.

Márcio Peter - Não, é uma acepção de tempo que contradiz a acepção cronológica. É uma propriedade lógica. Nas articulações que ele faz com a topologia, diz que a relação entre a topologia e a prática é o tempo. Quer dizer, o número de movimentos para se passar de uma figura a outra.

Newton da Costa - Isso pode ser interessante. No momento não saberia o que dizer a esse respeito. Ao se fazer inferências, ao se passar de uma situação a outra, há um certo tempo, parece que Lacan o chama de tempo lógico.


Perplexidade

Márcio Peter - É como aquele joguinho de barbante, no qual sem certo número de movimentos não se chega na outra figura.

Newton da Costa - Isto deve ser interessante nas aplicações psicanalíticas, embora eu não saiba se, na própria lógica, seria ou não. É tópico para se estudar. Peço-lhes permissão para fazer algumas divagações. Do ponto de vista lógico puro, qual seria a importância desta idéia de Lacan, que é muito fecunda, da derrogação da lei da identidade, da derrogação da lei da contradição e da derrogação do terceiro excluído? É uma idéia de fundamental relevância para a lógica, como para a psicanálise. Mas é preciso que mais lógicos e matemáticos se interessem pelo tema, e mais analistas também. Que todos procurem se entender. Para uma pessoa que tem a minha formação, quando começo a falar com psicanalistas como vocês, fico meio perplexo. Custou-me muito entender o que diziam. Era como se estivesse escutando chinês ou japonês, no começo, quando ia às reuniões de vocês. Uma vez, brincando, comentei com alguém: “Eles passam tanto tempo com loucos que ficaram meio pancadas”. Mas aos poucos comecei a ver que não, que vocês diziam coisas assentadas, mais assentadas que eu, talvez. É uma barreira terrível. E ainda uma pessoa como Lacan, com aquele seu linguajar sui generis, para segui-lo é preciso uma dose extrema de simpatia. Se você não tiver uma dose muito grande de boa vontade, a primeira impressão é de que Lacan faz apenas malabarismos verbais.

A princípio, juro, fiquei desanimado. É por isso que um livro como o de vocês, o segundo, sobre Lacan, é muito bom. Torna tudo muito mais simples para quem o lê. De uma maneira absolutamente clara, sem aqueles exageros de Lacan, vocês conseguem mostrar que o verbalismo dele tem um sentido no contexto de suas indagações. Acho que obras de divulgação, principalmente nessa área, são absolutamente essenciais. Por isso fiquei contente com os livros de vocês. Li os dois no mesmo dia em que os recebi. Aí compreendi vários aspectos de Lacan e de sua obra. Só o fato de vocês fazerem com que uma pessoa, depois de ler aqueles livros, vir aproximar-se de Lacan, pensando que ele é “maluco”, já vale a pena. Carecemos de mais livros desse tipo.


Visão profética

Oscar Cesarotto - Quero agora pegar um caminho quase tangencial ao que estamos falando. Uma palavra que você repetiu bastante foi “heurística”. Em relação à Lógica Paraconsistente, disse que foi fruto de um trabalho, e apontou suas três motivações iniciais. Muito bem: como foi, em termos heurísticos? Você teve uma idéia básica a partir da qual começou a trabalhar?

Newton da Costa - As três motivações mencionadas, pelas dificuldades que ofereciam, funcionaram como alavanca heurística para que eu elaborasse a Lógica Paraconsistente. Tive a intuição de que esta lógica era possível como que numa visão profética. Após esta visão, tratei de trabalhar e de resolver os problemas técnicos que apareceram. Passou-se comigo algo semelhante ao que ocorreu com Freud quando ele escreveu o livro A Interpretação dos Sonhos. Freud diz que custou-lhe bastante redigir o livro. Ele estava absolutamente certo de como tudo era, teve uma “visão”, e depois sofreu muito para escrever a obra.

Oscar Cesarotto - Por que você teve essa visão?

Newton da Costa - Essa é uma pergunta que eu não me propus. Francamente, talvez porque os outros fossem espíritos muito clássicos e eu sempre tenha sido uma pessoa “do contra”. Sempre tive certo prazer em desmistificar os “deuses”, como, por exemplo, a lógica clássica e a matemática clássica. Se pudesse provar que a matemática clássica está errada, ficaria extremamente contente. É interessante isso. Um dos lemas da minha vida sempre foi uma frase de Cantor, o criador da teoria dos conjuntos: “A essência da matemática radica na sua completa liberdade”. O intelectual, o cientista em particular, tem a obrigação de explorar todas as possibilidades. Então quis explorar todos os caminhos. No começo queria “destruir” a lógica clássica, depois vi que podia conviver com ela. Talvez isso tenha algo a ver com o complexo de Édipo...

Márcio Peter - A matemática tem algo de mulher?

Newton da Costa - Creio que sim, porque todas as coisas bonitas o têm. E o mesmo ocorre com a música. Aliás, o português e o espanhol são as únicas línguas vivas nas quais as três coisas mais formidáveis do mundo são denotadas por palavras que se iniciam pela mesma letra: mulher, música e matemática.


Música

Oscar Cesarotto - Qual a relação entre a música, a matemática e a lógica?

Newton da Costa - Embora conheça pouco, adoro música. Música e matemática,não sei se estão relacionadas ou não, mas, indiscutivelmente, gosto de ambas. Matemática eu gosto, em parte, como fonte de motivação estética. Há um matemático brasileiro, Amoroso Costa, que afirmou que “o valor supremo da matemática não radica no seu valor de verdade, nem no seu valor de utilidade, mas no seu valor de beleza”. Sempre estudei matemática motivado pela beleza de suas aplicações. A música, gosto muito porque ela também é bela. Acho que é exatamente esse denominador comum de beleza que liga muito a matemática à música. Talvez, se conhecesse mais a música, encontrasse outro tipo de relação. Mas, para mim, a matemática e a música são ambas fontes de beleza.

Oscar Cesarotto - Outro dia foi o tricentenário de Bach, cujas músicas já foram colocadas em um computador.

Newton da Costa - E Bach parece mesmo um músico que compõe como se fosse um matemático, às vezes um computador... Aliás, sou um grande admirador dos três B: Bach, Beethoven e Brahms.

Oscar Cesarotto - Creio que hoje não temos mais perguntas. Espero que esta entrevista não tenha sido em vão.

 

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