A psicose como paradigma da psicanálise
Márcio Peter de Souza Leite
• Psicanálise e modernidade
• Foliesophie
• Fragilidades do corpo
• A doutrina da loucura de Lacan
• Direção do tratamento: louco, único homem livre.
• De Aimée a Joyce: a evolução da doutrina das psicoses em Lacan
Psicanálise e modernidade
Uma análise é feita no espírito do seu tempo. No atual, a sociedade parou de viver sob o reinado do pai, reinado dos ideais, o que foi caracterizado por Lyotard como pós-moderno. O pós–moderno se mostra na desestruturação dos saberes estabelecidos, no anonimato do modo de vida atual, produzindo laços sociais desarrumados, e uma individuação extremada.
O efeito na clínica contemporânea é a menor efetividade da função paterna e uma multiplicação do discurso do mestre, o que acarreta um sujeito sem referência.
O sujeito, vivendo em uma civilização condicionada pelo discurso da ciência e pela globalização do capitalismo, marcado pela ausência de ideais, corresponde ao fenômeno moderno da desaparição dos valores. Só há uma coisa que vale: a lei do mercado.
O mestre contemporâneo é o mercado. Lacan usou a expressão discurso do capitalista para apontar o espírito do tempo atual. O discurso do capitalista mostra a modificação do discurso do mestre efetuada pela ciência. Neste contexto, pode-se falar num sintoma moderno, no qual o sujeito procura sua completude no consumo de objetos. Este modo de complementação do sujeito, alienando-o no consumo, fez Lacan dizer que discurso do capitalista rejeita a castração. Pelo fato de o discurso analítico reintroduzir a castração, Lacan coloca a psicanálise como a única saída do capitalismo.
A psicanálise está em correlação com este momento da ciência, sendo o sujeito da ciência a condição para a existência do discurso analítico. O sujeito para a psicanálise não é a consciência, não é a experiência, não é o sentido, ele está constituído por uma verdade.
Prescrever remédios ou promover o acesso a uma verdade, causa o sofrimento? Pergunta que aponta a uma ética, porém não uma ética dos filósofos, mas uma ética da psicanálise. Esta ética foi sugerida por Lacan como: "uma ética se anuncia, convertida ao silêncio pelo advento não do pavor, mas do desejo”.
Neste sentido, a ética da psicanálise, em primeiro lugar, diz respeito à interpretação do desejo inconsciente que implica o sujeito na responsabilidade de uma escolha.
O limite disto está na incompatibilidade do desejo com a palavra, o que esboça a virtude alusiva da interpretação, que vai da interpretação definida como tomar o desejo à letra, até a interpretação enquanto incidindo sobre a causa do desejo.
A ética do analisando pode ser formulada como Wo Es war soll Ich werden: aí onde Isso era, deve advir Eu. Isto quer dizer que há ética onde há escolha, decisão, o que se manifesta de maneira exemplar na analogia feita por Lacan da depressão com a covardia moral.
À ética da psicanálise pode-se acrescentar uma ética do desejo, que não é uma ética da liberação do desejo, mas de sua resolução, o que, devido à incompatibilidade do desejo e da palavra, coloca o problema do "bem-dizer”.
Se o saber muda, como acontece numa pós-modernidade caracterizada pela ausência de paradigmas, pode-se supor que o Sujeito também mude, porque ele é constituído a partir do saber, como mostram as figuras do sujeito definido historicamente.
O inconsciente evolui. O analista, definido por Lacan como uma conseqüência do conceito de inconsciente, também deve mudar para poder abordar as novas manifestações subjetivas.
A psiquiatria de hoje não é a mesma à qual Lacan se referiu. A tendência da psiquiatria atual, chamada de biológica, caracteriza-se por ter seus fundamentos determinados por outras disciplinas científicas, principalmente a neurobiologia.
Este novo modelo da psiquiatria critica os anteriores em seus métodos, e os substituiu por critérios estatísticos, excluindo os acontecimentos particulares da vida do sujeito na causação dos seus transtornos.
Estes autores, ao proporem unicamente uma causa neurobiológica para os transtornos mentais, negam a causalidade psíquica em psicopatologia, o que fez com que a psiquiatria atual tenha encontrado nas neurociências seus fundamentos epistemológicos e metodológicos.
Dão suporte a esta posição, entre outros, Damasio, Dennet e Changeux, autores que se valendo dos recentes avanços havidos no conhecimento do cérebro, afirmam que a conduta humana pode ser explicada totalmente em termos biológicos.
O principal argumento dos neurobiologistas consiste em dizer que o homem não possui nenhum elemento químico em seu corpo que não esteja presente no animal, o que os leva a uma leitura do funcionamento do cérebro fundada numa explicação genética, evolucionista e materialista.
Produziu-se também uma biologia das paixões, onde os funcionamentos hormonais, opostos ao neuronal, fizeram considerar-se o cérebro como uma glândula neuro-endócrina.
A psiquiatria atual, valendo-se da sua vocação médica e situando as causas dos transtornos psíquicos nas fragilidades do corpo, recusa qualquer referência a uma essência do homem, ou qualquer associação com temas como a questão da liberdade ou da responsabilidade, mostrando sua desimplicação com a Ética.
Como conseqüência houve a abolição da categoria das neuroses, substituída pelos transtornos da ansiedade. Neste grupo isolou-se uma categoria paradigmática, a “ansiedade endógena com manifestações autonômicas" ou “síndrome do pânico" que, como diz o nome, seria endógena e autonômica, por isto mesmo considerada um transtorno cerebral, embora o texto de referência sobre a questão atribua a descrição desta síndrome a Freud (Estudos sobre a histeria, caso Elisabeth R.).
Como as neuroses, as histerias também desapareceram na nova nosologia proposta pelo DSM, transformando-se, descacterizadas, em quadros dissociativos. No campo das psicoses há uma desconsideração das Paranóias (reduzidas a transtornos delirantes) e uma enfatização nas esquizofrenias. Porém, qualquer que seja a ordenação dos quadros pela nova nosografia utilizada na psiquiatria, seu tratamento privilegia sempre unicamente a abordagem psicofarmacológica, não havendo a inclusão do sujeito, na montagem da estratégia terapêutica.
Foliesophie
As significações da loucura não foram sempre as mesmas. Na visão de Homero, os homens não passariam de bonecos à mercê dos deuses. Situação, em que não teriam o domínio de si mesmos e por isto teriam seu destino conduzido pelas "moiras', o que criava uma aparência de estarem fora de si, de estarem possuídos por uma força maior e exterior. A isso os gregos chamaram “mania”.
Segundo Sócrates, este fato produziria quatro tipos de loucuras: a "profética", em que os deuses se comunicariam com os homens possuindo o corpo de um deles, o oráculo. A ritual ou dionisíaca, onde o louco se via conduzido ao êxtase através de danças e rituais orgásticos, ao fim dos quais seria possuído por um daímon. Haveria ainda, a loucura amorosa produzida por Afrodite e a loucura produzida pelas musas, a loucura poética.
Na significação produzida pelo cristianismo, atribui-se sua causa ao demônio. As epidemias de feitiçaria transformaram-se na Inquisição, "tratamento" indicado pela Igreja para curar essa "doença" espiritual.
Porém, a noção de loucura sofreu sua maior modificação ao ser anexada à razão. Isto teria ocorrido com Pinel que, ao separar o louco do criminoso, afastou o aspecto de julgamento moral que constituía até então o principal parâmetro da definição da loucura.
Hegel afirmou que a alienação mental não seria a perda abstrata da razão, como até então se acreditava, mas que a loucura seria decorrente de uma contradição interior à própria razão.
Hegel diz que não haveria uma "outra" razão ou mesmo uma desrazão que motivasse a loucura, como se acreditava antes, mas que esta provem de algo interno a ela própria. A loucura deixou de ser o oposto à razão ou sua ausência e pôde ser pensada inerentemente à razão. Foi o que tornou possível pensá-la como dentro do sujeito e, portanto, possuidora de uma lógica própria.
Hegel tornou possível pensar a loucura como pertinente e necessária à dimensão humana, e afirmou que só seria humano quem tivesse a virtualidade da loucura, pois a razão humana só se realizaria através dela.
Com isso, a loucura deixou de ser universal, uma loucura de tudo e de todos, uma loucura dos deuses que criariam uma loucura do mundo, e passou a ser uma loucura de cada um que, levando em conta o particular deste sujeito, passou a ser apenas loucura dos homens. No entanto, é uma armadilha pensar a loucura com a linguagem da razão porque a loucura constitui um saber recusado pela própria produção. A loucura propõe-se como a razão da desrazão, transformando a psiquiatria em um “monólogo da razão sobre a loucura”.
Fragilidades do corpo
O corpo para a psicanálise é o corpo atravessado pela linguagem. Do encontro traumático entre carne e verbo fica a marca de um sofrimento originário: o corpo marcado pela linguagem não é o corpo biológico.
A entrada de Lacan na Psicanálise deu-se pelos limites que o conhecimento psiquiátrico trouxe sobre a paranóia, e poderia dizer-se que a paranóia está para Lacan, assim como a histeria para Freud.
Lacan, vindo de uma formação em psiquiatria, ao confrontá-la com a psicanálise, tomou as principais questões da psiquiatria como chave para o conhecimento psicanalítico.
Já na psiquiatria da época de Freud a hipótese de uma causação orgânica para os transtornos mentais (organogênese), foi sugerida por Kraepelin como oposta e excludente a uma causação psíquica para estes transtornos (psicogênese).
Na tese de psiquiatria de Lacan, a psicogênese desempenhou uma função essencial na argumentação lacaniana, visando opor-se às teses organicistas, já muito influentes na época para explicar o fato psicótico.
Referindo-se à "personalidade" em suas relações com a psicose paranóica, Lacan elaborou a tese de que o conhecimento humano seria um "conhecimento paranóico", acentuando o fato deste ser sempre uma referência à verdade no que ela é alheia a si mesmo. Pouco depois, Lacan universalizaria suas conclusões aprendidas com a paranóia e as formularia através da teoria do estádio do espelho.
Assim, para Lacan (como para os gregos), a loucura e todo o conhecimento humano também teria sua origem no que é exterior ao sujeito, porém no caso da visão que Lacan tinha dela, à diferença dos gregos, este exterior não seria constituído pela vontade dos deuses, mas seria o que é exterior ao conhecimento que o sujeito tem de si mesmo, numa referência ao inconsciente. Posteriormente, Lacan, ao colocar o sujeito como decorrente da sua relação com o Outro, fato a que chamou de "alienação", tornou patente esta consideração do destino humano pensado em sua relação com a loucura, fazendo decorrer toda uma ética deste fato.
Em Jaspers o conceito de processo psíquico se opõe diretamente ao conceito de desenvolvimento da personalidade, que diferente da noção de processo, poderia ser expresso sempre através das relações de compreensão. Segundo Lacan, a noção de compreensão é um móbil da qual Jaspers fez o pivô de toda sua psicopatologia.
No texto: "De nossos antecedentes", Lacan referiu-se à sua trajetória como: médico psiquiatra, para depois desembocar na psicanálise. Lacan reconheceu em Clerambault seu único mestre em psiquiatria, quem: “com seu automatismo mental, com sua ideologia mecanicista de metáfora, por certo bastante criticável, parece-nos, em seus enfoques do texto subjetivo, mais próximo do que se pode construir de uma análise estrutural do que qualquer esforço clínico na psiquiatria francesa."
Reconhecendo a formação kraepeliana de Clerambault, Lacan admite que o caminho que o levou a Freud, foi o da "fidelidade ao invólucro formal do sintoma", mostrando com isso o lugar da clínica psiquiátrica no seu percurso.
A doutrina da loucura de Lacan
A psicose, definida como objeto-médico, surgiu como dialético a campo das neuroses, que, literalmente, quer dizer "degeneração dos nervos", definição que fala mais de uma etiologia do que de uma categoria nosográfica.
Existem várias convenções para se diagnosticar a psicose, entre elas a de Kraepelin, eminentemente evolutiva; a de Bleuler, psicanaliticamente influenciada; a do DSM-IV, pretensamente ateorética. Tentou-se reduzir a manifestação das psicoses a seu mínimo, como os estabelecidos por K. Schneider, com os sintomas de primeira ordem, ou por Kraepelin, com os fenômenos elementares.
Influenciado pela psiquiatria da época, que procurava um transtorno fundamental para as psicoses, Lacan tomou os fenômenos elementares e, pensando-os analiticamente, entendeu-os como fato de linguagem, elevando-os à categoria de paradigma para o entendimento da inserção do sujeito na ordem simbólica.
A presença de pelo menos um fenômeno elementar seria a condição suficiente e necessária para o diagnóstico de uma psicose. O fenômeno elementar, depois chamado por Lacan de experiência enigmática, é a exceção que comprova a regra, é a evidência mesma da estrutura. Com isso, Lacan transformou a indagação à psicose no fio condutor do seu ensino, e elevou a loucura ao status de reveladora da estrutura do sujeito, pois para ele o louco seria o único que poderia ser testemunha do real, visto que o neurótico só pode aceder ao real pelo simbólico.
A Psicanálise constituiu sua clínica partindo da Psiquiatria, porém estabelecendo uma especificidade própria. Esta especificidade se demonstra através do único meio que a psicanálise tem para a sua investigação, que são as palavras, pois tanto na neurose como na psicose, trata-se da estrutura da linguagem, ou melhor, da relação do sujeito com o significante.
A psicanálise descobriu o lugar prevalente da palavra na existência humana e afirma que a palavra é o eixo da existência, no sentido da palavra buscar o destino entre dois limites: o da loucura e o da morte.
Para mostrar "a causação essencial da loucura" , Lacan separou o delírio do engano e do déficit. Para Lacan a verdade condiciona em sua essência o fenômeno da loucura que é o fenômeno da significação. O fenômeno da loucura é inseparável da subjetividade “através do qual penso mostrar-lhes que ela faz o ser mesmo do homem" .
Na concepção estruturalista, o fenômeno psicótico situa-se no sistema semântico. Lacan sustenta que o "fenômeno da loucura não é separável do problema, significação para o ser em geral, isto é, da linguagem para o homem”.
Lacan resume sua posição sobre a loucura no parágrafo do texto “Formulações sobre a causalidade psíquica: Longe de a loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é virtualidade permanente de uma falha aberta na sua essência. Longe de ser um insulto para a liberdade, ela é sua mais fiel companheira, seguindo seu movimento como uma sombra. E o ser do homem, não somente poderia ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se, em si, não trouxesse a loucura como o limite da liberdade.”
Desde este ponto de vista, a liberdade, que se pretende construir desde a condição humana, tem seu limite na loucura, ou na palavra que pode levar o indivíduo a se matar.
Pretender curar a loucura como lugar limite, como questionamento do humano, não é demasiado diferente de se pretender expulsar a morte do horizonte da vida.
O ensino de Lacan propõe que tudo parte do significante. A psicose, tal qual a neurose, também é efeito desta estrutura (que recebeu o nome, em psicanálise, de Complexo de Édipo). A psicose, como a neurose, seria decorrente de um acidente ocorrido durante a elaboração do Complexo de Édipo, o qual teria por efeito a inserção, ou não, do sujeito na ordem simbólica.
Isto se daria devido ao fato de que o significante fundamental para a instauração da ordem simbólica, o significante do Nome-do-Pai, pudesse comparecer barrando o Desejo da Mãe. Isto pode não acontecer e esta seria, para Lacan, a causa da psicose.
O sujeito não acederia ao simbólico porque ficaria preso ao desejo materno, porque este não foi barrado pelo Nome-do-Pai que, por sua vez, estaria ausente devido ao fato de ter sido "foracluído".
A foraclusão (nome que Lacan deu a Verwerfung, um dos mecanismos de defesa do sujeito frente à angústia, descrito por Freud) seria um dos estilos do sujeito lidar com a falta, seria uma das operações psíquicas possíveis, entre outras, para se enfrentar o Real, outro nome da angústia.
O psicótico seria aquele que ao não se inserir na ordem simbólica, não faz laço social ou, dito no jargão lacaniano, está fora do discurso.
O simbólico decorre desse efeito da operação do Nome-do-Pai que, ao barrar o todo do prazer, metaforizado como o Desejo da Mãe, instaura a falta (castração), motor do desejo.
O psicótico, no ponto em que o Nome-do-Pai não está, não fica aberto à falta e neste lugar, ali, ele é todo, é completo, ele é só gozo, é sem desejo, realizando assim em ato o sem-sentido do seu destino.
O psicótico, segundo Lacan, é quem nos ensina do Real, pois este é o não simbolizado, é o gozo inútil desligado da alienação do sentido. O psicótico é o louco que, à diferença dos outros loucos, não se defende do real pelo simbólico e por isso não se aliena, como os outros, nas palavras.
O psicótico é o louco cujo simbólico não se separou do real, por isto, para ele, a palavra não mata a coisa e o gozo não está interdito. Ele se torna, assim, a testemunha cruel da não substituição do gozo pela linguagem e pelo seu triste destino, fala-nos da situação humana que é a de ser o eterno joguete entre a procura de uma completude que não existe, e a estupidez de um gozo que não serve para nada.
Direção do tratamento: louco, único homem livre
A clínica psiquiátrica, atualmente uma clínica da medicação, através de exames, escalas, estatísticas, transformou estes critérios em teorias etiológicas, e num jogo lógico, propõe modelos terapêuticos que se referem à presença ou ausência de determinados neurotransmissores.
Em Televisão o sentimento depressivo foi pensado por Lacan pelo viés freudiano da dor psíquica, variando desde uma referência ao budismo através da fórmula da "dor de existir", quanto como um afeto normal, que remete à falha da estrutura que obriga o sujeito ao dever de ser "todo" para o ideal, e o dever de "bem dizer" em sua relação com o gozo.
Lacan tratou a depressão como paixão da alma, tomando como referência Platão, Aristóteles e São Tomás, e com isso situou-a no campo da Ética, definindo-a como covardia moral, como falta moral, como pecado (no sentido spinoziano), o que quer dizer, em termos analíticos, que se trata de uma decisão sobre a perda.
A busca da completude perdida, Lacan chamou de Paixão do ser, que são paixões da relação com o Outro. A falta a ser determina a paixão da busca de completude no Outro. As paixões dão consistência ao Outro: o ideal no amor, o apagamento no ódio e o saber na ignorância.
A psicanálise não é um materialismo do significante, é uma Ética. A estrutura descreve uma combinatória, a Ética implica uma decisão.
Isto quer dizer que na experiência analítica não se trata só de mecanismos estruturais, trata-se de escolhas subjetivas que têm o modelo da escolha forçada.
Trata-se, como em todas análises, de terminar com os efeitos de fascinação da palavra para fazer surgir um dizer que deixe “a coisa” falar e inventar um saber do que não se pode dizer.
Para Lacan, o homem não é livre, mas garantido pelo simbólico. É nesse ponto que a liberdade se articula com a loucura.
A psicanálise mostra que o sujeito não é causa de si, a determinação do sujeito pelo Outro o aliena aos significantes, é em torno do Outro que o sujeito constitui suas fantasias.
A Ética da psicanálise é a Ética do Bem dizer que consiste em se aproximar de um saber que não se pode dizer, por isto a tristeza. A tristeza é um saber falido, do qual o sujeito é responsável.
A posição ética define a direção do tratamento na psicanálise tanto de psicóticos quanto de neuróticos ao não considerá-los como efeito de um distúrbio neurobiológico, posição esta que implica o analisante na sua responsabilidade pelos seus sintomas.
O louco é o verdadeiro homem livre, pois não precisa de outro, não precisa do semelhante para buscar a causa de seu desejo. Posição que não deve se confundir com a dos anti-psiquiatras que colocavam a loucura como ideal do sujeito humano.
Embora situando a loucura como limite da liberdade do homem, Lacan pergunta se este limite não é baseado num engano, que é a própria condição da existência humana. O sujeito é alienado ao Outro, e é separado do Outro por aquilo que constitui a sua causa: o objeto “a” causa do desejo. Nas operações de causação do sujeito, à causa significante da alienação se opõe a causa real da separação.
No texto "A ciência e a verdade" Lacan privilegia não mais a causa significante, mas o objeto “a” como causa real, fazendo parte do que estrutura as relações entre os seres humanos.
O louco é aquele que rejeita esta causalidade. Com a elaboração do conceito de objeto causa do desejo, Lacan acha uma nova fórmula da liberdade do psicótico: ele tem sua causa em seu bolso, ele é “causa sui”.
Dentro do determinismo da teoria psicanalítica, uma "margem de liberdade", de aquiescer ou recusar, de ser responsável de sua posição subjetiva, está suposta aos psicóticos e aos neuróticos.
De Aimée a Joyce: a evolução da doutrina das psicoses em Lacan
Como acontece em todas as disciplinas que operam significações, a psicanálise também está constantemente mudando os termos das suas. No caso de Lacan, sua percepção da psicose mudou constante e radicalmente.
O caso Aimeé foi investigado por Lacan na tese em psiquiatria com o rótulo de paranóia. Foi uma lo ucura de amor mortal por uma atriz de teatro que era quem ela queria ser. Amor então por si mesma, amor pelo ideal que a atriz representava e que, ao mesmo tempo, marcava o que ela, Aimée, não era.
Este caso marcou um momento do ensino de Lacan, em que a significação da loucura era procurar no outro a completude que lhe falta. A diferença que faz esta loucura ser adjetivada paranóica seria o fato de procurar esta completude de si no corpo do outro destruído, fazendo disto signo de união do seu próprio corpo.
O paranóico precisa de sua vítima, testemunha especular do seu despedaçamento e possuidor de uma completude que passaria a ele por roubá-la do outro.
Esta visão da constituição do psiquismo humano, precursora da teoria do estádio do espelho, leva em si o horror do ser humano mostrado como incompleto, buscando sempre o outro, como um vampiro, para ter o que julga lhe faltar e para ser só quando o outro já não é.
Schreber, o mesmo caso estudado por Freud, foi retomado por Lacan através dos efeitos dos "desfiladeiros" do significante, procurando nos meandros do simbólico o sentido do texto de Schreber,
Para Lacan, Gottilieb, o segundo nome de Daniel Schreber, que significa literalmente “amado por Deus, condicionou o delírio dele ser a mulher de Deus fecundado pelos raios do Sol-pai-deus”.
Isto fala da inexorabilidade da determinação simbólica que seria a responsável, com sua estrutura de linguagem, pela outra cena que determina o palco real de nossas vidas.
Pode-se dizer que o louco faz existir o impossível. Talvez a alusão de Lacan a Wittgenstein seja uma crítica a todo o movimento humano que pretenda instrumentar um único acesso à verdade que só poderia ser alcançado pelo delírio.
Talvez por isto também Lacan haveria dito de si mesmo, numa das conferências que realizou nos Estados Unidos em 1975, que ele próprio seria psicótico, acrescentando que a psicose seria um fato de rigor.
Finalmente, Lacan desenvolveu uma outra forma de abordar a loucura caracterizada por não ter se desencadeado clinicamente e ter sido evitada pela arte. Foi a referência que Lacan fez a James Joyce.
Por que ler Joyce? Para não se entender? Onde está a magia da sua arte que faz com que se ocupem dele “por mais de trezentos anos?”.
A obra de Joyce, ao subverter os parâmetros da organização pré-consciente, aproximar-nos-ia do funcionamento do processo primário, matéria-prima para o que seria significado como produção do psicótico?
Joyce exemplificou a idéia de uma estrutura psicótica, de alguém que poderia ter sido psicótico clinicamente, mas não desencadeou um surto psicótico. Segundo Lacan, uma estrutura psicótica determina-se pelos acidentes ocorridos durante a elaboração do Complexo de Édipo, durante a infância, porém o estado psicótico somente ocorre quando certas circunstâncias o desencadeiam.
Assim, um sujeito com uma estrutura psicótica poderia nunca desencadear uma crise. Já alguém sem uma estrutura psicótica nunca seria um "mesmo que quisesse”. O caso de Joyce ensina como uma estrutura psicótica poderia se manter estabilizada através de um mecanismo ao qual Lacan chamou de "suplência".
Joyce é a desilusão do gozo condicionado unicamente pelo sentido, nome do inferno, segundo suas razões, pois o sentido é um modo de gozo que reduz a potencialidade de outros gozos, produzindo uma limitação da língua e do dizer.
Na opinião de Lacan, a arte de Joyce é o que poderia libertar a literatura do sentido. E por que ele pode fazê-lo? Se, para Freud a literatura era apenas um tipo de sonho, "Finnegan's wake" é o despertar do sonho do sentido. Na sua escritura trata unicamente da matéria da letra, fazendo jogos de palavra que saem fora do terreno do chiste. Joyce escreve de uma maneira que realiza o simbólico, tirando a linguagem do seu campo específico, deixando do sentido apenas um vestígio, sempre como enigma.
A arte de Joyce é então o que Lacan chamou de seu sinthome, ou seja, seu gozo, condicionando o sentido como sintoma. Daí que sua Obra, mesmo que biográfica, menos vale pelo sentido do que pela letra.
Assim, Joyce, como um psicanalista, fez de seu texto um produtor de sintomas no leitor, fazendo emergir a verdade singular de cada sujeito, seu próprio sintoma.
Verdade tanto maior, por ser o sintoma a maneira pela qual cada um goza de seu inconsciente.
O psicótico, longe de uma exaltação romântica, como ocorreu na antipsiquiatria, foi com a psicanálise restituído à sua verdadeira função de arauto da condição humana, de porta voz do seu real. Também a psicanálise, à diferença de Foucault, não acusou a cultura como responsável pela sua causa, mas unicamente pela sua condição.
Esta implicação fundamental entre ser e loucura se declina em Lacan: a equivalência entre psicose e estrutura e a loucura como modo fundamental do falasser habitar alíngua.
Mais que tudo, a loucura revista pela psicanálise e particularmente por Lacan, operou um efeito de reordenamento ético, pois a loucura foi, e sempre será, pela afirmativa ou pela negativa, um questionamento global de tudo o que é humano e talvez seja a indagação mais profunda sobre a liberdade e o sentido da existência.