HYSTORIA - 2004

Existe uma psicanálise brasileira?
Márcio Peter de Souza Leite

Faz mais de cem anos uma jovem, que viria a ser conhecida como Ana O, procurou ajuda devido à tosse, paralisia, estrabismo, diplopia, perda da capacidade de falar a língua materna. Josef Breuer diagnosticou o caso como histeria, e junto a Sigmund Freud a submeteu a um tratamento psíquico, e apesar da gravidade dos sintomas, conseguiu-se a remissão deles.

Poucos anos depois, outra mulher, Emmy N, procurou Freud relatando depressão, insônia e movimentos convulsivos no rosto e no pescoço. O diagnóstico também foi de histeria e indicou-se o mesmo tratamento, resultando numa espetacular melhora.

Passados cem anos, um furor revisionista abateu-se sobre estes casos. Pesquisadores como Thornton, entre outros citados por Webster no livro “Why Freud was wrong?”, concluíram que Ana e Emmy não foram curadas.

Concluíram também que Freud e Breuer criaram etiologias especulativas, que somente foram aceitas devido ao estado subdesenvolvido da neurologia da época. Contestando o diagnóstico de histeria e a eficácia do tratamento realizado, Thorton sugere que os sintomas de Ana O seriam devidos a uma meningite tuberculosa. Da mesma maneira, foi retomado o caso de Emmy, denunciando-se que ela teria sido tratada sem sucesso, e que seu diagnóstico correto seria o síndrome de Tourette.

Ao negar as vivências traumáticas, relacionadas a aparição dos sintomas, no caso de Ana a morte do pai, e no caso de Emmy a morte do marido, os críticos anularam a idéia de defesa e desconsideram a existência de uma outra cena psíquica, noções que seriam o fundamento da psicanálise.

A crítica à eficácia dos tratamentos realizados por Freud, refletem o momento por que passa o pensamento contemporâneo, que considera o mental determinado unicamente pela atividade neuronal.

Esta forma de pensar, que já foi chamada de biopolítica, passou a dominar a razão contemporânea. É este pensamento que sustenta as críticas feitas à psicanálise como a de Henri Korn que afirma que a psicanálise não passa de um xamanismo e que falta uma teoria, ou a crítica de Jean Pierre Changeux, que pretende reduzir o pensamento a uma máquina cerebral, ou a crítica do cientista político Francis Fukuyama que reivindica uma teoria da sociedade baseada na ciência natural.

Mas nem todos são contra a psicanálise. Um dos mais brilhantes cientistas da atualidade, Gerald Edelman, afirma no livro “A biologia da consciência”, que o inconsciente continua sendo uma noção indispensável para a compreensão da vida mental. A teoria das categorizações de Edelman, que mostra que o cérebro é constituído após o nascimento, através da relação da mãe com o bebê, demonstraria, do ponto de vista da neurologia, a noção freudiana de idenfenção.

Descoberta que serviu a uma tentativa de fusão da psicanálise com a neurociência, ao que se chamou neuropsicanálise.

Então qual é a psicanálise atual? É a psicanálise em que o cérebro é a condição do inconsciente? Ou é a psicanálise, que diz que a linguagem é a condição do inconsciente?

Qual a sua finalidade de uma análise? Somente a melhora os sintomas? A psicanálise adapta o sujeito ao mundo? Ou a psicanálise busca a verdade de cada um? As respostas dependem da interpretação que se dá à experiência inaugurada por Freud.

Uma análise é feita no espírito do seu tempo. No espírito do tempo atual a sociedade parou de viver sob o reinado do pai, reinado dos ideais, o que foi caracterizado por Lyotard como pós-moderno. O pós-moderno se mostra na desestruturação dos saberes estabelecidos, produzindo laços sociais desarrumados, e uma individuação extremada.

O efeito disto na clinica contemporânea, é a menor efetividade da metáfora paterna, e uma pluralização do discurso do mestre, o que acarreta um sujeito sem referência. Isto corresponde ao fenômeno moderno da desaparição dos valores. Só há uma coisa que vale: a lei do mercado. O mestre contemporâneo e o mercado.

Lacan usou a expressão discurso do capitalista para apontar o espírito do tempo atual. O discurso do capitalista mostra a modificação do discurso do amo efetuada pela ciência. Dentro deste contexto pode-se falar num sintoma moderno no qual o sujeito procura sua completude no consumo insaciável de objetos. Este modo de complementação do sujeito alienando-o no consumo, fez Lacan dizer que discurso do capitalista foraclui a castração.

Como seria uma Ana O pós-moderna? Será que seu estrabismo seria convergente diante das vitrines dos shoppings? Será que sua paralisia desapareceria nas discotecas? Será que ela usaria um piercing na língua materna?

Pelo fato o discurso analítico reintroduzir a castração, Lacan coloca a psicanálise como a única saída do capitalismo. Ainda hoje, portanto, a indicação de tratamento para Ana O, mesmo pós-moderna, continuaria sendo a psicanálise.

E se a Ana O, ou Emmy, além de pós-modernas, fossem brasileiras?

Haveria um único discurso que diga toda a verdade da psicanálise? ou ela difere conforme os lugares em que existe? É possível uma globalização da psicanálise?

Jacques Derrida inventou o termo geopsicanálise para afirmar que existe uma geografia da psicanálise. Qual o lugar do Brasil nesta geografia?

Existiria uma psicanálise brasileira? Miriam Chnaiderman no ensaio “Existe uma psicanálise brasileira?”, diz: “Afirmar a existência de uma psicanálise brasileira não é folclorizar. E defender que existe psicanálise inglesa, francesa, nigeriana... é defender que a psicanálise é sempre atravessada pela história”.

Ao que acrescentaríamos, levando em conta a crítica de Lacan à história: trata-se de linguagem.

A psicanálise brasileira trabalha com o inconsciente, e dispõe-se a descobri-lo a cada momento e em cada contexto, como toda psicanálise de qualquer lugar.

É esta a proposta da Escola. A Escola ao privilegiar o depoimento analítico, no dispositivo do passe, permite recolher o próprio de cada um.

O uso do passe como instrumento, permite ultrapassar o que foi nomeado como “pedagogia da submissão” por Cecília Coimbra no livro “Os guardiões da ordem”, e evitar que a psicanálise seja ensinada como uma teoria abstrata, praticada por analistas abstratos.

Isto implica na existência de uma subjetividade brasileira? No livro “O que é ser brasileiro?”, Carmen Backes cita Charles Melman que a partir da escuta de pacientes brasileiros, afirma que esses sujeitos apresentam uma desagregação da ordem simbólica.

Concordando com a tese de Melmam, Calligaris, também citado no livro de Backes, acrescenta que esta falha do simbólico deve-se a que o colono explora a nova terra como um corpo (da mãe) não proibido.

O colono, segundo a definição de Calligaris, é quem abandonou língua materna, e procura na nova terra, um nome. Como a função paterna é interditar, ao não ocorrer isso, o colono se veria frente a uma insuficiência da função paterna. Segundo esses autores a insuficiência da função paterna é a matriz da subjetividade brasileira.

Ainda segundo o autor citado, a conseqüência da falta da função paterna produziria o que seria a característica do brasileiro que é não levar a sério as instâncias simbólicas, produzindo a corrupção, o jeitinho, a malandragem, o desperdício. A psicanálise opõe-se a essa universalização da clínica, pois valoriza a clínica do particular, que busca a verdade de cada um, no um a um.

 

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