HYSTORIA - 1985

Paulicéia desbravada
(Márcio Peter de Souza Leite, Oscar Cesarotto e Geraldino A. Ferreira Neto)



Todos os homens são mortais.
Os analistas são seres humanos... também,
e costumam morrer, os mais notáveis, no mês de setembro.

 

Tudo começou com Freud, exilado em Londres nos primórdios da Segunda Guerra, que passou à posteridade no dia 23 de setembro de 1939. O argentino Oscar Masotta, introdutor das idéias de Lacan na América do Sul, foi outro que morreu longe de sua terra, aos 13 de setembro de 1979, em Barcelona. A 11 de setembro de 1981, foi a vez de Jacques Lacan, em Paris, sua cidade natal. Por último, Durval Marcondes, responsável pela implantação da psicanálise em nosso país, que faleceu, no dia 3 de setembro de 1982, nesta cidade.

Estes quatro personagens, cada um a sua maneira, transcenderam a finitude da vida deixando seus nomes no registro da história; significantes que, como pontos de uma mesma linha, assinalam a direção de um dos meridianos da psicanálise que atravessa São Paulo há mais de uma década (1).

A entrada do pensamento de Freud aconteceu cedo nestas terras, no início dos anos vinte. Aqui foi fundada, em 1927, a primeira Sociedade Psicanalítica do continente. Logo depois, nos anos que se seguiram e, principalmente, no pós-guerra, a psicanálise instalou-se em vários países americanos, com relativa sorte. Enquanto isso, na França, ao longo de trinta anos, Lacan realizava uma tarefa teórica de proporções inauditas depois de Freud.

A psicanálise toda foi revirada por Lacan. A partir de uma leitura séria da obra freudiana, considerada como fonte de referência, tudo foi colocado em causa para definir, de forma consistente, sua lógica e fundamentos. A prática clínica, simultaneamente questionada, levou a sua sistematização, com o esclarecimento das molas mestras de sua eficácia simbólica.

As consequências de seu ensino, em ondas expansivas, se fizeram sentir pelo mundo afora, permeando as diversas levas de psicanalistas. Se algum dia sua difusão foi restrita, não o é hoje, e o discurso de Lacan, embora pouco compreendido, ganhou espaço com o correr do tempo.

Na Argentina, por volta de 1964, Masotta conduzia o leitor hispano-falante pelos meandros da “coisa lacaniana”. Encontrando nos textos de Freud as articulações de Lacan, Masotta elaborou um programa de estudos psicanalíticos de reconhecido prestígio e larga utilização, inclusive no Brasil.

Quando Lacan, no final da vida, veio pela primeira vez ao Terceiro Mundo (2), fez uma distinção entre seus seguidores. Por um lado, aqueles que o tiveram “ao vivo” como mestre, ao alcance dos olhos e dos ouvidos, seus discípulos. Por outro, aqueles cuja vinculação com ele passava pela mediação da escrita, seus leitores. Em particular, os que residem abaixo do Equador, os lacano-americanos. A transmissão do discurso analítico, no que tem a ver com sua teoria, atravessa as letras dos textos. Até os discípulos diretos de Freud deviam ler seus livros para se informar do que este pensava. Daí que a leitura seja uma das vias da formação do analista, por veicular um saber que, se não pudesse ser codificado, seria inefável. O que não é o caso da psicanálise, cuja condição da existência é a possibilidade de dar conta metodicamente do seu funcionamento.

“Retorno a Freud” é a denominação genérica do movimento deflagrado por Lacan, responsável pela revisão e reformulação da ciência do inconsciente. Seus efeitos se fazem sentir atualmente nas diversas articulações do campo freudiano. Poucos anos depois de sua morte, esta etapa da história da psicanálise merece ser chamada, com justiça, de “pós-lacaniana”.


Entradas e bandeiras

A interpretação não é apenas um capítulo da teoria psicanalítica. Mais do que isso, é a prática viva desta teoria. Fora do contexto da clínica e da referência à fala de um sujeito, utilizada em outros âmbitos, corre o risco de se transformar em ato de poder. Aplicada na construção de uma história, o exercício desse poder acabaria se manifestando ao estabelecer um sentido unívoco.

Entretanto, se uma interpretação precipita algum sentido, seja este qual for, a boa interpretação deveria propiciar sempre muitos. Por sua vez, o psicanalista, artífice da palavra, sabe que a reconstituição de um percurso significante é passível de leituras distintas que abram outras perspectivas que desconhece.

Ossos do ofício, noblesse oblige. Quem interpreta, no presente caso, foi e continua sendo protagonista, o que exclui qualquer neutralidade; por vezes, antagonista, o que inclui não poucas responsabilidades. Como, por exemplo, definir de que lugar se está falando, e o que autoriza a fazê-lo. Invocamos aqui uma trajetória constante que, através dos anos, nos compromete duplamente com a psicanálise: como prática clínica, e como discurso a ser disseminado. A seguir, então, uma auto-hétero-biografia.

Nos dez anos de história do movimento lacaniano em São Paulo, nada é mais evidente que as repetidas tentativas de se criar uma instituição forte, capaz de nuclear os analistas identificados com esta tendência. Igualmente evidentes, também, as tentativas de se negar a busca de tal instituição. Dos primórdios até agora, se dança na ambiguidade do mal necessário, ao ritmo dos reconhecimentos. Foi em 1980, por ocasião do I Encontro do Campo Freudiano, em Caracas, Venezuela.

Exclusões, conchavos, entreveros e desenlaces, amores e ódios. Não poderia ter sido diferente: o inconsciente, fundamento da transmissão da psicanálise, operando pelo rodeio da transferência, amarra conflitivamente o saber e a paixão.

Daí que nas repetições se revele uma insistência que não é outra que a do desejo, deixando marcas e traços, material a ser analisado.

Os lacano-paulistas, como qualquer massa ou grupo humano, tenderam para a união em torno de um ideal do eu. Feliz ou infelizmente, sempre encontraram demasiado “eu” para pouco “Ideal”. Até aqui, nada de novo sob o sol: lutas de prestígio e rivalidades narcísicas são apenas mais uma constatação da estrutura paranóica do conhecimento, o limite agressivo do laço social que une e confronta. Vejamos, pois, de que maneira o discurso de Lacan foi se enraizando em São Paulo, e como se mantém até hoje.

O Centro de Estudos Freudianos, fundado em 1975, foi a locomotiva de uma viagem psicanalítica nacional, realizando encontros em várias capitais e cidades do país. Com a intenção do agenciamento do ensino de Lacan em todo o Brasil, suas diversas sedes regionais relacionavam-se a um poder central e decisivo, federativamente. Era negado às filiais autonomia e livre arbítrio, sem que se pudesse questionar a hierarquia imposta.

Quando se pensam as origens do CEF, surge a indagação sobre o que representa o peso da herança religiosa, em geral, e em particular, a jesuítica, para o destino dos paulistas. Questão subjacente de grande importância, nunca suficientemente esclarecida. Pois, numa cidade de marcada tradição católica como São Paulo, não se pode desconhecer esta paternidade. Que dizer, então, do surgimento do lacanismo numa esfera ligada à Igreja? Se, para Lacan, religião é sinónimo de sentido, que sentido dar à psicanálise vista desde a religião?

Entretanto, numa outra perspectiva, cabe perguntar o que significa ser pioneiro? Um primeiro ato, embora essencial, pode se esgotar em si mesmo se não continuar seus propósitos através de outros, coerentemente. Se as consequências da novidade que se introduz são negligenciadas, uma fundação fica reduzida a um gesto inicial, oportunista pelas circunstâncias.

O CEF, na sua expressão paulista, tinha um projeto ambicioso. Furou quando o investimento libidinal passou dos estudos aos estatutos. Mas teve um mérito “Inaugural”. Dele participaram membros da Escola Freudiana de Paris. A PUC de Campinas, ou melhor, o seu curso de pós-graduação em Psicologia Clínica, foi a proveta onde se deu a concepção. Os que testamunharam o processo comprovaram como o discurso analítico era incompatível e inverso ao discurso do mestre, sempre tentador para os que se fazem de seus secretos agentes.

O tema da formação, inseparável da finalidade de uma instituição que se diz psicanalítica, foi o ponto de discórdia e dissidência: um grupo, em 1978, se afastou em fila indiana para fundar, não mais que de repente, uma escola freudiana.

Estava em jogo o problema da autorização do analista que, se bem depende dele próprio, é através dos outros e de seu reconhecimento que se obtém a confirmação. Numa instituição, esta travessia passa por graus diversos, lugares e tempos distos. A alteridade, como ética deste processo, regula os movimentos. Naquela ocasião, foi também ali onde se deu o curto-circuito.

Desta malfadada experiência ficou que uma rosa nem sempre é uma rosa: a coisa é reunir analistas, outra é formá-los e, pior, garanti-los. Sequência que implica numa ordem, ou seja, momentos diferentes. Não se compreendeu que era necessário ver antes de concluir.

A EFSP foi uma precipitação temporal, uma ejaculação precoce que poderia ter vingado, não fossem as querelas intestinais e, por sorte, a coincidência da dissolução da Escola de Lacan em 1980, que quebraram a especularidade e a ilusão egalómana. Foi efémera sua trajetória. Fica a pontuação de que a escolha do nome Escola Freudiana, representara uma tentativa de identificação imaginária com a instituição de Lacan.

Passados 5 anos, se pode concluir que a iniciativa visava abrir um espaço de liberdade fora da hierarquia que religiosamente congregava os integrantes do CEF. Foi, porém, sair de uma para entrar em outra... Será que toda instituição precisa de um Ur-analista, modelo ideal que lidere seus fiéis? Este questionamento abalou definitivamente as aspirações dos que se queriam como garantia da EFSP.

A partir de então, a dispersão. Ao ficar claro que uma organização analítica baseada num esquema gradativo-burocrático é uma armadilha que mais enforca do que expande a verdade do inconsciente, não sobra senão inventar novos modelos de agrupação. A “política do grão de areia”, proposta por Lacan depois da dissolução, tem a ver, destarte, com uma aposta cujo resultado se sabe por antecipação: os analistas, ao sabor dos ventos, se reúnem quando um objetivo comum os aproxima, e se separam quando aquilo já deu tudo o que podia dar.

Segundo a lógica coletiva da constituição dos grupos, bastam três elementos para viabilizar uma estrutura consistente (tres faciunt collegium). Tal foi o caso dos signatários deste artigo. Surgiu assim, em 1980, a Clínica Freudiana, um lugar onde se exerce a psicanálise, se teoriza sobre a prática e se estuda Freud e Lacan. Apelidada de “instituição não institucionalizada”, no compromisso com o discurso analítico, mantém contato com os que se interessam pela causa freudiana e seus efeitos lacanianos.

Não é novidade nenhuma dizer que estes interesses muitas vezes se correspondem apenas no rótulo, pois com a mesma etiqueta, frequentemente, se acumulam práticas, leituras e consequências diferentes, até mesmo inconciliáveis. Qual seria o limite das coincidências? O mesmo que suporta as diferenças? Em outras palavras, existiria uma “verdadeira leitura de Lacan”?

Mais um esforço de veicular o ensino de Lacan, em 1982, foi a criação da Biblioteca Freudiana Brasileira, vinculada à Escola da Causa Freudiana de Paris, que realiza periodicamente eventos internacionais, e se caracteriza por sua organização empresarial.

Para o analista, um lugar que fosse uma tribuna para o discurso analítico parecia uma idéia sedutora. Porém, quando os interlocutores se resumem a um único grupo politicamente coeso em torno de questões de direitos autorais ou prestígios de contiguidade, ou mesmo novas versões e reprises do que Lacan disse, essa tribuna pode se transformar, não num lugar livre para a palavra, mas tão-só num veículo de subestimação da produção própria, e um incentivo ao consumo do “pret-à-porter” oficioso.

Na história do lacanismo em São Paulo, contamos também com a participação dos analistas-viajantes ou itinerantes, vindos de outras latitudes, missionários de Paris ou Buenos Aíres, convidados para ilustrar os paulistas em rápidas passagens, nem sempre satisfatórias. Como toda demanda de conhecimento é, em definitivo, uma demanda de domínio, se o que se quer do outro é a revelação de um saber pronto e elaborado, via de regra se obtém menos do que se espera.

A partir de certo momento, tornou-se inevitável dímensionar a transmissão do ensino lacaniano em função da nossa realidade. Os parâmetros do possível correspondem ao que se faz aqui, e o que se diz acolá pode não ser pertinente. Um exemplo disto, a reprodução imaginária, nestas terras do pau-brasil, do pau entre as diversas facções que, na França, disputam a partilha do legado de Lacan. Afinal, no campo do simbólico, ninguém é dono de nada. Palavras ditas, o vento as leva, e querer se apropriar de Lacan como um bem exclusivo, querer administrar um saber que é do inconsciente, além de ridículo, mostra como, até na psicanálise, “business as always” seduz mais de um.

Então, mais uma vez. Não há lance de dados que suprima o acaso; em mais uma chance ao acaso, os paulacanos tentaram, no ano de graça de 1985, se juntar para mancomuncar suas solidões sob a égide do projeto comum. Denominou-se “0 ponto” a pretensão de reunir todos os que em São Paulo assumiam abertamente uma vinculação com Lacan. Um pontilhado de boas intenções acompanhava a oferta. Solidários e não mais separados, o esforço compensaria: uma CUL (Central Única Lacaniana) canalizaria e multiplicaria os efeitos de transmissão.

Por melhor que fosse a pontaria, o alvo se perdeu de vista. Desapontados, os analistas participantes perceberam, mais uma vez, que sua união não era, de jeito nenhum, ponto pacífico. Houve a sugestão de se criar pequenos grupos de estudo e discussão, que na França são chamados de “cartéis”. Não deu certo. Pudera! Acostumados como estávamos aos quartéis...


Pauleira

No Brasil de São Paulo, no tocante à psicanálise de inspiração lacaniana, repetem-se ainda modelos importados. Na terra dos bandeirantes, não basta a insígnia de Lacan na bandeira, é preciso desbravar. Sem dúvida, a geografia é o destino: não dá para chegar ao Tietê pelo Sena.

Non ducor, duco é o dístico do brasão desta cidade, uma explícita rejeição da passividade. Embora isto seja dito numa língua meter e morta.

O analista, na cidade, leva a marca e o estilo da cultura desta. Assim, virá sempre à lembrança dos analistas paulistas, além da herança de uma colonização jesuítíca, a eterna aporia colocada pelo apóstolo invocado. nestas bandas, da indissociabilidade entre lei e desejo.

Não sou conduzido, conduzo. Ética emblemática, que impõe como dever a negativa a qualquer enquadre sustentado numa hierarquia alienante.

Assim, a sequência dos capítulos que constituem a saga da psicanálise paulista forma uma série, produzindo a possibilidade de mais de um “après-coup”, só depois significativo. Os decênios sempre convidaram a este tipo de reflexão.

A história também é o destino, com todas suas nuanças. Quando hoje seja ontem, será amanhã... Tem se passado dez anos da primeira vez que Lacan foi mencionado publicamente em São Paulo. No percurso dos tropeços, desencontros, investimentos e reviravoltas, algumas palavras ficam como restos fossilizados. Estudos, escola, clínica, biblioteca: estes significantes, qualificados de freudianos, indicam a direção teórica que Lacan imprimiu à psicanálise moderna. No entanto, nesta década, a formação dos analistas lacanianos não encontrou aqui um marco institucional adequado que gratificasse tal objetivo.

Talvez nem seja possível, e a idéia da instituição, como foi pensada até agora, não passe de uma miragem. A saída, provavelmente, seria a invenção de algo novo, apropriado às circunstâncias locais, que superasse os obstáculos e os interesses pessoais.

Antes disto, porém, convém refletir se a falta de coordenadas formais para a transmissão do ensino de Lacan é um entrave ou um avanço. Quem sabe, daqui a dez anos, a história seja outra. Por enquanto, hic et nunc, a realidade se impõe à ficção.

 

topo
voltar ao topo