HYSTORIA - 1979

A década de 1970 e o movimento lacaniano no Brasil
(Eliana Araújo Nogueira do Vale, in "Os rumos da psicanálise no Brasil - Um estudo sobre a transmissão psicanalítica", ed. Escuta, 2003)



Introdução

No início da década de 1970, começam a pulsar por aqui os primeiros focos do movimento psicanalítico de inspiração lacaniana, inicialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Conta a pioneira lacaniana Betty Milan que ouviu em Lacan "pela primeira vez em 1968, numa reunião de intelectuais paulistas de esquerda" (Milan, p. 1). Ainda segundo ela, logo após, um grupo de psicanalistas, juntamente com a filósofa Marilena Chauí, passou a se reunir na casa de Regina Chnaiderman para ler textos de Lacan, ou ligados à sua linha teórica.

Segundo Milan, dois aspectos em Lacan favoreciam uma aproximação com o Brasil: a valorização do pensamento francês em nossa cultura, do qual a fundação da USP em 1930 é emblemática, e seu libelo contra o autoritarismo da IPA - em especial com relação à seleção e formação de candidatos - que na década de 1960 ficava associado aqui ao autoritarismo do governo militar. De nossa parte, acrescentemos que fervilhava nessa época um movimento contracultural mundial, que pregava acima de tudo a liberdade, e questionava todos es valores estabelecidos. O Brasil, embora amordaçado pela ditadura, não foi exceção.

Em 1973, Betty Milan foi para Paris, com a finalidade de se analisar com Lacan. Lá, conheceu o carioca Magno Machado Dias, que também se analisava no divã lacaniano.


Rio de Janeiro

A partir de 1971, no Rio de Janeiro, Magno Machado Dias começou a difundir as teorias lacanianas, inicialmente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e logo em seguida nas Faculdades Integradas Estácio de Sá. Formaram-se, assim, alguns grupos de estudo.

Além disso, a visão lacaniana sobre linguagem e pensamento começava a ser divulgada por meio de publicações: o periódico Lugar, após o sétimo número, tornou-se uma publicação freudo-lacaniana e, a partir de 1973, Magno começou a dirigir a coleção Semeion, na mesma linha teórica.

Em 1975, Magno e Betty Milan fundaram o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, que foi registrado como Associação Cultural. Nessa época, Betty Milan também traduziu o Seminário I, de Lacan, publicado pela Editora Zahar em 1979.

Após uma tentativa fracassada da implantação de um curso superior livre de psicanálise nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, cuja proposta era oferecer uma formação no campo de conhecimento freudiano (e não uma formação de analista), Magno rompeu com a direção das Faculdades e foi para Paris. Naquele momento, diante dos obstáculos constituídos pela oposição às sociedades oficiais e pela ruptura com a Universidade, os lacanianos procuravam a imprensa como meio alternativo de divulgação da palavra de Lacan.

De volta ao Brasil, Magno organizaria, em 1979, no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, um centro de estudos com o objetivo de oferecer uma formação em psicanálise. Essa formação, esclareciam os organizadores do centro, não seria equivalente à formação de psicanalista, embora fosse uma parte da mesma, e nem de uso exclusivo de psicanalistas. Ela se daria por meio de grupos de estudo, seminários, sessões clínicas, jornadas, simpósios e congressos.

Em 1983, preocupados com o "afrouxamento generalizado com o compromisso" reinante nas instituições tradicionais, inclusive na Universidade, o Colégio cria o Instituto Jacques Lacan, cuja missão era "trabalhar o saber constituído com a teoria psicanalítica". (Silveira Jr., 1985, p. 217)

Esse momento parece ter sido um divisor de águas na orientação teórica do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, em que seus organizadores acabaram assumindo como necessária uma "hierarquização de lugares". Reorganizou-se, então, o curso de formação em quatro níveis, a saber: curso básico, suplementar, mestrado e doutorado. Era de novo a psicanálise buscando legitimação por meio de um esquema universitário - observe-se o nome dos "níveis"!

Ainda em 1983, juntamente com os Colégios Freudianos de Vitória e de Brasília (esse último então recém-criado), o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro fundou a Causa Freudiana do Brasil, que deveria ter um caráter "congressual", e pretendia ser a "primeira associação psicanalítica do Brasil” · a reunir associações brasileiras de inspiração lacaniana; representava, além disso, a expressão de um desejo de não se submeter a "colonialismos" estrangeiros e manter uma psicanálise com autonomia nacional (cf. Manifesto de 20/7/85).


São
Paulo

Paralelamente aos passos de Magno no Rio de Janeiro, surgia em São Paulo um outro foco lacaniano.

Em 16 de julho de 1975, Jacques Laberge, do Recife, Durval Checchinato, de Campinas, e Luiz Carlos Nogueira, de São Paulo, reuniram-se na casa do último, e decidiram pela realização de um primeiro Encontro Nacional, com a intenção de fundar um movimento a partir das concepções psicanalíticas de Jacques Lacan.

Em decorrência, realizou-se, em 4 de outubro de 1975, o I Encontro Nacional do Centro de Estudos Freudianos (CEF), como haviam se nomeado. Na manhã daquele dia, reuniu-se um grupo liderado por Jacques Laberge (Recife), Durval Checchinato (Campinas), Nogueira (São Paulo), Ivan Correa (Recife) e Nina Diesenbruck (São Paulo), que decidiu divulgar sua intenção de dar continuidade à proposta de trabalho lacaniana. Na mesma data, os organizadores promoveram uma outra reunião, à qual estiveram presentes cerca de 20 pessoas, em que foram debatidos alguns trabalhos inspirados na obra de Lacan.

A partir desse encontro, formaram-se alguns grupos locais em São Paulo, em Recife, em Campinas e em Curitiba. Logo, pessoas de outros Estados começaram a participar dos Encontros Nacionais que se realizaram, a princípio, anualmente e, depois, bianualmente.

Ao III Encontro compareceu Magno, do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, e chegou-se a falar na possibilidade de uma fusão dos dois movimentos, que afinal não se deu.

Dada a formalização crescente dos grupos regionais, a partir do IV Encontro, os membros dos Centros de Estudos Freudianos começaram a se manifestar com relação à institucionalização e, no VII Encontro, em 1978, foram estabelecidos seus estatutos nacionais, propondo-se que os centros regionais tivessem estatutos próprios. (Desde sua formação, o CEF contou com centros regionais em São Paulo, Recife, Salvador, Porto Alegre, Brasília, Campinas, Curitiba e Natal).

No mesmo ano de 1978, foi lançado o livro Escritos, de Lacan, pela Editora Perspectiva, em São Paulo. Consistia na tradução de parte do livro homônimo editado pela Seuil em 1966, em Paris. A tradutora foi Inês Oseki-Dupré, com revisão técnica de Regina Chnaiderman e Miriam Chnaiderman.

No XI Encontro Nacional do Centro de Estudos Freudianos, em julho de 1980, foi proposto pela assembléia geral o objetivo de "estudar o inconsciente freudiano relido por Lacan e a constituir-se como lugar de efetivação e de reconhecimento da prática psicanalítica" (cf. Dantas, 1980, p. 1). Essa proposta deveria ser interpretada por cada grupo regional com total autonomia, de acordo com sua realidade e possibilidades locais.

Em 1976, Alduísio Moreira de Souza voltava da França para o Brasil. Ele chegara a Paris por uma rota de fuga pela América Latina, perseguido pela ditadura militar brasileira em função de sua militância de esquerda. Fizera sua formação psicanalítica lacaniana na Escola Freudiana de Paris entre os anos de 1973-5, tendo estudado com Erik Laurent, Erik Porge, Solange Faladé e Charles Melman, estabelecendo com este último uma relação mais próxima. Analisou-se com Anne-Lise Stern e, a convite do psicanalista e neurologista Jean Bergès, trabalhou no Hospital Henri-Rousselle, participando ainda de inúmeras atividades no meio psicanalítico e na vida cultural de Paris.

Ao chegar ao Brasil, Alduísio constatou que os estudiosos lacanianos dispunham de muito poucos textos de autoria de Lacan, e sobre o mesmo - ele menciona a existência de dois únicos exemplares do livro Introdução a Lacan, de Anika Lemaire, num primeiro momento (em 1978, como já mencionamos, seria publicado pela Perspectiva os Escritos; em 1979, o Seminário I, de Lacan, com tradução de Betty Milan, pela Zahar; no mesmo ano sairia o livro de Lemaire, publicado pela Campus, Rio de Janeiro, com tradução de Durval Checchinato).

Uma das dificuldades de acesso aos textos de Lacan, bem como sua divulgação, decorria do fato de a maior parte de sua obra ser constituída por seminários, e uma parte bem menor por escritos. Os seminários eram gravados e transcritos por seus discípulos, e sua divulgação se fazia de modo informal, num círculo mais ou menos restrito. Alduísio tivera acesso, em Paris, à biblioteca de Ariane Trebillon, amiga de Lacan, e possuía assim as cópias dos seminários, às quais se dispôs a dar livre acesso aos interessados aqui no Brasil. Sua atitude era inusitada, uma vez que os raros textos existentes eram de uso de muito poucos, e guardados ciumentamente pelos "proprietários". (Ainda hoje, o número dos seminários traduzidos e publicados no Brasil é inexpressivo em relação à totalidade de sua obra, em função da política de publicação estabelecida pelos herdeiros de Lacan.).

Radicando-se em São Paulo, Alduísio aproximou-se inicialmente de Luís Carlos Nogueira, um dos fundadores do CEF, que foi também diretor do departamento de psicologia clínica do Instituto de Psicologia da USP. Além disso, desenvolveu uma intensa atividade independente, proferindo conferências e seminários e realizando atividades clínicas. Aproximou-se, ainda, de outros psicanalistas paulistas, entre os quais Regina Chnaiderman, Amazonas Alves de Lima, Fábio Herrmann e - ele mesmo! - Durval Marcondes, promovendo o contato de alguns deles com os lacanianos em Paris. Estabeleceu contato também com os argentinos radicados em São Paulo, entre eles Norberto Ferreira, Raúl Sciarretta (filósofo) e Hermàn Garcia, que tinham uma formação intelectual de peso.

Num momento em que o movimento lacaniano começava a ganhar importância mundial, Alain Grosrichard, jovem e brilhante psicanalista francês ligado a Lacan, foi encarregado de organizar a Reunião de Caracas. Sua intenção, conforme manifestou a Alduísio, era "iniciar a organização do movimento lacaniano na América Latina", e para isso pedia a colaboração desse último. Alduísio manifestou seu estranhamento, uma vez que no Brasil e na Argentina tal movimento existia há vários anos, sendo que no Brasil sua organização já era bastante estruturada. Curiosamente, Grosrichard colocou-se em posição de negar essa realidade, numa postura que entendemos ser a de um colonizador estrangeiro e, nesses termos, sua proposta foi recusada por Alduísio.

Em 1983, Alduísio organizou a primeira vinda de Charles Melman ao Brasil e, juntamente com Luís Carlos Nogueira, promoveu uma série de atividades para psicanalistas e outras para o público em geral. Embora Melman fosse então desconhecido do público brasileiro, sua vinda despertou um vivo interesse, havendo concorrido às suas conferências mais de 2.000 pessoas.

Indispondo-se com Luís Carlos Nogueira, Alduísio afastou-se também do CEF e, juntamente com Oscar Cesarotto, Graciela Rozenthal, Márcio Peter de Souza, Geraldino Ferreira e outros, fundou a Escola Freudiana de São Paulo, que teve duração aproximada de seis anos.

Em 1984, Alduísio mudou-se para Porto Alegre, mas manteve atividades em São Paulo por mais alguns anos. Em 1985, promoveu a segunda vinda de Melman ao Brasil, com eventos em São Paulo, Porto Alegre e Salvador. Com Melman vieram, ainda, Jean Bergès, Contardo Calligaris, Christiane Rabant-Lacôte e Marcel Czermack.

Em 1986, Alduísio, juntamente com Alfredo Jerusalinsky, Aurélio de Souza e outros, fundou a Cooperativa Cultural Jacques Lacan em Porto Alegre, com apoio em São Paulo, Salvador e, posteriormente, em Paris. Embora tenha durado apenas um ano e dois meses, a Cooperativa teve uma produção significativa. Em 1987, promoveu a Segunda Semana de Atividades Psicanalíticas, que incluiu a terceira vinda dos franceses ligados a Melman ao Brasil. Realizou seminários e grupos de estudo, promoveu atividades culturais com convidados do porte de Contardo Calligaris, Ernildo Stein e Raúl Sciarretta, e criou a revista Che Vuoi? Psicanálise e Cultura, da qual foram publicados três números, com artigos de autores brasileiros e traduções de autores franceses.

Após a dissolução da Cooperativa Cultural, Alduísio criou o grupo Che Vuoi? Psicanálise e Cultura, com bases em Porto Alegre e São Paulo, que lançou um último número da revista. Em seguida, o Che Vuoi? criou o jornal de mesmo nome, distribuído gratuitamente de 1987 a 1989, mantendo a mesma linha editorial da revista. Promoveu, ainda, seminários, grupos de estudo e saraus culturais.

No final de 1989, foi criada a Appoa - Associação Psicanalítica de Porto Alegre, que fundia os grupos de Alduísio Moreira de Souza, Alfredo Jerusalinsky, Contardo Calligaris, do CEF, da Maiêutica e de outros grupos menores, desta vez com uma proposta mais definida de formação de analistas.

A Appoa permanece até hoje, mas Alduísio desligou-se dela em 1991, para continuar sua clínica e seu ensino de forma privada. Em 1997, fundou a Casa de Cultura Guimarães Rosa e, a partir de 2001, fez suas primeiras incursões oficiais na literatura, publicando dois livros, um dos quais premiado em 2002 pela crítica literária de Porto Alegre (entrevista com Alduísio Moreira de Souza, 18/12/2002).


Os lacanianos de origem argentina

Além dos grupos lacanianos pioneiros mencionados, um outro importante vetor no movimento lacaniano foi constituído por psicanalistas argentinos que chegaram ao Brasil no final da década de 1970, fugidos da perseguição política em seu país.

Conforme narra o psicanalista argentino radicado no Brasil Alejandro Luís Viviani, em 1966 a Argentina vivia os terrores da ditadura militar, e uma grande parte dos intelectuais, bem como dos candidatos e jovens analistas, manifestava uma descrença com relação às instituições tradicionalistas. Na Associação Psicanalítica Argentina (IPA), começou a surgir uma divergência político-ideológica e teórica entre os psicanalistas ortodoxos e aqueles que desejavam que a formação ocorresse de forma alternativa. Em 1968, em decorrência, surgiram dentro da IPA duas dissidências que deram origem aos grupos Plataforma e Documento.

Um pouco antes disso, desde 1964, por incentivo do psicanalista Pichón-Rivière, o filósofo Oscar Masotta começara a estudar a fundo a obra de Lacan. Organizou, a seguir, vários grupos de estudo, constituídos em parte por psicanalistas de várias formações, entre eles membros e ex-membros da IPA. Além de Alejandro e sua mulher Maria Luisa, uma grande parte dos demais psicanalistas argentinos que viriam mais tarde para o Brasil, no final da década de 1970, estudaram os textos de Lacan com Oscar Masotta.

Por conta do ensino de Masotta, alguns dos seus alunos psicanalistas começaram a clinicar numa abordagem que seguia a orientação teórica de Lacan, sem que, no entanto, houvessem se submetido a uma análise lacaniana. O que havia era uma transferência imaginária com Lacan. Nas palavras de Viviani, "criou-se um fenômeno singular, a orientação da prática clínica por meio do trabalho dos textos e de sua implementação, fundada pela transferência com Lacan a partir de seu texto".

Como se passou com o pioneirismo em psicanálise, na Argentina também ocorria a barreira da "análise originária lacaniana" como obstáculo à formação (o que, aliás, se repetiria aqui no Brasil). No caso de Lacan, havia a peculiaridade de que ele era uma pessoa carismática, uma espécie de "mago da palavra", cujos seminários haviam se tornado uma coqueluche em Paris. Talvez por um certo equívoco útil, tomou-se ao pé da letra a questão da palavra em Lacan: para muitos,era como se lê-lo equivalesse a ser analisado por ele.

Por volta de 1974, Masotta fundou, com outros analistas a Escola Freudiana de Buenos Aires (EFBA). Com o endurecimento do clima político, e antecipando-se ao período mais negro da ditadura militar, Masotta mudou-se para Barcelona na Espanha. Lá, deu continuidade a suas atividades teórico-institucionais, com a aprovação de Lacan. Pouco depois, a EFBA passou por uma cisão, na qual Masotta teve participação, e criou-se um novo grupo, a Escola Freudiana da Argentina. Posteriormente, surgiriam muitos outros grupos.

No final da década de 1970, a situação política na Argentina se agravava cada vez mais, com perseguições, seqüestros e "desaparecimentos" de pessoas consideradas subversivas. Do "grupo de risco" faziam parte, principalmente, os intelectuais de esquerda, os professores universitários e os psicanalistas. Conforme conta Viviani, chegaram a ser publicados nos jornais em Buenos Aires comentários dos militares segundo os quais "os psicanalistas eram os ideólogos da subversão".

Em 1977, impossibilitados de trabalhar, e correndo até mesmo risco de vida, vários psicanalistas argentinos decidem vir para o Brasil. Entre 1977 e 1978 chegaram a São Paulo, entre outros, Guilherme e Léa Bigliani, Carmen Molloy, Graciela Barbero, Mabel Zaccagnini, Beatriz Aguirre, Izabel Marazina, Cristina Ocariz, Alejandro e Maria Luisa Viviani e, mais tarde, Sara Hassan.

Aqui chegando, em função de serem reconhecidos por sua sólida formação profissional e teórica, os argentinos logo receberam convites para trabalhar.

Alejandro Viviani, por exemplo, começou a clinicar, a coordenar grupos de estudo e a dar aulas. Após uma tentativa fracassada de aproximar-se do Centro de Estudos Freudiano, ele acabou estabelecendo laços informais com alguns de seus membros, como Alduísio Moreira de Souza, Márcio Peter de Souza Leite, Oscar Cesarotto e Geraldino Ferreira. Conheceu também Betty Milan e, a convite de Regina Chnaiderman, começou a dar aulas e supervisões no curso de psicanálise do Instituto "Sedes Sapientiae".

A propósito, Viviani, conjuntamente com outros psicanalistas argentinos, tiveram um papel fundamental na formação do quadro de profissionais que iniciou os cursos de psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae em 1977. Curiosamente, embora tivessem uma formação psicanalítica teórica bastante ampla que também incluía Lacan, não poderiam ser considerados lacanianos no sentido estrito da palavra. Mas talvez graças à demanda daquele momento histórico pela palavra de Lacan, essa geração de psicanalistas argentinos acabou, em grande parte, sendo conhecida como "lacaniana", sendo que muitos deles continuaram aqui seus estudos sobre Lacan com um outro filósofo argentino, Raúl Sciarretta.

Os psicanalistas e filósofos argentinos que, impossibilitados de permanecer na Argentina, optaram por vir para o Brasil, acabaram constituindo uma influência importante em nosso meio intelectual e, especificamente, no meio psicanalítico, e isso lhes deu um diferencial em termos de respeito profissional e de mercado de trabalho. Só para citar um exemplo, Beatriz Aguirre participou da fundação da instituição "A Casa", bastante conhecida por seu peculiar trabalho de acompanhamento terapêutico e de tratamento de psicóticos, entre outros serviços.

Em 1981, com a morte de Lacan, houve uma grande comoção entre os lacanianos no Brasil. Além da orfandade transferencial, surgiu um outro fator de perturbação: Jacques Alain-Miller, casado com a filha de Lacan, arvorava-se em herdeiro intelectual do legado lacaniano e, nessa condição, associou-se, em São Paulo, a Jorge Forbes e à Biblioteca Freudiana Brasileira. Isso foi repudiado por muitos lacanianos que não reconheciam em Miller um legítimo representante de Lacan. A esse grupo, no entanto, aderiram outros lacanianos paulistas, entre os quais Márcio Peter de Souza Leite, Luís Carlos Nogueira e Oscar Cesarotto. Os dois últimos desligaram-se do grupo no final da década de 1990.


Conclusão

Dificultando as tentativas de organização e instituição de grupos de linha lacaniana, impôs-se no Brasil a velha questão da análise originária: dispúnhamos de pouquíssimos psicanalistas lacanianos com formação de divã - inicialmente, só Magno Machado Dias, Betty Milan e a seguir Alduísio Moreira de Souza - o que também acarretava a falta de lastro que ancorasse as tentativas institucionais.

O próprio Viviani, a despeito de tantos anos de estudos teóricos sobre Lacan, ao chegar ao Brasil trazia uma experiência de análise ortodoxa, e duas outras que eram lacanianas apenas no enfoque teórico. Só por volta de 1985, pôde finalmente realizar, com Contardo Calligaris (que se formara pela Escola Freudiana de Paris), uma formação lacaniana no divã, no estrito sentido do termo. Nessa época, Ricardo Goldenberg também realizava sua análise com Contardo, em Paris. (Algum tempo depois, Contardo Calligaris mudou-se para o Brasil e se estabeleceu em Porto Alegre.).

A despeito de toda a mobilização no sentido institucional, uma característica marcante do movimento lacaniano no Brasil (e talvez também fora daqui) tem sido a instabilidade de seus agrupamentos, que se fazem, se desfazem e se recombinam.

Em São Paulo, por exemplo, sempre foi muito difícil aglutinar um núcleo lacaniano que se mantivesse. Por volta de 1981, Betty Milan propôs a instituição de O Ponto, no MASP, que, entre outras coisas, pretendia organizar cartéis. Essa tentativa, entretanto, foi efêmera. A Cooperativa Cultural Jacques Lacan, como mencionamos, também pouco tempo durou. Alejandro Viviani, Ricardo Goldenberg e outros tentaram constituir o grupo Fundamentos da Psicanálise, que igualmente não prosperou.

Na opinião de Viviani, até o momento não foi possível a criação de uma instituição duradoura em São Paulo, inicialmente, pela falta de massa crítica de psicanalistas com formação lacaniana; posteriormente, quando essa dificuldade foi superada, razões políticas ou narcísicas impediram, e continuam impedindo, "uma articulação entre os diferentes grupos lacanianos que se sustente pela consistência e convivência produtiva a partir das diferenças". O que ele considera viável em São Paulo são, no máximo, confluências teórico-clínicas, mas não possibilidades institucionais.

A juventude do movimento lacaniano no Brasil, a dificuldade de acesso a informações abalizadas e uma documentação histórica pouco preservada e dispersa, bem como o alcance a que se propôs este trabalho, trazem o risco de uma apresentação pouco homogênea do panorama atual dos grupos lacanianos brasileiros e, até, de injustiças ou omissões involuntárias.

Tentaremos, no entanto, citar alguns dentre os principais grupos criados: o Centro de Estudos Freudianos, fundado em 1975, em São Paulo, por Luís Carlos Nogueira, Durval Checchinato, Jacques Laberge e Ivan Correia, com ramificações em Recife, Campinas, Curitiba, Salvador, Porto Alegre, Brasília e Natal; o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, fundado em 1975, na cidade do mesmo nome, por Magno M. Dias e Betty Milan, com desdobramentos em Vitória e Brasília; a Escola Freudiana de São Paulo, fundada por Márcio Peter de Souza Leite, Oscar Cesarotto, Geraldino Ferreira, Alduísio Moreira de Souza e outros; a Biblioteca Freudiana Brasileira, fundada em 1980 e dirigida por Jorge V. Forbes, em São Paulo; a Letra Freudiana, dirigida por Eduardo Vidal, no Rio de Janeiro; o Simpósio do Campo Freudiano, dirigido por Antonio Benati em Belo Horizonte; a Coisa Freudiana, dirigida por Antonio Godino Cabas, em Curitiba; a Clínica Freudiana, em Salvador; o grupo Fundamentos da Psicanálise, fundado por Alejandro Viviani e Ricardo Goldenberg, em São Paulo; a Cooperativa Cultural Jacques Lacan, fundada por Alduísio Moreira de Souza e Alfredo Jerusalinsky em 1986 em Porto Alegre, com ramificações em Salvador e São Paulo; o grupo Che Vuoi? - Psicanálise e Cultura, fundado em 1987 em Porto Alegre e São Paulo, por Alduísio Moreira de Souza, e a Associação Psicanalítica de Porto Alegre, fundada por Alduísio Moreira de Souza, Alfredo Jerusalinsky e Contardo Calligaris em Porto Alegre em 1989, que congregava vários grupos já existentes.

Além dos grupos supracitados, faríamos menção, ainda, na cidade de São Paulo, a uma rede informal de psicanalistas lacanianos, numericamente significativa e em expansão.

Finalmente, cumpre lembrar que o movimento lacaniano no Brasil tem sido responsável por uma produção editorial expressiva (livros, periódicos, revistas) voltada a textos de inspiração freudo-lacaniana de autores nacionais e estrangeiros, bem como por um intercâmbio cultural significativo, tanto em termos de encontros entre psicanalistas brasileiros quanto de contatos com psicanalistas franceses discípulos de Lacan. Dentre as revistas publicadas na atualidade em São Paulo, podemos mencionar a Textura, editada por Alejandro Viviani, Ana Lucília Quiñonero, Eliana Midlej, Luís Eduardo Salvucci Rodrigues, Maria Luisa de Viviani, Rosely Pennacchi, Sidney Goldberg e Taeco Toma Carignato, e a Pulsional Revista de Psicanálise, dirigida por Manoel Tosta Berlinck; em Curitiba, a Biblioteca Freudiana publica há vários anos a Revista de Psicanálise Palavração. Além disso, várias editoras brasileiras também publicam coleções voltadas aos textos de linha lacaniana.

 

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