HYSTORIA - 1992
1992: A situação da psicanálise no Brasil
(Cíntia Avila de Carvalho in "Os psiconautas do atlântico sul",
Ed. Unicamp / 1992 - Cap. 2)
A década de 1970 foi turbulenta para o movimento psicanalítico brasileiro. As sociedades oficiais tinham a sua hegemonia e várias novas tendências começavam a fazer parte do cenário.
Uma delas era o lacanismo, que, em relação às práticas psicanalíticas introduzidas pelos argentinos, teve uma entrada tardia pois a reorganização do cenário psicanalítico estava ocorrendo o fim da década de 1960.
Segundo o relato dos adeptos de Magno, ele foi o precursor do no Brasil, tendo em vista que já em 1971 o ensino realizado tinha como objeto o pensamento lacaniano. Essa é, entretanto, uma questão controvertida e, pela bibliografia disponível, é difícil estabelecer com certeza a quem caberia a prioridade na introdução no Brasil.
Apesar de podermos identificar alguns precursores no estudo da obra de Lacan já no início da década de 1970, o movimento lacaniano se concretizou no Brasil, tanto em São Paulo como no Rio de na segunda metade da década de 1970. É interessante observar que o Centro de Estudos Freudianos (CEF) de São Paulo e o CFRJ foram ambos criados em 1975. Entretanto, o movimento se apresentou diferente nesses dois locais. No Rio de Janeiro, ele se constituiu movimento forte, que reuniu, ao menos em um primeiro momento um grande número de pessoas em torno de um pequeno de instituições. Em São Paulo, caracterizou-se por uma maior dispersão, congregou menos pessoas e os seus grupos tiveram duração efêmera (Coimbra 1992). Um breve resumo dos dois casos esclarecerá essas considerações.
No caso paulista, Luiz Carlos Nogueira, que, desde 1973, se interessava pelo estudo de Lacan, Jacques Laberge e Durval Cechinato fundaram, em 1975, o CEF - Centro de Estudos Freudianos - (Coimbra 1992:301) [13]. Foi na casa de Luiz Carlos Nogueira que, em 1975, em uma reunião, resolveram realizar um Encontro Nacional - I Encontro Nacional do Centro de Estudos Freudianos - e fundar uma instituição - o CEF - visando à difusão das concepções psicanalíticas de Jacques Lacan (Boralli Rocha 1990:42-43).
A estratégia de difusão do movimento consistiu, além da criação, da entidade, na realização de encontros bi-anuais. Gradativamente foram se constituindo núcleos regionais do Centro de Estudos Freudianos em Recife, Brasília, Salvador, Campinas, Curitiba, Natal. Porto Alegre (Coimbra 1992:301). O CEF tinha por objetivo estudar e praticar a psicanálise lacaniana e não possuía filiação institucional internacional (Sagawa, 1989).
Três anos após a criação dessa instituição - que, no início, não oferecia cursos seqüenciais, mas propiciava a organização de grupos de estudos e seminários - começaram a aparecer os atritos. Segundo Coimbra (1992:302-303): "Justamente quando em 1978 criam-se os Estatutos explodem as lutas pelo poder dentro do CEF: começa uma maior institucionalização, que gera criação de normas, critérios de quem deve entrar, quem deve dar os grupos de estudo, quem, em suma, ocupará os lugares de prestígio e mando".
O primeiro grupo dissidente, que contava entre seus doze componentes com Márcio Peter de Souza Leite, Oscar Angel Cesarotto e Alduísio Moreira de Souza [15] explicou a sua saída como decorrência do autoritarismo do CEF e da influência jesuítica, representada especialmente por Jacques Laberge, a quem atribuíram a incumbência de ter vindo para o Brasil criar o movimento lacaniano. Ainda em 1978, esse grupo criou a Escola Freudiana de São Paulo (EFSP), também de curta duração, pois em 1980 ela encerrou suas atividades".
Segundo um grupo que participou dos acontecimentos: O Centro de Estudos Freudianos, fundado em 1975, foi a locomotiva de uma viagem psicanalítica nacional, realizando encontros em várias capitais e cidades do país. Com a intenção do agenciamento do ensino de Lacan em todo o Brasil, suas diversas sedes regionais relacionavam-se a um poder central e decisivo, federativamente. Era negado às filiais autonomia e livre arbítrio, sem que se pudesse questionar a hierarquia imposta.
Quando se pensam as origens do CEF, surge a indagação sobre o que representa o peso da herança religiosa, em geral, e em particular, a jesuítica, para o destino dos paulistas. Questão subjacente de grande importância, nunca suficientemente esclarecida. Pois, numa cidade de marcada tradição católica como São Paulo, não se pode desconhecer essa paternidade. Que dizer, então, do surgimento do lacanismo numa esfera ligada à Igreja? Se, para Lacan, religião é sinônimo de sentido, que sentido dar à psicanálise vista desde a religião?
Entretanto, numa outra perspectiva, cabe perguntar o que significa ser pioneiro? Um primeiro ato, embora essencial, pode se esgotar em si mesmo se não continuar seus propósitos através de outros, coerentemente. Se as conseqüências da novidade que se introduz são negligenciadas, uma fundação fica reduzida a um gesto inicial, oportunista pelas circunstâncias.
O CEF, em sua expressão paulista, tinha um projeto ambicioso. Furou quando o investimento libidinal passou dos estudos aos estatutos. Mas teve um mérito inaugural. Dele participaram membros da Escola Freudiana de Paris. A PUC de Campinas, ou melhor, o seu curso de pós-graduação em Psicologia Clínica, foi a proveta onde se deu a concepção. Os que testemunharam o processo comprovaram como o discurso analítico era incompatível e inverso ao discurso do mestre, sempre tentador para os que se fazem de seus secretos agentes (Cesarotto e outros, 1985:296).
O que mais chama a atenção nessa análise/depoimento é a reivindicação de pioneirismo do movimento lacaniano para os paulistas: os "lacano-paulistas" [17] como São Paulo, foram a locomotiva que puxou o Brasil e, também como São Paulo, sofreram influência jesuítica. Porém, mais importante que esses aspectos assinalados pelo autor, é esse grupo, como os outros grupos lacanianos brasileiros criados no momento em que Lacan não mais reinava absoluto, à exceção do CFRJ, contavam com a possibilidade, desde a sua implantação, de cisões. No caso do CEE três anos após a fundação do grupo inicial, elas começaram a ocorrer. Além disso, esse grupo, também como todos os grupos lacanianos criados no momento da massificação da psicanálise, tinha os pés bem fundados nos cursos de psicologia.
Em 1982, surgiu a Biblioteca Freudiana Brasileira, organizada por Jorge Forbes, um dos fundadores do NEPP (Núcleo de Estudos de Psicologia e Psiquiatria), em 1976. Segundo Coimbra (1992:304):
Diferentemente das demais (instituições lacanianas) a Biblioteca vai aos poucos, além do oferecimento de grupos de estudo, organizando uma formação analítica. Esta é feita em módulos, "uma releitura da proposta de cartéis feita por Lacan", com duração de um semestre ao fim do qual cada participante produz um trabalho escrito sobre o tema estudado. Há ainda as sessões clínicas, as jomadas (reuniões semestrais abertas), o curso fundamental (criado em 1985, composto de 6 semestres realizados após os módulos), o Colégio (cursos sobre temas específicos, aberto a qualquer um), os Seminários (conferências), a Ciranda (estudo específico da criança no "discurso analítico") e as reuniões mensais (encontros abertos sob forma de conferências).
Em 1988, Jorge Forbes reuniu um grupo de 17 membros da Biblioteca e fundou a Sociedade Psicanalítica de São Paulo (SPSP), com o objetivo de reunir e congregar psicanalistas para uma discussão entre iguais sobre os problemas da psicanálise freudiana de orientação lacaniana. A SPSP manteve estreitas ligações com a Biblioteca, e, apesar de procurar ultrapassar os limites estabelecidos entre os vários grupos, segundo Coimbra (1992:305): "(...) este grupo não consegue aglutinar os lacanianos paulistas; alguns caracterizam-no como uma "organização empresarial", preocupada com a questão de direitos autorais, de prestígio e levando a um consumismo do prêt-à porter oficioso".
Não vem ao caso entrar em detalhes sobre cada uma das instituições lacanianas paulistas, mas assinalar que Sagawa (1989) e Coimbra (1992) chamam a atenção para o fato de que os grupos lacanianos paulistas são bem diferentes dos cariocas, pois, ao contrário do Rio de Janeiro, onde instituições fortes foram criadas, São Paulo se caracterizou pela fragmentação do campo lacaniano. Ainda em 1985, Geraldino Alves Ferreira Neto, Márcio Peter de Souza Leite e Oscar Cesarotto chamavam a atenção, no Congresso da Causa Freudiana do Brasil, para a dispersão instaurada no movimento lacaniano paulista. Dizem eles, após descrever o fim da EFSP:
A partir de então, a dispersão. Ao ficar claro que uma organização analítica baseada num esquema gradativo-burocrático é uma armadilha que mais enforca do que expande a verdade do inconsciente, não sobra senão inventar novos modelos de agrupação. A "política do grão de areia", proposta por Lacan depois da dissolução, tem a ver, destarte, com uma aposta cujo resultado se sabe por antecipação: os analistas, ao sabor dos ventos, se reúnem quando um objetivo comum os aproxima, e se separam quando aquilo já deu tudo o que podia dar (Cesarotto e outros 1985:297, grifos meus).
Seguindo a política do "grão de areia", pela qual o que importa são os vínculos pessoais ou profissionais e os interesses políticos ou teóricos do momento, os lacano-paulistas organizaram-se em vários pequenos grupos. Entre eles a Clínica Freudiana, do grupo de O. Cesarotto, e O Ponto, organizado por Betty Milan, com a proposta de criar um espaço para reunião de pessoas que tivessem vinculação com Lacan.
Uma outra diferença do movimento lacaniano em São Paulo [1] em relação ao Rio de Janeiro, assinalada por Sagawa e Coimbra, respeito ao fato de que, se no Rio os grupos tendem ao isolamento, em São Paulo, a tendência é a ocorrência de rearticulações entre os vários grupos existentes. Entre o final da década de 1970 e o início da 1980, várias rearticulações ocorrem no Sedes, no NEFF, no CEF e Escola Freudiana.
Esses dados sobre o movimento lacaniano em São Paulo e Rio de Janeiro não levam esses autores, no entanto, a se perguntarem sobre o porquê da diferença entre os dois movimentos e sobre qual seria o local detentor do pioneirismo na divulgação do pensamento lacaniano. Eles nem mesmo observam a coincidência de datas na ocorrência dos dois movimentos, o início da década de 1970, quando do grande boom das faculdades de psicologia e da perda da hegemonia das sociedades oficiais na transmissão da psicanálise. Foi nesse contexto que o pensamento lacaniano foi introduzido nesses dois locais e se constituiu em uma alternativa de formação em psicanálise para pessoas que não queriam se submeter aos critérios ipianos de formação e que não pretendiam se vincular a grupos orientados pela psicoterapia de grupo trazida pelos argentinos, especialmente em fins da década de 1960 e início da de 1970. Além disso, é importante observar que, mais uma vez, a introdução de uma nova linha estava ligada a uma relação direta com o local em que ela tinha origem e com a Argentina por meio, nesse caso, da leitura que Oscar Masotta fez de Lacan.
[13] Berlinck (1989) confirma esses dados, assim como a pouca generalização psicanálise lacaniana em São Paulo, apesar da contradição com Coimbra (1992) sobre quem teria sido o primeiro a se aproximar de Lacan. Para Coimbra (1992:30t) desde 1973 Luiz Carlos Nogueira interessava-se pelo estudo de Lacan, para Berlinck (1989:74), a prática psicanalítica lacaniana foi iniciada em São Paulo por Durval Cecchinatto.
Segundo Berlinck (1989:74): a prática psicanalítica lacaniana, em São Paulo, iniciada em 1973 por Durval Cecchinato e um pouco mais tarde (1974-75) por Luiz Carlos Nogueira que, juntos com Jacques Laberge e Ivan Ribeiro, organizaram o Centro de Estudos Freudianos, é relativamente recente e restrita, ainda que se encontre em franca expansão e atraia a atenção de muitos jovens. Há, hoje, em São Paulo uma única instituição psicanalítica lacaniana de destaque, a Biblioteca Freudiana Brasileira, que dedica-se sistematicamente à transmissão. Além disso, há a Escola de Psicanálise de São Paulo, bastante recente e alguns grupos de restrita incidência, como, por exemplo, "Che Vuoi?" Em outras palavras, ao contrário do que acontece na Bahia, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, onde a psicanálise lacaniana tem uma incidência generalizada, em São Paulo ela é restrita. Assim, até agora, com raríssimas exceções, os intelectuais tradicionais ignoram Lacan. Na Universidade de São Paulo há, tanto que eu saiba, dois professores - um em psicologia e outro em literatura - que ensinam Lacan. Um deles é francês. Na Universidade Estadual de Campinas, tanto quanto tenho notícias, somente eu, que não me considero um lacaniano, utilizo textos de Lacan em meus cursos para estudantes de ciências sociais. Finalmente, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), a terceira grande universidade estatal de São Paulo, não tenho notícia do ensino baseado em Lacan.
0 pensamento lacaniano vem sendo transmitido na Pontifícia Universidade de São Paulo de forma um tanto assistemática. Além disso, aqueles que se ao estudo de Lacan contam com as traduções para o português publicadas por Zahar, que são, de forma geral, muito bem feitas.
Finalmente, gostaria de ressaltar que todos esses desenvolvimentos da psi em São Paulo se deram sem cisões, com exceção do Instituto Sedes Sapientiae onde existem hoje dois cursos. Os desenvolvimentos ocorreram por transferência, ou seja, resultam tanto do amor como de neuroses de transfe (grifos meus). [15]
Ver, a esse respeito, Sagawa (1989), Boralli (1990) e Coimbra (1992). Segundo Coimbra (1992:301), Márcio Peter de Souza Leite e Oscar Cesarotto haviam chegado em 1977 da Argentina, depois de terem pertencido à Escola Freudiana de Buenos Aires, fundada por Oscar Masotta; Alduísio Moreira de Souza havia chegado de Paris, depois de ter participado da Escola de Lacan.
‘'Na leitura de seus fundadores, Cesarotto e outros (1985:297), também citada por Coimbra (1992:303): (...) a EFSP foi uma precipitação temporal, uma ejaculação precoce que poderia ter vingado não fossem as querelas intestinais e, por sorte, a coincidência da dissolução da Escola de Lacan em 1980, que quebraram a especularidade e a ilusão megalômana. Foi efêmera a sua trajetória. Fica a pontuação de que a escolha do nome - Escola Freudiana - representava uma tentativa de identificação imaginária com a instituição de Lacan (...). Pode-se concluir que a iniciativa visava abrir um espaço de liberdade fora da hierarquia que religiosamente congregava os integrantes do CEF. Foi, porém, sair de uma para entrar em outra...
[17] Expressão utilizada por Cesarotto e outros (1985:296).