CONCLUSÃO
Bate-se um analista?
Márcio Peter de Souza Leite
Ao sul do Equador
I - Fomos formados em uma geração de psicanalistas que deixaram de prever a possibilidade de existir um funcionamento adequado para os grupos humanos, devido aos efeitos dos fenômenos de massa.
Esta geração, que viveu desmandos autoritários decorrentes da hierarquia do poder, pensou ter encontrado na proposta de Lacan do “grão de areia”, a resposta para as patologias das instituições, prejudicada pelas rivalidades imaginárias. Grande número de colegas em São paulo ainda hoje preferem o sabor dos ventos que os agrupa como montes de areia, à luta mortal da disputa pelo prestígio que alimenta a fogueira das vaidades das instituições.
Porém, a despeito da proposta dos grupos analíticos existirem ao sabor dos ventos como se fossem compostos por montes de “grãos de areia”, esta é uma idéia que se refere a um determinado momento de Lacan, pois a transmissão da psicanálise de “orientação lacaniana”, necessita de grupo, constituídos por analistas, para sua viabilização.
A “orientação lacaniana” é uma concepção da psicanálise que implica uma precisão na sua direção, que vai de um início determinável para a análise, em direção a um fim passível de ser formalizado, e verificado clinicamente pelo procedimento do passe.
A idéia de uma comunidade de analistas, tem a finalidade de garantir e verificar a orientação lacaniana da psicanálise, sustentada na formalização do fim da análise, o que torna possível a formação de analista, os quais (ver ato analítico) só o seria pelo seu fim de análise.
Sendo que não existe a possibilidade de haver fins de análise múltiplos, a direção de uma análise deve se referir sempre a mesma orientação: a “lacaniana”.
II - Hoje, a despeito dos montes de montes de grãos de areia, existe uma organização mundial que congrega várias Escolas, a AMP, a qual centraliza a garantia de que existe uma orientação lacaniana passível de ser executada e verificada pelo passe.
O Brasil se inscreve neste grupo. São Paulo participa deste esforço para dar consistência e permitir a existência dos dispositivos necessários à viabilização da orientação lacaniana.
Por isto talvez não seja suficiente pensar na Orientação, pois a dificuldade talvez não seja a de aceitar esta lógica, mas sim pô-la em prática, ação que produz dificuldades consideráveis. Por outro lado considerar somente o funcionamento, da burocracia que administra a viabilização da “orientação lacaniana”, pode fazer a comunidade correr o risco de ver-se apenas repetindo jargões sobre o fim de análise, e conotar o cartel do passe como um tribunal de defensores da fé. Pois interessa também à comunidade compartir sua experiência sobre as variáveis da direção de uma análise.
Ou seja a questão que neste momento de nossa história devemos nos colocar é se podemos garantir que concebemos o fim de análise, logo a orientação lacaniana, da mesma maneira como fazem os colegas de outros estados ou de outros países, e com isso nos autorizar como analistas?
Sem dúvida chegará dia em que toda a comunidade analítica que se refere à orientação lacaniana se usará aos mesmos parâmetros.
Porém, enquanto isso, podemos falar de nossa experiência, como dentro da orientação lacaniana? Podemos sustentar um início, meio e fim de análise, ou nos excluimos de opinar sobre a direção do tratamento nos refugiando no de desejo de participar de uma comunidade à qual não nos autorizamos a pertencer?
Faz muito tempo que deixamos de lado a experiência de uma psicanálise Macunaíma, da heterofagia, ou de um nacionalismo ignorante, que já não fazem mais ecos num mundo globalizado, e nem mesmo antes. Dentro de uma mesma orientação, não deveria haver uma psicanálise brasileira assim como não deveria haver uma psicanálise argentina, inglesa ou francesa. Uma Escola nao é um franchising , uma Escola é uma comunidade de sujeitos, que por serem psicanalistas, espera-se que estejam adveridos da sua divisão psíquica, uma comunidade cujos membros podem aprender da sua própria experiência e da de outros.
Neste momento poderíamos dizer que concordamos sobre a questão do fim de análise em nossa comunidade? Podemos dizer que há uma unicidade de critérios e de interpretação dos canones teóricos em relação à nossa experiência? A orientação lacaniana é una em São Paulo? Trabalhamos e entendemos a clínica da mesma maneira que nossos colegas no Brasil e no exterior?
É neste trabalho que a comunidade analítica de São Paulo está envolvida. Estamos cotejando nossas divisões psíquicas, para dessubjetivar nossa interpretação da teoria e testemunhar nosso entendimento do que é a orientação lacaniana. É um trabalho em curso, pois permite que a comunidade deixe de se desgastar com a tarefa organizativa e enfrente a sua inserção na comunidade analítica nacional e internacional a que pertence.
III - Porém, na medida em que seu funcionamento supera as pessoas, na medida em que a permutação anula vaidades estabelecidas, o demônio embutido nos efeitos de grupo serve às inércias imaginárias.
Sempre pode haver os que acreditam que o monte que seu grão de areia ajudou a constituir é o Sinai, e não são poucos os que querem ser Moisés. Nunca falta aqueles que se pretendem o porta-voz da Lei, ou o guardião de uma Verdade revelada só a ele.
Os efeitos de grupo assimilam-se diretamente com a história da psicanálise. Seria inusual se seus efeitos não se fizessem sentir em nossa comunidade. Mesmo a 44 anos da denúncia feita por Lacan no escrito “Situação da psicanálise em 56”, sempre corre-se o risco do retorno dos “petit-poids” (sapatinhos) e, principalmente, das suficiências.
Se aprendemos algo com Lacan, foi que a verdade não pode ser dita toda, por isso não caberiam jamais nas instituições analíticas do século XXI o retorno dos “comitês secretos”, das “confrarias dos anéis”. Não há mais hoje em dia, numa instituição que se queira analítica, lugar para os que se acreditam os únicos iniciados, pois todos o somos na palavra, para a morte, e sabemos que não há uma significação útima.
O tempo dos que se referem a uma teoria inacessível, a uma prática inefável, somente feita por alguns já passou. Qualquer prática deve existir a céu aberto, fruto da produção da comunidade, ou corre o risco de se tornar em uma seita, como as que se crêem a única testemunha da palavra do Senhor.
Por isso situar a idéia de prática fundada somente no funcionamento ou na burocracia, talvez não fosse suficiente pois isto poderia esconder, sob o pretexto de uma extimidade, a esperança de que em outro lugar exista o saber sobre a falta. Por isto não basta afirmar a existência de um final de análise, fruto da orientação lacaniana, há que se poder debater esta questão sem se valer de dogmas de fé, nem de desejos preconcebidos.
Ou será que na falta de um Ur-analista brasileiro não poderemos jamais ter um traço-unário que nos autorize a fazer série?