Os homens e a hora: Ey e Lacan
Márcio Peter de Souza Leite
I - Ey: Homem recebe suas determinações de si mesmo.
Loucura, patologia da liberdade
Numa foto tirada no Hospital Saint-Anne em 1932 aparecem três pessoas, que se deduz sejam amigos: Lacan sentado na ponta de um banco, a mão no queixo, ar pensativo. Por baixo do sobretudo escapa uma ponta de avental, o que faz pensar que estão no intervalo de um plantão. No outro canto, encostado numa porta, Pierre Male vestindo um longo avental, sugere displicência. Encostado em Lacan, franzino, parecendo relaxado está H. Ey. Lacan, amigo inseparável e adversário teórico irreconciliável de Ey, foi seu companheiro na “Salle de Garde”.
É edificador saber que mesmo sendo adversários podiam também ser amigos. Notadamente discordavam em relação à idéia de psicogênese/organogênese, o que implica que discordassem quanto à concepção do homem, logo discordavam sobre a significação da loucura, atingindo as noções de liberdade, essência do homem, determinismo, autonomia, que se refletem em questões como o suicídio, entre outras.
Ey, nascido em 1900, estudou medicina em Toulouse, Paris, a posição de Ey de que o homem recebe suas determinações dele mesmo, e a de Lacan em que o homem recebe esta determinações do exterior. Assim a oposição “causalidade natural” a “causalidade pela liberdade” completa-se também com o humanismo filosófico, opondo-se ao materialismo histórico. Freqüentou Sorbonne, obtendo a licenciatura em filosofia. durante dez anos trabalhou no Hospitaux Psychiatriques de Seine de Paris, nos serviços de Guiraud, Marie e Capgras; de 1931 a 1933 como chefe de Clínica em Sainte-Anne, além de professor da catedra de Enfermidades Mentais e do Encéfalo, sendo o primeiro a abrir as portas para a psicanálise.
Ey pensa o homem como livre e autodeterminado, sustentando seu pensamento em um humanismo filosófico; enquanto Lacan, a que o homem recebe suas determinações essenciais do exterior, pois ele é alienado na linguagem.
A idéia de homem de Ey implica uma prioridade das atividades estruturantes do organismo sobre as ações exógenas. A liberdade é, indissociável da causalidade, é do lado da causa final: faz com que o estar consciente se apresente como liberdade de se determinar seus próprios fins. A construção do organo-dinamismo poderia ser um esforço para manter esta concepção de homem.
A coerência de Lacan através de sua obra é impecável, trata-se sempre da causação de um sujeito a partir de um objeto produto do simbólico, da linguagem. É importante, não obstante destacar que se trata da causação e não da determinação, ainda que isso não seja o contexto em que podemos explanar acerca dessa diferença, mas que convém ter presente.
Lacan enfocava as relações entre o conceito operatório de psicogênese e o de processo, desenvolveu três textos que podem constituir relações bastante adequadas: o livro de 1932 sobre a psicose paranóica desenvolvendo suas relações com a personalidade; sua participação nas jornadas de Bonneval consagradas em 1946, Psicogêneses das neuroses e das psicoses e, no final, o Seminário de 1955-1956.
Sua definição da psicogênese já em 1946 de caráter estrutural não concorda que se identifique com “[...] a reintrodução na vinculação com o objeto psiquiátrico, dessa famosa relação (se refere à relação de compreensão de Jaspers)”. Para Lacan, este problema não é nem a concepção geral da enfermidade mental, que é onde se concentra todo o esforço de Ey, nem é a psicogênese das psicoses, objeto do debate, mas sim os limites da neurologia e da psiquiatria.
Lacan escolhe curiosamente como exemplo da contradição da qual nega o organo-dinamismo a observação do enfermo de Gelb e Goldstein afectado de cegueira psíquica por lesão das cisuras calcarinas, lesão que provocaria, segundo Lacan, uma dissolução global do nível mais elevado, o que corresponde na concepção jacksoniana de Ey a da definição de enfermidade mental, no entanto se deve indiscutivelmente considerar que se trata de uma enfermidade neurológica. Entretanto, o próprio Goldstein (1878-1965), ao ocupar-se do “homem afetado de lesão cerebral”, resume seus trabalhos com seu colaborador Gelb e destaca que um déficit primário modifica o comportamento global, consequentemente sua conclusão bastante próxima ao organo-dinamismo de Ey, segundo ao qual os fenômenos cerebrais devem ser considerados globalmente, quer dizer, sem distinguir o que é orgânico e o que é psíquico, e que uma lesão inclusive parcial, modifica o conjunto da organização.
No Seminário de 1955-1956, em 16 de novembro, J. Lacan disse: “...o grande segredo da psicanálise é que não há psicogênese. Se a psicogêneses é isto, é precisamente aquilo do que o psicanalista está mais distante, por todo seu movimento, por toda sua inspiração, por todos seus meios, por tudo o que apresenta, por tudo aquilo que direciona o que nos conduz, por tudo aquilo que deve nos manter” (J. Lacan, 1984, pág. 17).
Henri Ey no ano de 1977 disse: “O termo `psicogênese´ tem duplo sentido e convém esclarecer sua ambigüidade para que deixe de ocultar a natureza das enfermidades mentais. Num primeiro sentido (o único tomado pelo dicionário de Lalande), a palabra designa o ‘desenvolvimento da vida psíquica’. Num segundo sentido - paradoxalmente próprio dos escritos psicopatógicos, onde descarta a natureza patológica da enfermidade mental - é sinônimo de ‘causalidad psíquica’”.
Encontramos logo um elogio da posição de Jaspers e uma remissão ao colóquio onde foi apresentado o artigo que comentamos esta noite. E finaliza a nota nos seguintes termos: “[...] estimo que as teses, se não as coisas, são mais claras se reservadas o termo de psicogênese para o desenvolvimento normal e normativo da vida psíquica, em oposição à patogenia organo-processal do fato psicopatológico”. A teoria de Ey se apresenta fundamentalmente como um neovitalismo com uma prioridade dada para desenvolvimento das atividades estruturantes de organismo sobre os ações exógenas de modeladas pelo meio, do qual a Liberdade, indissociável da causalidade, é do lado da causa final.
II - Lacan: o homem recebe suas determinações do exterior:
A loucura como limite da liberdade
Em 1933 H. Ey é designado médico-chefe do hospital psiquiátrico de Bonneval, onde permaneceu até 1971. Foi nesse histórico hospitalar, instalado nas abóbadas do claustro da abadia beneditina de Saint-Florentin, erigida no século IX, onde organizou e dirigiu os célebres “Encontros de Bonneval”.
Quatorze anos depois da foto tirada ao lado Ey, no outono de 1946, Ey organizou em Bonneval jornadas consagradas ao problema da psicogêneses das neuroses e das psicoses, e que davam continuidade às jornadas de 1943 dedicadas às relações da neurologia e da psiquiatria.
Independente da amizade que podia ter com Ey, Lacan não evitou a polêmica ao expor suas idéias e no texto “Sobre a causação psíquica”, confronta-se com Ey, propondo mostrar que, o organodinamismo, a criação de Ey, é uma variedade do organicismo mecanicista.
Em Lacan, este problema não é nem a concepção geral da enfermidade mental - que é o que tem todo o esforço de Ey - nem é da psicogênese das psicoses - objeto do debate - mas sendo do limite da neurologia e da psiquiatria.
Lacan se apoia no caso de Gelb e Goldstein, célebre pelos comentários que lhe fazía Merleau-Ponty em “Fenomenología da percepção”. Lacan escolhe curiosamente como exemplo da contradição a qual Nega é organo-dinamismo, a observação desse enfermo de Gelb e Goldstein afetado de cegueira psíquica por lesão das cisuras calcarinas, lesão que provocaria, segundo Lacan, uma dissolução global do nível mais elevado, o que corresponde na concepção jacksoniana de Ey a definição da enfermidade mental, no entanto se deve indiscutivelmente considerar que se trata de uma enfermidade neurológica.
O próprio Goldstein (1878-1965), ao se ocupar do “homem afetado por lesão cerebral”, resume seus trabalhos com seu colaborador Gelb e destaca que um deficit primário modifica o comportamento global, e sua conclusão bastante próxima ao organo-dinamismo de Ey, segundo ao qual os fenômenos cerebrais devem ser considerados globalmente, é afirmar, sem distinguir o que é orgânico e o que é psíquico, e que uma lesão inclusive parcial modifica o conjunto da organização.
Lacan questiona a Ey: “Pergunto, pois, a Henri Ey: Em que distingue esse enfermo de um louco? Fica a meu cargo, se não me dá razão em seu sistema, poder dá-las no meu. Se me responde com as perturbações noéticas das dissoluções funcionais, lhe perguntarei em quê diferem estas do que ele chama dissoluções globais”.
Para precisar “a causação essencial da loucura”, Lacan crê necessário separar a convicção delirante do engano e do déficit. O essencial da experiência delirante para Lacan é que o sujeito não reconhece como suas as produções do automatismo mental ou as das interpretações.
A importância fundamental da loucura para a existência humana consiste em que não se pode separá-la do problema da significação para o ser, é dizer, da linguagem para o homem.
Diz Lacan em 46: “Porque o risco da loucura se mede pelo atrativo das identificações com as que o homem compromete sua verdade e seu ser. Fora, pois, de ser a loucura o fato contingente das fragilidades de seu organismo, é a permanente virtualidade de uma falha aberta em sua essência. Fora de ser “um insulto” para a liberdade, é sua mais fiel companheira; segue como uma sombra seu movimento. E o ser do homem não só não se pode compreender sem a loucura, senão que não seria o ser do homem se não levasse em si a loucura como limite de sua liberdade”.
Para Lacan a verdade condiciona em sua essência o fenômeno da_loucura que é o fenômeno da significação “através do qual penso mostrar-lhes que ela faz ao ser mesmo do homem”. Esta tese se opõe à tese de Ey: “[...] as enfermidades mentais são insultos e empecilhos à liberdade, dado que não são causadas pela atividade livre, é dizer, puramente psicogenética”. Para Lacan esta formulação da verdade do psiquismo se diferencia a Ey ao mesmo tempo que a da loucura, pois tal como descreve numa segunda diferença, pontuar o valor que tem o fenômeno da loucura para o humano: “Seu alcance metafísico se revela no fato de que o fenómeno da loucura não é separado do problema da significação para o ser em geral, é dizer da linguagem para o homem”.
O fenômeno da loucura é inseparável da subjetividade, ainda quando a dita subjetividade está determinada pela linguagem e tem sua causa em, aqui se cabe o termo, um objeto, Imaginário em 1946 e todavia por bastante tempo, Real ao final de sua obra.
III - Organodinamismo
Ey descobriu as idéias de Jackson pouco depois de ter traduzido a Bleuler. Ey anunciou em um texto de 1938 - “Essai d’application des principes de Jackson à une conception dynamique de la psychiatriemo órgano-dinamicista” - o projeto de elaborar um modelo dinámico da enfermidade mental comparando três concepções dinâmicas: de Jackson, Janet e a de Freud (22).
O jacksonismo influenciou o pensamento da maioría dos neurólogos do século, em particular Sigmund Freud, cujo estudo crítico sobre as afasias, de 1891 (24), não é outra coisa senão sua aplicação, para resolver esse problema neuropatológico que somente havía sido considerado até então, seguindo a Broca (1826-1870) e a Wernicke (1848-1905), exclusivamente desde o ponto de vista do organicismo médico, que vincula os transtornos, e neste caso da palavra, com as lesões localizadas de um órgão, e neste caso de uma parte do cérebro.
A idéia da aproximação Jackson/Bleuler se deu a Ey, sem dúvida, traz a leitura do artigo “Primüre und Sekundãre Symptome in der Schizophrenie”, o que Wilhem MayerGross (1889-1961) fez uma observação incidental neste sentido, porém não a desenvolveu (26).
Em 1943, nas segundas jornadas de Bonneval estiveram consagradas as “Relaciones de la neurologia y de la psiquiatria”, o que possibilitou a Henri Ey confrontar sua própria opinião sobre este ponto, inspirada pelas idéias de Jackson, com as de Julián de Ajuriaguerra (1911-1993) e de Henri Hécaen.
A noção de organização, de hierarquia implícita no organodinamismo privilegia a Consciência, lugar da psicogênese, próximo da noção de imperativo categórico de Kant: “Compreensivelmente, isso significa que ter acesso à moralidade, isso é, não concordar necessariamente a um bem ideal prescreve pela “moral da sociedade”, isto é seus alfândegas, mas isso é essencialmente ser livre e responsável de um eleição individual, qual que seja conteúdo de imperativo coletivo [...] isso é assumir sua própria responsabilidade. Não há moral sem autodeterminação, sem autonomia da vontade, sem livre arbítrio.”
Jacques Lacan criticou com severidade a teoria órgano-dinamicista de seu amigo, pensando ou fingindo pensar (posto que não podía ignorar suas fontes filosóficas) que era organicista no sentido médico e não organicísta no sentido de Jackson e de Spencer: “Uma doutrina do transtorno mental que considero incompleta e falsa e que se designa a si mesma em psiquiatria com o nome de organicismo”.
Lacan vai ainda mais além: para ele, é mínima a diferença entre a posição de Ey e as de Clérambault (seu próprio mestre) e de Guiraud (mestre de Ey), que haviam declarado abertamente organicistas no sentido médico. Lacan critica todo o cartesianismo de Ey e o uso que este fará disso, reprovando-o.
IV - Louco: único homem livre
No texto “O estádio do espelho”, Lacan formaliza o Eu, como lugar de alienação, desconhecimento e de ilusão de autonomia, com que constitui um outro, ponto de ruptura com Ey. Para Lacan, o homem não é livre, mas afiançado pelo simbólico, pelo significante. É nesse ponto que a liberdade se articula com a loucura.
A psicanálise mostra que o sujeito não é causa de si, a determinação do sujeito pelo Outro o aliena aos significantes que selam seu destino, é em tomo da causa do Outro que o sujeito constitui seu mito individual.
O sujeito é alienado aos significantes do Outro, ele também é no entanto separado do Outro justamente por aquilo que constitui a sua causa: o objeto a causa do desejo.
Nas operações de causação do sujeito à causa significante da alienação se opõe à causa real da separação. No texto “A ciência e a verdade” Lacan releva a verdade do sujeito como causa material identificando esta como sendo a própria incidência do significante apontando assim que a linguagem é material - é a linguagem como matéria que é o habitat do sujeito.
Se aqui Lacan aponta para a causa significante, nesse mesmo texto, ele aponta que a “teoria do objeto a” é necessária para uma integração correta, em relação ao saber, e ao sujeito, da função da verdade como causa.” (Écris, p. 876).
Na relação com a causa, Lacan nos aconselha a resistir à magia, à religião e à ciência. A magia, ao operar com a causa eficiente que é a instrumental, supõe o significante respondendo ao significante (como por exemplo o xamã, e até mesmo a astrologia) negligenciando a particularidade do sujeito. Uma prática, de fato, não precisa ser esclarecida para operar. A religião, onde se entrega a causa a Deus, numa tentativa de livrar-se dela, é o aspecto finalista da causa. Na ciência, tenta-se da foraclusão da verdade como causa. A verdade do sujeito, no caso, o desejo do cientista, não interessa, e sim a causa formal.
O texto “A ciéncia e a verdade” já terá colocado em jogo não mais a causa significante mas o “objeto a” como causa real fazendo parte do que estrutura as relações entre os seres humanos.
O louco é aquele que rejeita - esta causalidade, com elaboração do conceito de objeto (tem) causa do desejo, Lacan acha uma nova formulação da liberdade do psicótico: “o “tem” é ainda perguntado no Outro. Digamos que ele tem sua causa em seu bolso, isso é para isto que ele é multidão, ele é causa sui.
Dentro do determinísmo da teoria psicanalítica, uma “margem de liberdade”, de aquiescer ou recusar, de ser responsável de sua posição subjetiva, está suposta aos psicóticos e aos neuróticos.