Vídeo-conferência com Antonio Teixeira
Psicanálise e Evolucionismo
Antonio Teixeira é psicanalista, médico-psiquiatra graduado pela UFMG e também professor; membro da Escola Brasileira de Psicanálise (MG) e da Associação Mundial de Psicanálise; mestre em Filosofia pela UFMG; doutor em Psychanalyse pela Université de Paris VIII; membro do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, do corpo editorial da revista Estudos Lacanianos e da revista Correio da EBP, também membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Faculdade de Filosofia da USP; editor da revista Estudos Lacanianos; autor de inúmeros artigos e livros, entre eles "A soberania do inútil e outros ensaios de psicanálise e cultura", ed. Annablume, 2007; "Psicanálise e Filosofia - O futuro de um mal-estar" (org.), ed. Ópera Prima, 2000 e "O topos ético da psicanálise", ed. EDIPUCRS, 1999.
Dr. Antonio Teixeira: Queria agradecer a apresentação que foi feita por Carla Audi da Conexão Lacaniana, eu gostaria de dizer do meu prazer de estar falando aqui a convite de Márcio Peter Souza Leite, queria agradecê-lo pela honra que ele me propiciou de estar aqui falando com vocês; queria agradecer à Fátima Galindo, que me contactou para que eu pudesse estar aqui participando com esta vídeo-conferência; queria agradecer Angelino Bozzini que o tempo todo me deu auxílio técnico necessário, e ainda teve a grande gentileza de encontrar o link com a passagem inicial do filme “2001 Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick.
Nesse momento eu gostaria de começar minha conferência, lembrando que quando me propus a falar sobre “Psicanálise e Evolucionismo” em torno das efemérides de Charles Darwin, a primeira coisa que me ocorreu, a primeira idéia que me ocorreu foi a proximidade que já deve ser conhecida da boa parte de vocês, essa proximidade que Freud aponta entre a repercussão suscitada pela psicanálise, e pelas doutrinas de Copérnico no plano da astronomia, assim como a de Darwin e a de Wallace no que tange à seleção natural.
É sabido que no entender de Freud, a destituição do eu e da consciência pela psicanálise, destituição do seu lugar de funcionamento no que seria o sítio central da mente, esta destituição, ela estaria em continuidade com os gestos através do qual, tanto Copérnico tanto quanto Darwin, teriam desalojado respectivamente a terra do seu lugar central no cosmos, e o homem do seu lugar diferenciado no plano da criação.
Para explicar então a hostilidade suscitada pela psicanálise tanto no nível das comunidades leigas, quanto nas comunidades científicas, comparável ao furor que teria sido gerado pelos seus dois predecessores, Freud vai se valer na 18ª. Conferência de Introdução à Psicanálise pronunciada em 1922, da idéia de uma ferida narcísica, infringida pela ciência sobre o amor próprio da humanidade.
Esse amor-próprio - Eigenliebe- o termo que Freud utiliza, ele funcionaria de certa maneira para tomar uma expressão cara a Bachelard, como uma espécie de obstáculo epistemológico à progressão da ciência, do momento em que esse amor próprio abrigaria uma recusa relativa à verdade, a uma verdade da qual o eu não quer tomar conhecimento. Então nós temos aqui esta noção de uma verdade sonegada comparável ao conteúdo representativo recalcado pela neurose; e essa verdade então estaria assim recusada, na medida em que ela coloca justamente em questão a imagem sobre a qual o ego se constitui.
O fato portanto do eu se compor como uma função essencialmente imaginária erigida através das sucessivas identificações do sujeito, estaria na origem desta recusa, dirigida à ciência, a ciência a ser compreendida enquanto saber que justamente desestabiliza os esquemas imagéticos do antigo modelo de conhecimento orientado pelo eu.
Nesse sentido a gente pode dizer que teria sido pelo fato dele ter se mantido cativo ainda da imagem, dessa exigência imagética do eu, que Copérnico, aos olhos de Lacan, ele não teria sido tão revolucionário ou copernicano como normalmente se diz, porque embora se possa atribuir a Copérnico o mérito de ter concebido para astronomia o modelo que retira a terra do centro do cosmos, ainda assim ele mantém o centro, a imagem do centro, em seu esquema de pensamento. Coube a Kepler, e não a Copérnico, o mérito de ter rompido com a boa forma imaginária da figura do círculo e do centro, ao propor a trajetória elíptica para se pensar a órbita da terra e dos demais planetas. Então ele vai criar justamente uma figura, ele vai se valer de uma figura que é uma elipse, onde justamente a posição do centro não mais se apresenta, seria uma referência justamente desprovida desse equilíbrio do centro.
Ora, do mesmo modo, podemos dizer que embora Darwin tenha retirado o homem do seu lugar a parte no plano da criação, ele nem por isso deixou de manter o homem no topo da evolução. Isso quer dizer que centro e topo, em ambos os casos, ainda se mantém, como se houvesse uma dificuldade da parte dos próprios cientistas, em aceitar o rompimento com o modelo hierárquico do pensamento, onde centro e topo, seriam figuras, vamos dizer, privilegiadas.
Vocês vão encontrar esta referência na página 797 dos Escritos de Jacques Lacan no seu texto sobre “A subversão do sujeito e a dialética do desejo”.
Do mesmo modo que Copérnico tirou a terra do centro, mas manteve o centro, pode-se dizer que Darwin tirou o homem do lugar a parte da criação, mas o manteve no topo. Manteve-o no topo da evolução. É como se então houvesse uma dificuldade da parte dos próprios cientistas em aceitar o rompimento com o modelo hierárquico do pensamento, no sentido em que o universo da ciência, a despeito dos próprios cientistas, ele é um universo essencialmente isonômico.
No sentido, portanto, em que o universo da ciência, a despeito dos próprios cientistas, é essencialmente isonômico, não admite nenhum tipo de privilégio ou de hierarquia entre seus elementos, e tão pouco da idéia do topo e do centro. Se vocês quiserem uma ilustração mais visível, é possível dizer que um resquício de alquimia ou de discurso pré-científico, na tabela periódica seria a coluna dos gases nobres. Do ponto de vista do saber científico não existem gases vis nem gases nobres, não existe nenhum tipo de privilégio, nem de hierarquia ontológica entre seus elementos.
Então nós podemos falar de uma ferida narcísica, infringida pela ciência moderna ao amor próprio da humanidade, na medida em que o narcisismo se define ou se constitui como uma demanda de privilégio ou de exceção para si mesmo. É a definição aliás que dá Jean-Claude Milner.
E é justamente contra isso que se coloca a psicanálise, ao negar ao eu e à consciência, os privilégios que até então lhe eram concedidos pela psicologia que lhe antecedera. Mas se foi preciso que Freud fosse cientista ou pelo menos reconhecido como cientista, como representante do saber científico na sua época, é porque o sofrimento neurótico com o qual ele vai se a ver, ele decorre essencialmente desse não querer saber da verdade, desse não querer saber do eu, relativo a verdade do desejo inconsciente, ou de uma representação pulsional que não convém com essa harmonia imaginária requerida pelo narcisismo do eu.
Quando Freud adota então como técnica de tratamento o princípio da associação livre, em que ele pede ao paciente que ele diga sem selecionar o que lhe vem à mente, ele visa justamente desvelar a representação do desejo recalcado, reduzindo ao máximo as obstruções causadas pelas exigências imaginárias do ego.
O interessante, contudo, é perceber que Freud percebe que estas representações recalcadas, essas representações essencialmente desarmônicas, que não convém à imagem do eu, elas dizem invariavelmente respeito à realidade sexual do sujeito.
De modo que, se por um lado o eu se constitui mediante a série das identificações que ao longo da vida adquirimos a partir da imagem social em que se representa o sujeito, existiria algo com relação ao sexo, que se coloca numa orientação essencialmente contrária ao projeto civilizatório da sociedade, ou seja, a essa inscrição social do homem via imagem egóica.
Se formos entrar então, finalmente na reflexão psicanalítica sobre a teoria evolucionista, eu poderia me valer da tese mencionada por Freud, de que a aquisição evolutiva da postura ereta, além de causar, é claro, as nossas malditas hérnias lombares e dores de coluna, ela teria gerado uma separação entre o sexo e o olfato, ao mesmo tempo exposto os órgãos sexuais que se encontrariam normalmente ocultos na posição quadrúpede. Disso resulta no entender de Freud tanto uma separação entre o sexo e o olfato, que concorreria para o recalque da sensibilidade sexual, quanto à reação de pudor, que visa reocultar os órgãos sexuais que a postura ereta teria exposto.
Mas eu gostaria de convidar vocês a uma reflexão distinta acerca da relação entre o recalque da sexualidade, que como eu disse, ela é desarmônica, e a evolução do antropóide para o homo sapiens.
No meu entender, esta relação entre a evolução humana e o recalque sexual, ela estaria condicionada por um movimento específico que determina nossa condição evolutiva, o qual diz respeito ao gesto que inaugura o que eu chamaria a partir de Bataille, de Georges Bataille, a percepção instrumental do mundo. Isto por razões que vou tentar expor com mais detalhe na sequência.
Eu sugeri a vocês que vissem a parte inicial de “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, porque ali vocês vão notar claramente que a transição do que a gente poderia chamar de tempo circular, ou da natureza, que seria o tempo da repetição indefinida em que os dias se sucedem monotonamente iguais, justamente o início do filme que vocês assistiram, vocês verão que a passagem desse tempo circular da natureza para o tempo linear, tempo evolutivo, marcado pelo progresso do conhecimento, e pelo surgimento da tecnologia humana que culmina com a representação da nave espacial; pois bem, vocês vão notar ali, que esta transição está representada no filme de Stanley Kubrick, da obra de Arthur Clarke, essa passagem estaria então representada pela aquisição da habilidade instrumental.
Acho interessante observar que a passagem do tempo linear, do tempo circular da natureza, ao tempo linear do progresso da evolução humana está justamente marcada pela aquisição da habilidade instrumental. É no momento em que o símio antropóide se serve de um fêmur de caça como instrumento de combate e defesa se marca alegoricamente na visão de Stanley Kubrick, o ponto de transição para evolução propriamente humana cujo o tempo linear segue o ritmo retumbante do Zaratustra de Richard Strauss, como se vê, é o momento em que, justamente esse ponto da aquisição da habilidade instrumental ela marca alegoricamente no filme de Stanley Kubrick, a passagem do símio antropóide para o homo sapiens.
O que está em questão, como podemos ver, seria a transformação do elemento da natureza em instrumento ou utensílio, e essa transformação seria justamente solidária do tempo linear, do tempo do progresso que só foi possível quando se introduziu no mundo através do trabalho uma relação de exterioridade entre o homem e a natureza.
A transformação do elemento da natureza em instrumento ou utensílio seria então solidária dessa passagem do tempo circular ao tempo linear, tempo do progresso. É possível então dizer que o objeto utensílio é justamente o elemento do qual o sujeito se separa, do qual o sujeito deixa de ter uma participação para submetê-lo a um fim que lhe é exterior.
Se vocês quiserem um exemplo, pensem no protesto romântico de Goethe contra Newton, em seu escrito “A doutrina das cores”, aonde ele vai dizer que o olhar que conhece a cor não é o olhar que mede instrumentalmente a cor como comprimento da onda. O olhar que conhece a cor é o olhar que se deixa fascinar pela cor.
Acontece que, se por um lado, o elemento do mundo convertido em instrumento ele passa a ser considerado em relação a um fim que lhe é exterior, o próprio fim que a gente alcança pelo instrumento, ele acaba sendo colocado nessa mesma perspectiva como um meio para outro fim que por sua vez o transcende sem que se possa determinar qual seria a finalidade última desse circuito instrumental. O exemplo de Bataille é quando ele diz que, assim como ocorre com o pau, o homem se serve do pau, para perfurar o solo, para cultivar a planta, que serve para manter a vida de quem procura o pau para perfurar o solo, para cultivar a planta, e daí indefinidamente. Bataille vai dizer na sua “Teoria da Religião” que o utensílio e o instrumento submete o próprio homem que dele se serve, a servidão desse circuito contínuo, alienando também como um meio pra algo que lhe é exterior.
Percebemos que existe na marca da evolução essa relação do homem com o instrumento em que cada coisa passa a valer como meio pra algo que lhe transcende, e não como um fim em si. Daí resulta que, se a gente for querer pensar como uma utilidade última ou soberana, ou seja, de algo que não seria meio para outra coisa, essa finalidade última só pode ser concebida como algo absolutamente inútil, algo que não pode ser concebido ou convertido em instrumento, seria somente no mundo de seres indistintamente supérfluos que se pode conceder a dimensão soberana daquilo que pra nada serve, daquilo existe como um fim em si, e não como meio em vista de outra coisa. Vocês encontram isso então na “Teoria da Religião” de Georges Bataille.
Se vocês considerarem que o homem se define por sua vez não só como ser de instrumento, mas como ser de linguagem, não deixa de ser interessante constatar que essa humanização instrumental do mundo introduzida pelo trabalho que se atesta inclusive pela presença de utensílios dos mais remotos lugares em que uma comunidade humana se formou, essa captura dos elementos da natureza numa montagem em que cada coisa não vale em si, mas em relação as demais, vemos que essa captura desses elementos numa montagem é a mesma que define a esfera das relações coordenadas pela lei da linguagem. Assim como o objeto encadeado na montagem utilitária deixa de ser considerado como um fim em si para servir apenas como uma peça em relação ao sistema de uso no qual ele se encadeia, na montagem simbólica estruturada pelo significante, pela linguagem, cada significante, cada palavra, cada elemento significante, encontra o seu valor determinado para além de si mesmo, o significante não vale em si mesmo, ele só vale justamente em conformidade com as relações que ele mantêm com os demais elementos do sistema na qual ele se encontra inserido.
Pode-se então dizer, que é nesse mundo humanizado pelo trabalho e estruturado pela linguagem, que Bataille nos convoca a considerar o fenômeno ritual do sacrifício que tinha sido abordado anteriormente nos estudos de antropologia, mas o que interessa a Bataille não é justamente o que foi feito antes dele, que é captar o verdadeiro sentido do sacrifício, conforme tentaram os antropólogos que o antecederam, porque no seu entender o que o sacrifício coloca em suspenso é justamente a dimensão do sentido regulado pelas leis da linguagem, a gente pode afirmar por isso que o sentido do sacrifício consiste no sacrifício do sentido, é porque ele suspeita que a lógica do sentido seja uma lógica derivada do mesmo interesse do mundo instrumental que Bataille propõe que se conceda a experiência do sacrifício fora da regência linguajar do sentido.
O sacrifício para ele é soberano na medida em que o discurso significativo não o informa. Se não faz por conseguinte sentido perguntar qual seria a utilidade social do sacrifício é porque o sacrifício vem romper precisamente com o circuito da utilidade e do sentido. Seria possível acrescentar que a utilidade do sacrifício é o sacrifício da utilidade, uma vez que a sua função, se é que se pode falar de uma função do sacrifício, é de restituir ao mundo sagrado da participação íntima em que as coisas existiam como fim em si mesmas e não como instrumento, pois bem, o sentido do sacrifício seria justamente restituir ao mundo sagrado da participação íntima aquilo que o uso servil ou instrumental do trabalho degradou.
Nós vamos então dizer que o sacrifício se opõe à humanização do mundo pelo trabalho, dissolvendo essa relação de exterioridade que o homem mantém nessa disposição instrumental entre sujeito e utensílio.
Do momento em que o uso servil dos elementos do mundo fez o objeto utensílio daquilo que originalmente não estaria separado do sujeito, o que o sacrifício visa destruir no objeto é o objeto enquanto utensílio, enquanto instrumento, para restaurar justamente a relação original de participação íntima, anterior a essa submissão instrumental.
Um exemplo que me ocorre trazer a vocês, que eu acho que seria importante, se diz respeito a tentativa que se realizou em Mato Grosso de ensinar os indígenas a criar os animais que eles abatem para alimentação, no sentido de impedir o nomadismo entre os índios, de tentar fixá-los numa determinada região. E o problema disso é que os índios criavam uma participação íntima tão profunda com os animais que eles criavam que depois eles não conseguiam abatê-los para uso de consumo. Ou seja, o que justamente colocou em debate aqui, foi a impossibilidade do índio de tratar instrumentalmente como objeto de consumo o animal que ele criava. Acho que esse exemplo ele é bastante interessante para a gente entender o que vem a ser essa vinculação.
Então se poderia dizer que o que se busca nessa relação com o sacrifício seria justamente a intimidade perdida da existência soberana a qual responde ao sentimento do sagrado cujo sentido é dado na destruição que visa o consumo sem proveito, no sentido de retirar o objeto do encadeamento das coisas úteis. Desse desejo decorre então o problema incessantemente colocado pela impossibilidade de ser humano sem cair nessa condição de exterioridade instrumental e ao mesmo tempo dela escapar sem retornar à intimidade da condição animal, da condição anterior, ao que seria a própria condição do homo sapiens.
Desse desejo então a solução a ele teria sido dada segundo Bataille pela idéia, pela proposição limitada da festa, no sentido em que é bem um desejo de intimidade diferenciada de destruição que ali explode embora freado por uma organização social que contenha a festa. O desencadeamento da festa seria assim uma operação de certo modo encadeada, cerceada nos limites de uma realidade a qual a festa se opõe e a qual ela tende a desorganizar.
Acho que desse ponto de vista, a criação do Sambódromo como lugar de cerceamento do carnaval do Rio de Janeiro coloca a perder justamente a própria essência da festa. O carnaval enquanto festa deveria ser desorganizador da vida da cidade, quando você coloca ele num lugar cercado no uso de um espetáculo coletivo, você estaria justamente colocando a perder a sua própria essência.
Então se quisermos retomar a relação que se coloca entre essa transformação instrumental do mundo que condiciona passagem do animal ao homem e o recalque da sexualidade do processo evolutivo, é preciso entender que na relação do sujeito ao sexo se expõe a relação do sujeito ao gozo, o qual se define, como dizia Lacan no Seminário Encore, o gozo que se define justamente como algo essencialmente inútil, como uma dimensão que não se presta a nenhum tipo de utilidade.
Se vocês quiserem um exemplo a respeito disso basta pensar na demanda de amor na qual a pessoa se delicia com a idéia de ser tomada como fim em si mesma e se sente aviltada ao menor sinal de estar sendo usada como meio para algo que lhe é exterior. A metáfora da boca que a si mesma se beija, proposta por Freud para pensar o auto-erotismo, ela define claramente por sua vez o arranjo do circuito pulsional como fim em si mesmo, como algo independente de qualquer finalidade instrumental que a cultura tenta lhe atribuir.
Disso decorre no meu entender que o aspecto propriamente escandaloso da descoberta de Freud vai além do que seria uma suposta liberação do dizer sexual. O escândalo freudiano no meu entender se deve antes ao fato que a psicanálise evidencia de que o sexo não se encontra naturalmente subordinado como coisa ou objeto instrumentalizado do mundo a nenhum tipo de finalidade exterior a sua própria satisfação. Seja essa a finalidade biológica, seja essa a finalidade cultural ou a sublimação.
Como sexo não está subordinado instrumentalmente nem a finalidade biológica (a reprodução), nem a finalidade cultural (a sublimação). Se existe algo de específico com relação ao sexo que o coloca numa posição de escória ou de resto num interior de um mundo instrumental e evolutivamente ordenado, esse algo que a idéia freudiana de uma perversão polimorta infantil ressalta é justamente a soberania da satisfação sexual como fim em si, dissociado de toda espécie de vínculos para com as normas instrumentais da cultura.
Na verdade, segundo observa Bataille, existe com relação ao sexo, um caráter contagioso na atividade sexual que exclui a possibilidade desta exteriorização instrumental, que exclui a possibilidade de uma observação objetiva como coisa neutralizada pela percepção científica. No sentido em que não se pode ter da atividade sexual uma visão objetiva, pela impossibilidade mesma de instrumentalizar essa atividade como um meio para outro fim. É impossível ter do sexo um conhecimento puramente instrumental, uma vez que não se pode conhecer sexo sem ter dele alguma espécie de participação íntima, seja ela na forma da excitação que nos atrai, seja ela na forma do sentimento de náusea que nos causa repulsa. Vocês encontram isso em Bataille no capítulo 7 das Obras completas, na página 169.
Foi Tim Maia que falou que o Brasil é um país que não conhece o progresso porque aqui a prostituta se apaixona e o proxeneta tem ciúmes. Seja qual for a validade dessa observação, ela nos permite, ela tem o valor de nos permitir observar ainda que por uma via anedótica, que o que põe a perder a instrumentalização da pulsão sexual é justamente o fracasso de toda tentativa de destiná-la ao uso instrumental separado do sujeito.
Por outro lado, sabemos que existem várias tentativas de tentar objetivar a vida sexual, em um esforço de tratar o sexo como objeto instrumentalizável do mundo. As pessoas da minha geração, já ouviram falar no famoso Relatório Hite, que consistia em uma tentativa de estabelecer mediante um inventário de depoimentos levantado por essa autora, algum tipo de configuração objetivável dos avatares da sexualidade feminina. Interessante é que são justamente os impasses dessa tentativa de objetivação do sexo que interessam a Bataille quando ele trata do antecessor do Relatório Hite, o Relatório Kinsey, tanto mais que esses impasses revelam a posição de escória do sexo no interior de um mundo instrumentalmente ordenado. O interessante é o que chama atenção particularmente no relatório de Bataille no Relatório Kinsey, é o fato de não ser a devoção religiosa como se normalmente acredita o que inibe a atividade sexual.
O que inibe a atividade sexual, conforme o Relatório Kinsey demonstra, é a devoção ao trabalho, pelo que se pode observar um maior grau de atividade sexual na escória social, no underworld que desse regime se encontra excluída. Pois se é através do trabalho que o homem ordena o mundo dos objetos instrumentais, nesse mundo em que as coisas só valem como meio para outras coisas, essa transformação justamente existe a renúncia ao sexo como algo que para nada serve.
Então, ao passo em que a humanidade, no que ela se define pela relação ao trabalho, tende a sacrificar a nossa exuberância sexual, a sexualidade qualificada de bestial, é o que mais se opõe a redução do homem a essa condição instrumental de objeto/utensílio. Mas se atividade sexual se opõe ao conjunto dos trabalhos humanizados, é porque pelo trabalho se determina a via da consciência por meio da qual o homem saiu da animalidade, e adquiriu a faculdade de discernimento objetivo das coisas.
E na medida em que essa humanidade se definiu pela consciência e pelo trabalho, ela vai justamente maldizer a relação com o sexo, fazendo dessa relação uma experiência que embora soberana, estaria para sempre marcada pelo sentimento de asco e de vergonha.
No momento, então, que não existe nenhuma propensão natural da pulsão sexual a esse arranjo instrumental definido pela cultura, a humanização da criança depende do fato de que se lhe ensinem, como diz Bataille, a estranha aberração que é o nojo. De modo que se para Freud o nojo corresponde ao sintoma recalcamento de uma antiga zona erógena, é na medida que aquilo que instrumentaliza a libido, destinando ela a uma finalidade exterior definida pela cultura, é o mesmo fator que gera, na percepção do sujeito, o sentimento de asco, diante de uma coisa, de um objeto que foi outrora investido libidinalmente.
Então, tanto o asco quanto o sentimento de vergonha que a ele corresponde, ele vai funcionar, segundo Freud, na maneira de diques destinados a represar a libido, forçando o sujeito a interromper o seu curso rumo ao objeto para o qual ela até então fluía. O asco, o nojo, ele, então, somente se manifesta na medida em que persiste enlaçado a esse objeto, uma participação libidinal intima, que faz com que esse objeto se encontre confundido com o sujeito.
Se nós quisermos usar a terminologia de Bataille, nós poderíamos dizer que nós sentimos asco diante daquilo que em relação ao qual ainda mantemos uma participação íntima, a qual, por persistir, contraria a exigência que nos impõe a cultura, de nos desfazer dessa participação íntima, para adquirir uma espécie de relação instrumental com a coisa objetivada.
O problema é que existe nessa participação íntima algo que resiste a ser desfeito, uma intimidade que resiste a ser desfeita, uma espécie de fator de viscosidade inerente a libido, contra o qual o sujeito reage através dos sentimentos de asco e de nojo. E não é por isso casual que nós encontramos em Freud, nas suas considerações sobre a análise interminável, a expressão viscosidade da libido, a qual justamente diz respeito a alguma coisa que não se deixa transformar nessa mutação evolutiva, nesse sentido evolutivo da percepção instrumental do mundo pelo homem. Ou seja, embora esse termo “viscosidade da libido” possa evocar, no dicionário de Jean Laplanche, a representação freudiana da libido como uma corrente líquida que flui, eu considero que o que está ali em questão é muito menos a representação líquida de uma libido que escorre, do que a dificuldade que o sujeito experimenta em dela se lavar. Ou seja, de abandonar esse vínculo de participação íntima para com o objeto que a sexualidade comporta. É como, então, se houvesse um resíduo de participação libidinal pelo qual o objeto resistiria a essa transformação instrumento, nos convocando a uma participação íntima que deveria se interromper com essa transformação.
A experiência do asco seria, então, por sua vez, a reação subjetiva ao elemento viscoso que convoca o sujeito a interromper o encadeamento indefinido das coisas no seu projeto de transformação instrumental do mundo como realidade utilitária, trazendo assim de volta a esse vínculo de participação íntima. A idéia de uma viscosidade da libido diz respeito à relação pulsional do sujeito ao desejo que resiste a ser transformada, que resiste a ser encadeada a uma finalidade externa.
Se nós quisermos explorar o sentido, por assim dizer, metapsicológico dessa relação entre o nojo e a viscosidade, cujo exemplo seria o caso mencionado por Freud da repulsa infantil pela nata, valeria a pena recorrer a um estudo pouco comentado de Jean-Paul Sartre, autor como vocês todos sabem, de “A náusea”, o qual propõe uma verdadeira analítica do viscoso no final do seu último capítulo no livro “O ser e o nada”.
Eu vou pedir a vocês aqui, então, licença para complicar um pouquinho o que eu estou expondo até aqui.
Bom, conforme expõe Sartre, quando você percebe o objeto, a maneira pela qual um objeto é percebido ela se encontra ligada ao modo de sua apropriação. Isso quer dizer que o usineiro percebe a cana-de-açúcar de um modo totalmente distinto de um produtor de cachaça ou de um bebedor de cachaça, se a gente quiser fazer uma comparação extrema. Isso quer dizer, enfim, que haveria, então, na percepção do objeto alguma coisa referida a sua apropriação, no sentido em que a qualidade do objeto seria efeito da conversão do objeto, objeto enquanto ser em si, ao que ele passa a ser para uma consciência que o nega. Consciência que o nega no sentido em que ela percebe o objeto e o condiciona ao seu modo de apropriação.
Essa apropriação, como foi visto, se dá em conformidade com o projeto que determina a percepção instrumental desse objeto como utensílio no mundo definido pelas relações de trabalho, essa apropriação então instrumental do objeto como utensílio. Ela vai se manifestar na própria qualidade do objeto percebido.
Mas seria um engano dizer que a qualidade do objeto se reduz a um simples modo de projeção do sujeito sobre a coisa que ele nega nessa apropriação instrumental. Porque a resistência do objeto em ser apropriado, a resistência que o objeto opõe a esse esforço de apropriação instrumental, essa resistência do objeto que não se deixa transformar em instrumento, que cobra de mim uma intimidade, ela também é percebida mediante uma qualidade. Ela é justamente percebida mediante a qualidade do viscoso, mediante a essa qualidade da viscosidade da qual nos estamos falando aqui.
Isso quer dizer que o projeto pelo qual o homem humaniza o mundo através do trabalho, ele equivale ao plano dessa apropriação instrumental, que consiste em tratar o elemento do mundo como utensílio separado do sujeito, fazendo cessar a relação de original de participação íntima, nos podemos dizer que o elemento viscoso é aquele que se opõe a esse objeto. O viscoso é aquilo que se opõe a esse projeto de apropriação instrumental, pela maneira particular que ele tem de fisgar aquele a quem ele se dá. É como se a viscosidade no seu contato fosse o sentido do ser em si que cobra uma intimidade daquele que pensa dele poder se apropriar na exterioridade do seu uso meramente instrumental.
O elemento viscoso exige um vínculo de participação íntima, que põe a perder o projeto de apropriação instrumental pelo sujeito. Então, se vocês tiverem acompanhando eu prossigo, eu diria então que o elemento viscoso é aquele ser do qual nós acreditamos poder nos apropriar, mas que, ao mesmo tempo, não se possui jamais.
O viscoso se escapa de nós e a nós se une quando dele nós queremos nos livrar. Ele nos escapa como a água. Mas eu não posso me apropriar dessa sua propriedade de escapar-se como a água para me lavar, por exemplo, já que, ao mesmo tempo em que ele escapa como a água, ele igualmente nega se escapar como fuga, colando-se ao corpo do qual ele parece escapar.
A sua fuga líquida, ela é ainda uma permanência sólida a qual se põe a perder ao mesmo tempo em que não nos abandona. Então, a gente pode dizer que se a atividade humana na sua mediação negadora, no seu projeto apropriativo do elemento do mundo concebido como instrumento, a gente pode dizer que em relação a isso haveria no viscoso uma resistência que se recusa a se aniquilar nesse seu ser e, ao mesmo tempo, um amolecimento que seria um aniquilar-se a meio do caminho. O viscoso de Sartre, ele é compreensível, ele me dá a impressão que eu posso possuí-lo, mas no momento que eu creio possuí-lo é ele que me possui. Ali estaria o seu caráter essencial, a sua moleza tem o efeito de uma ventosa. Eu quero largá-lo, mas o viscoso se adere a mim. Ele me aspira, ele cobra de mim uma participação íntima.
Se é, pois por um lado, com a docilidade suprema do ser possuído que o viscoso se dá, mesmo quando não se o quer mais, por outro lado o que se realiza sobre essa docilidade é uma apropriação dissimulada do possuidor pelo possuído. O símbolo que ali se destaca é o que se desdobra no tema das possessões venenosas. Tal como a túnica enviada como presente por Djanira a Hércules, que se cola inexoravelmente a sua pele até levá-lo à morte, o elemento viscoso termina por absorver o sujeito que dele queria se apropriar. Ele seria, pois a revanche do elemento do mundo, do qual o homem, na sua percepção instrumental, acreditava poder dispor sem dele participar em vista de uma finalidade exterior.
Nós poderíamos, então, dizer, que o viscoso seria o anti-utensílio. Nesse aspecto, se Freud vê na viscosidade da libido um elemento não analisável, impossível de modificar, chegando a dizer, chegando a concebê-lo ao modo de um fator constitucional, constante, que sagrava com o envelhecimento, vale arriscar dizer que, pela viscosidade, se define a dimensão não utilizável que a libido manifesta na experiência psicanalítica.
Dela deriva então, a permanência inevitável em todo e qualquer tratamento, de um resíduo sintomático que nunca se consegue se dissipar, sejam quais forem os melhores e mais bem intencionados esforços terapêuticos.
Pois essa falta de êxito diante desse fator, não se deve a uma insuficiência terapêutica que um aprimoramento técnico da psicanálise poderia sanar. O que está em questão aqui é a composição libidinal do sintoma que não pode ser orientada para o tratamento. O que se revela nessa aderência do sujeito ao sintoma intratável, é a própria viscosidade da libido, cuja presença se atesta aos olhos de Freud na forma de uma energia não utilizável comparável ao fator de entropia no sistema físico, isso nos obriga então a considerá-la em sua condição soberana, conforme descreve Bataille, a propósito daquilo que para nada serve e que, portanto, se opõe. No caso na experiência psicanalítica, a todo caso de finalidade terapêutica.
Eu gostaria de talvez encerrar por aqui e então abrir espaço para uma conversação. Agradeço a todos, obrigado.
(SP): Você acredita que a postura ereta e o uso de instrumentos possa ter desenvolvido na espécie humana essa característica de 'neotenia' - de preservar traços juvenis na idade adulta - não existente em nossos antepassados símios?
Dr. Antonio Teixeira: Eu gosto muito dessa hipótese evolutiva sobre a neotenia que Angelino traz. No que eu pude me informar a esse respeito, se haveria uma relação entre a postura ereta e o uso instrumental eu acho que a tese desenvolvida no livro “A falsa medida do homem” de Sthephen Gould, em que ele desenvolve a discussão sobre o fato de que o que estaria na base da habilidade técnica do homem seria justamente a prematuridade.
Ele faz justamente uma comparação, que fala sobre a falsa medida do homem, e justamente ele vai colocar a prematuridade especifica do homem como condicionante dessa neotenia, dessa capacidade de preservar traços juvenis na idade adulta, tal como a brincadeira e a exploração que só existem nos demais animais na fase infantil.
Eu não tenho conhecimento se existe mesmo uma relação entre a neotenia e a aquisição da postura ereta, mas seria talvez um tema a ser, eventualmente explorado. Obrigado pela pergunta Angelino, eu vou pensar melhor sobre o que você coloca.
(SP): Como poderíamos fazer uma leitura lacaniana em relação ao conceito de viscosidade? Estaria mais próximo ao conceito de “a“ou de gozo?
Dr. Antonio Teixeira: Eu proponho que o que seria uma leitura lacaniana ao conceito de viscosidade, respondendo à Andrea Bonadio, eu proponho que o que estaria mais próximo a uma leitura lacaniana em relação ao conceito de viscosidade, diria mais respeito à noção de sinthoma com “th”, sinthoma no sentido de uma adesão residual do sujeito ao modo de gozo que define, ao mesmo tempo, seu problema e sua solução.
(MG): Freud a partir de Abraham traz a hipótese do desenvolvimento da libido que culmina na fase fálica, trabalho desenvolvido pelos pós-freudianos, nesta hipótese teriamos uma psicanálise próximo do desenvolvimento, quando pensamos nas construções de Lacan sobre o objeto poderiamos nos afastar do desenvolvimento para aproximar da estrutura, isto é, existe um resto que caí?
Dr. Antonio Teixeira: Eu acho que vale lembrar que a hipótese do desenvolvimento das fases libidinais é uma hipótese de Abraham. Freud a ela adere porque ele torna pensável uma certa tipologia do sintoma que aparece, por exemplo, em situações em que a satisfação sexual se encontra impedida. Eu acho que existiria justamente esse aspecto, mas eu acho que é importante ter em mente que essa fase de desenvolvimento que Abraham propõe da libido, da satisfação libidinal, ela não deve ser confundida com a evolução. Eu acho que a idéia que me ocorre responder a esse respeito é justamente manter a idéia de desenvolvimento, porque ela nos permite conceber uma certa tipologia sintomática da satisfação libidinal, mas desde que ela não se coloque no nível do que seria uma evolução. Não sei se eu respondi a pergunta.
(SP): Em relação a esta questão do sacrifício, você colocaria o terrorismo sob a forma de auto-sacrifício, -os homens bomba- no sentido desta recusa à simbolização e instrumentalização própria do sacrifício?
Dr. Antonio Teixeira: Aqui, cheguei na questão de Rosana Meiches. Em relação a questão do sacrifício, não, eu não diria, a questão do sacrifício, tal como expõe Georges Bataille, é um fenômeno antropológico porque ele parecia ir no sentido contrário de todo tipo de aquisição evolutiva de uma comunidade ali estudada, e a questão que coloca Bataille do sacrifício, não é o sacrifício exatamente. Pode ser, por exemplo, um sacrifício, uma oferenda aos deuses, pode ser um sacrifício no sentido da destruição de um objeto, mas o sacrifício visado por Bataille diz muito mais respeito a arrancar o objeto de sua condição instrumental para retomá-lo numa espécie de condição anterior de participação intima, tal qual como ele coloca.
Acho que a questão do homem-bomba a gente pode falar que se trata de um sacrifício, se trata, inclusive de uma promessa de gozo, me parece que esses homens que se explodem, eles o fazem diante de uma perspectiva de um Éden, de uma experiência edênica em que eles encontrariam uma vida posterior de puro gozo, mas é uma relação com o sacrifício que no terrorismo, no meu entender, se coloca no sentido de um uso militarizado instrumental dessa aptidão. Eu acho que é um sentido um pouco mais específico que Bataille vai trazer a esse respeito.
(MG): Para sair de uma visão desenvolvimentista, não seria o caso pensar na pulsão como reviramento?
Dr. Antonio Teixeira: Eu acho que sim, eu acho que é importante pensar na pulsão como reviramento, acho que é importante pensar na pulsão como aquilo que encontra no objeto, vamos dizer assim, uma ocasião de satisfação, mas é uma ocasião de satisfação em que o sujeito atravessa o objeto, o esquema que Lacan propõe no seminário XI é justamente de dizer que a pulsão encontra no objeto uma oportunidade de se satisfazer nela mesma. É nesse objeto, vamos dizer, em que ela se satisfaz, mas sem que ele possa ter um sentido instrumental que nós podemos então, fazer valer a idéia de uma transformação do objeto, de uma variação do objeto do que seria a fase do objeto, sem que a gente caia aqui em uma espécie de topologia de configuração evolutiva, em que haveria uma fase que estaria no topo, uma fase da heterossexualidade que estaria no topo e acima das demais fases de desenvolvimento.
(SP): O "É viscoso, mas é gostoso! Hakuna Matata" que aparece no Rei Leão seria uma forma metafórica de abordar a questão da viscosidade libidinal.
Dr. Antonio Teixeira: Gostei da idéia do Angelino Bozzini. Acho que a saída do Rei Leão, que para mim é uma versão maravilhosamente infantil de Hamlet. Claro que inspiradamente falando, eu acho interessante que a salvação do Rei Leão no seu exílio é justamente readquirir uma espécie de relação infantil ao gozo, que é quando ele começa a ingerir aqueles vermes que começam a ser ofertados.
(MG): Seria este reviramento da pulsão talvez o que provoque a insistência, a viscosidade a que se refere Sartre?
Dr. Antonio Teixeira: Acho que sim, mas o ponto da análise de Sartre, vamos dizer, ele não trata da relação pulsional. O que Sartre vai tratar é do que diz respeito a sua própria ontologia, que é aquilo que para ele seria a negação do objeto em si, pelo sujeito que se manifesta negando que o objeto é em si, para colocá-lo tal como ele é para a consciência que dele se apropria, o que seria viscoso na visão de Sartre seria justamente a relação com o objeto que nega essa apropriação. Então talvez seria justamente o em si, isso do objeto que não se deixa apropriar instrumentalmente que se colocaria no nível de um reviramento pulsional. É como se ele colocasse justamente o objeto num nível de reviramento pulsional, no sentido em que a relação pulsional ainda não teria sido ainda abandonada para dar vez ao que seria a relação instrumental.
(SP): O filme trash "A Bolha assassina" talvez seja também uma forma de abordar o asco ao viscoso e o medo que essa viscosidade libidinal provoca, Você não acha?
Dr. Antonio Teixeira: Eu acho ótimo a referência ao filme “trash”, eu acho que isso, vamos dizer assim, é o tema da viscosidade, é o motivo constante que justamente traz à tona essa relação pré-humana, não essa relação pré-humana, essa relação inumana que o sujeito pode manter com relação ao objeto. Eu gostaria de lembrar um pouco a idéia de que em todas as versões de Drácula, mesmo aquela última que foi feita por Polanski, se eu não me engano, é um personagem que só ataca aquelas pessoas que o convidam, ou seja, as pessoas que tem com ele algum tipo de sedução. E é a partir dali que justamente o inumano se manifesta. Eu acho que se a gente define o humano no nível do instrumental, o elemento da viscosidade como anti-utensílio ele nos remete justamente a uma relação com o desejo que estaria colocado fora da normatização humana.
(MG): A idéia da mulher em sua posição de falo, não se refere também a esta viscosidade?
Dr. Antonio Teixeira: Sem dúvida, acho que sim. A idéia da mulher em posição de falo, ela coloca para o homem o problema mais dramático da viscosidade. E o que é mais interessante é que se, justamente, o falo aparece ao homem como uma espécie de uma referência normativa do que seria um bom uso da pulsão, a gente teria talvez ocasião de dizer que a mulher se coloca na posição do falo justamente por ela estar desprovida da medida fálica é como se ela se colocasse na parte da leitura que dei do texto Jean-Paul Sartre, é como se ela se colocasse naquela referência do objeto que se entrega com extrema docilidade, não sei se você se lembra, mas a idéia é, que eu acho que seria mais fundamental seria essa. Ou seja, o elemento que se entrega com extrema docilidade, que parece se entregar à sua apropriação, e quando o homem vai se dar conta é ele que se vê apropriado. Não é, acredito, casual que tenha sido Djanira quem presenteou Hércules com aquela túnica que se adere ao seu próprio corpo e que lhe custa a vida. Ele vai tentar arrancá-la e ela sai junto com a sua pele. Eu acho que a mulher na posição de semblante, ela tem essa característica do elemento viscoso do qual faço referência a Sartre.
(SP): Poderia explicar um pouco mais sobre o sentido do sacrifício e o sacrifício do sentido? Parece-me que é um tema pouco falado pelos psicanalistas...a questão do sacrifício. Por quê?
Dr. Antonio Teixeira: Bom, no que diz respeito ao sentido do sacrifício e ao sacrifício do sentido é um tema que, de fato, pouco falado pelos psicanalistas, eu de certa maneira, penso que Lacan teve uma grande influência de Georges Bataille. Eles frequentaram uma comunidade comum, não sei se Lacan chegou a frequentar o Colégio de Sociologia, do qual fazia parte Michel Leiris, Georges Bataille, Roger Caillois mas eu estou convencido de que, quando Lacan faz referência, por exemplo ao sacrifício aos deuses obscuros, ele tem em mente, justamente, a idéia de que essa relação do sujeito com o sacrifício é uma relação estrutural. É uma relação estrutural que o sujeito tem com mais de um gozo, com relação a uma coisa que não se deixa informar no nível do significado. É nesse sentido que a gente pode falar que o objeto a estaria ligado, justamente, àquilo que não se coloca no nível da regência do sentido.
(SP): Mas não se trataria da mascarada mais do que a mulher fálica?
Dr. Antonio Teixeira: De fato, acho que a mascarada, talvez eu esteja falando de coisa que eu não domine tanto, mas eu gostaria de saber se Carla Audi estaria de acordo no que tange a uma relação entre a mascarada e a mulher fálica, ou você vê uma dissociação. Você acha que a mulher fálica ... porque uma coisa é a mulher que se coloca em posição fálica, no sentido muito comum da histeria, que a gente pode falar da identificação ao falo, outra coisa é que se coloca como falo para um homem, outra coisa é no lugar da resplandescência fálica, no lugar daquele objeto mais do que qualquer outro.
Vale lembrar que quando Lacan diz que a mulher é fálica é uma coisa diferente da mulher se colocar como falo. Ela se coloca como falo de corpo inteiro, justamente trazendo, vamos dizer, no desdobramento corporal alguma coisa que uma o homem acredita ser o grande objeto de valor. É nesse sentido que um homem, por exemplo, se vangloria diante dos amigos de estar tendo um caso, ou de estar com uma mulher muito bonita. Ou seja, de essa mulher é que adquire esse semblante fálico. Eu tenho a tendência a dizer que essa mulher que se coloca como falo, distintamente da mulher fálica, que se identifica histericamente ao falo, ela estaria mais posicionada no nível do semblante. Não sei se Carla Audi estaria de acordo comigo.
Talvez não tenha tido propriedade de responder a pergunta de Carla Audi com clareza. Talvez eu tivesse que preparar essa resposta, mas eu acho que as observações colocadas são muito pertinentes.
(MG): Esse sacrifício do sentido estaria ligado a idéia de letra em Lacan?
Dr. Antonio Teixeira: Sim, eu gostaria eventualmente de dizer que sim, o sacrifício do sentido, a letra é justamente a possibilidade de um manejo sem sentido. A letra de gozo, quando a gente faz referência ao W do Homem dos lobos e a referência à posição a tergo que ele assiste, que Freud vai justamente vislumbrar alguma coisa nesse sentido. Ou seja, se a letra se coloca justamente no lugar de uma certa interrupção do sentido, da insistência significante do sentido, a gente pode dizer que a letra vem justamente interromper essa regência do sentido para colocar uma relação que pode ser dita, vamos dizer, mais imediata do sujeito com o gozo.
(SP): Qual ligação entre: "Deus é A mulher" x Darwin?
Dr. Antonio Teixeira: Bom, a ligação entre Deus e A mulher versus Darwin? Esse X quer dizer versus? Bom, eu francamente teria que pensar um pouco sobre essa resposta, mas me ocorre o livro de François Regnault – “Deus é Inconsciente” - em que ele justamente estabelece o Deus no lugar de exceção e como o Deus da ciência moderna e o Deus de uma certa regulação, e o Deus que é colocado no livro do Não-todo, o Deus, vamos dizer assim, do mundo do milagre generalizado. Eu acho que Darwin, na medida em que ele aposta no Deus da ciência, muito embora ele tivesse sido evolucionista, Darwin, em nenhum momento que eu saiba, se declarou ateu, eu acho que o Deus darwiniano é o Deus que se coloca no lado masculino daquilo que estabelece a possibilidade de um universo.
(MG): Os diques, as represas da libido que aparecem como o asco, sinalizam a náusea causada por uma insistência, uma impotência diante da insistência da pulsão?
Dr. Antonio Teixeira: Os diques, as represas da libido, aquilo que todos nós experimentamos, Freud vai dizer assim que são diques, alguma coisa que impede a libido de alcançar o objeto na sua intimidade porque a humanização do homem requer que ele recue, que ele abandone a participação íntima para estabelecer uma relação que se pode dizer, instrumental. Quando a gente experimenta náusea com relação ao objeto é justamente quando existe uma insistência, justamente uma insistência da libido em percorrer esse caminho diante do qual nós somos impotentes para resistir.
Eu acho que isso pode ser muito bem colocado, não só no nível da náusea, mas no nível do que a gente chama de parceiro sintoma. Quando Jacques-Alain Miller vai afirmar que toda a parceria é diante de justamente uma falta de uma programação da relação sexual, diante da ausência de uma programação nós vamos ter a parceria sintomática. Acho que a parceria sintomática, justamente o parceiro que nos faz mal e que nós não conseguimos nos desligar, eu acho que por isso se traduz muito claramente essa viscosidade, essa insistência do laço íntimo que o sujeito mantém com a libido, da libido com o objeto.
(MG): O amor seria o anti-utensílio?
Dr. Antonio Teixeira: Sem dúvida, o amor seria o anti-utensílio. Mas vale lembrar que o amor seria o anti-utensílio, o amor seria, de certa maneira, a crença que o sujeito mantém com relação a esse laço de participação íntima. Eu acho que a visão, por exemplo do jovem Werther diante de Charlotte é muito próxima, o fascínio do olhar do jovem Werther por Charlotte é muito próximo do olhar de Goethe pela luz. Acho que Goethe é amoroso da luz, das cores, do tratado sobre as cores, do mesmo modo que o jovem Werther seria amoroso da imagem de Charlotte.
(SC): Estou com dificuldade com o programa, mas é o que eu iria perguntar: o amor é questão de fé na intimidade do sujeito Goethe, Werther).
Dr. Antonio Teixeira: Maria Luiza Renaux, se a questão de fé na intimidade do sujeito Goethe, Werther... Sim, eu não cheguei a levantar aqui a questão da fé, mas a questão da fé a gente pode colocar no nível do que não tem encadeamento significante. A gente pode dizer que a fé é um tipo de adesão libidinal que poderia ser tratada nesse nível.
(MG): Você se referiu a Drácula como aquele que ataca somente a quem tem uma relação de sedução isto teria algo haver com a apreensão dele por sua vítima?
Dr. Antonio Teixeira: Eu diria que é a vítima que justamente se deixa tomar por esse aspecto inumano que o personagem ali representa, não é o Conde Drácula que se deixa levar, mas sim justamente a sua vítima.
(Conexão Lacaniana): Vamos terminando para deixar dr. Antonio descansar
Dr. Antonio Teixeira: Bom, eu não estou cansado, para mim está um prazer continuar conversando com vocês, mas se vocês acham que é o momento, a gente pode também encerrar. Eu vou passar a palavra à Carla, agradecer a apresentação, agradecer a vocês pelo cuidado e quero dizer que estou muito honrado com esse convite.
(SP): O tema da vídeo-conferência nos servirá para futuras investigações e reflexões. Obrigada pelo ensinamento. Muito obrigada pela sua conferência, parabéns pelo tema abordado e pela sua clareza!
(Vários agradecimentos)
(Conexão Lacaniana): Gostaria de agradecer em nome do dr. Márcio Peter e de sua equipe pela excelente conferência que nos brindou.
Dr. Antonio Teixeira: Obrigado. Eu teria muito prazer de participar de uma outra video-conferência, queria igualmente agradecer o dr. Márcio Peter e sua equipe. Espero continuar participando do trabalho de vocês. Podemos encerrar, muito obrigado, boa noite a todos!
Núcleo Márcio Peter de Ensino - Conexão Lacaniana
Curso OnLine "Deus é A Mulher - A feminilidade em Lacan"
Conferência 29/03/09 | Moderação: Conexão Lacaniana