NÚCLEO MÁRCIO PETER DE ENSINO - CONEXÃO LACANIANA
CURSO ONLINE 2009/1 - "DEUS É A MULHER - A FEMINILIDADE EM LACAN"
Vídeoconferência com FANI HISGAIL
DIÁLOGOS ENTRE PSICANÁLISE E SEMIÓTICA
Fani Hisgail é psicanalista, graduada em Psicologia, doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001), professora pelo COGEAE da PUCP-SP, pesquisadora nas áreas de semiótica e psicanálise, mídia, cultura e psicopatologia da vida cotidiana. Autora de "Pedofilia - Um estudo psicanalítico", Iluminuras, 2007; "14 Conferências sobre Jacques Lacan", Escuta, 1989; "Biografia: Sintoma da Cultura", Hacker Editores, 1997 e "A ciência dos sonhos", Unimarco, 2000; além de vários artigos em jornais, revistas e periódicos.
Conexão Lacaniana: Eu gostaria de dar boa noite a todos e boas-vindas aos alunos, em especial à doutora Fani Hisgail. Em nome de Márcio Peter e da Conexão Lacaniana, gostaríamos de dar início à conferência. Este curso, que fala sobre a questão feminina, é o quinto curso da Conexão Lacaniana, sob o tema Deus é a Mulher - A feminilidade em Lacan. Nossa conferencista será Fani Hisgail, que vai falar sobre os Diálogos entre Psicanálise e Semiótica.
As informações já foram passados por escrito, então, depois da conferencia, ela abrirá para perguntas. Os alunos levantarão a mão no raise hand e, assim, vamos colocar as perguntas, na mesma ordem. Então, passo a palavra para à nossa convidada.
Fani Hisgail: É um enorme prazer e uma satisfação muito grande estar aqui com vocês, porque o meu querido amigo Márcio Peter é uma pessoa muito especial e porque temos uma longa história com a Psicanálise. A satisfação de estar aqui e participar desse espaço tão importante que é a Conexão Lacaniana é sincera e espero que vocês todos, do corpo docente, assim como os alunos, tenham muito sucesso nessa empreitada.
Aliás, a conferência on line é um acontecimento muito interessante e tem relação com o tema que vou abordar, uma vez que estamos usando uma mídia, que é a internet, para nos comunicar. É a primeira vez que passo por essa experiência. Então, a semiótica aparece aqui porque se ocupa das mídias e da comunicação entre as pessoas. A semiótica tem uma conexão importante com a psicanálise, uma vez que aqui estamos conectados pelo meio eletrônico, recebendo a mensagem em tempo real.
Enfim, os meus agradecimentos a todos vocês.
Em primeiro lugar devemos tentar definir a semiótica e qual é a relação com a psicanálise.
Bom, para quem nunca ouviu falar em semiótica, trata-se da teoria geral dos signos, uma ciência que estuda a lógica dos signos na linguagem. O grande construtor da semiótica foi o filósofo, matemático e cientista Charles Sanders Peirce, um americano de Massachusetts que viveu no final do século 19 e começo do 20, contemporâneo de Freud. Mas eles não se conheceram. No Brasil, essa interlocução e o diálogo da semiótica com a psicanálise vai surgir mais ou menos na década de 80 com duas grandes estudiosas e pesquisadoras interessadas por essa conexão – psicanálise e semiótica – que foram as professoras do curso de pós-graduação de Comunicação e Semiótica da PUC de São Paulo, Samira Chalhub e Lucia Santaella. Samira faleceu em 1998 mas foram elas que deram o start para esse frutífero diálogo que ainda está em construção e que é definido como uma linha de pesquisa denominada Semiótica Psicanalítica.
Tanto Samira Chalhub como Lucia Santaella, duas semioticistas de formação inicial começam a estudar psicanálise na década de 80 com Oscar Cesarotto e Márcio Peter Souza Leite, dando início ao estabelecimento de conexões com a psicanálise e da semiótica peirceniana com a psicanálise.
Segundo a professora Lucia Santaella no livro Matrizes da Linguagem e Pensamento, de 2001, para Peirce, “a lógica tem dois sentidos, um que é mais estreito e outro que é mais vasto. No primeiro, a lógica é a ciência das condições necessárias para se atingir a verdade”. No outro sentido, é sobre a “semiótica geral, tratando não apenas da verdade mas também das condições gerais dos signos”, isto é, “a ciência das leis necessárias do pensamento”. Então, aqui, a gente vê um ponto de conexão com a psicanálise. Vale a pena ressaltar que, do ponto de vista dessa palavrinha “pensamento”, devemos distinguir pensamento do saber do inconsciente – aquele saber que não se sabe – do pensamento cartesiano, a construção do pensamento a partir dos signos.
A semiótica geral trata não apenas da verdade mas, também, das condições gerais dos signos, como signos. E o que significa isso? Significa que existem leis de evolução do pensamento, o que coincide com o estudo das condições necessárias para a transmissão de significado de uma mente à outra e de um estado mental para outro. A noção de signo para Peirce inclui aqui, “qualquer pintura, o grito natural, o dedo apontando, uma piscadela, uma mancha num lenço, a memória, o sonho, a imaginação, conceito, indicação, sintoma, letra etc.”. O signo é uma abstração, uma abstração que dá o início da formação do pensamento.
O signo é também uma convenção, diferente do significante. O significante, tal qual Lacan define, como um enigma. A psicanálise vai atrás, em conexão com a lógica peirceana, em direção à verdade. O significante, a cadeia significante é aquela que produz um sujeito e, como tal, uma significação que vai em direção ao saber. Assim, a construção da subjetividade revela o sujeito do insconsciente.
O sujeito é efeito da linguagem, esse sujeito desejoso, atravessado pelo signo, pelo signo peirciano, digamos assim, porém é marcado pelas formações do inconsciente. A psicanálise se beneficia da semiótica mas não precisa da semiótica para existir. A semiótica também não precisa da psicanálise para existir. Entretanto, a semiótica não dá conta do real e, por esse aspecto, precisa, sim, da psicanálise. Precisa da psicanálise porque a psicanálise não só vai em direção ao real, como o significante lacaniano, mas marca presença na dimensão e no campo da semiótica.
Até aí vocês estão conseguindo me acompanhar? Suponho que sim.
Vou apresentar o texto Os 10 Cata-ventos de autoria de Oscar Cesarotto, que é o coordenador do curso lato sensu Semiótica Psicanalítica Clínica da Cultura, promovido pela Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (COGEAE) da PUC. Desde 2000, o curso busca aprimorar e formalizar essa linha de pesquisa chamada de semiótica psicanalítica.
OS 10 CATA-VENTOS (Oscar Cesarotto)
1. A linguagem é a condição, tanto do inconsciente, quanto da semiótica. Sua pluralidade abrange o visual e o sonoro, junto corn o verbal, prioridade da psicanálise.
2. A complexidade da realidade humana se presta para ser lida como texto, e escutada como discurso.
3. Os conceitos de simbólico, imaginário e real, as três dimensões habitadas pelos falantes, permitem pensar simultaneamente a subjetividade e o mundo dos signos, nas suas implicações recíprocas.
4. A Semiótica incrementa a Psicanálise com seu repertório de meios e linguagens. A Psicanálise introduz na Semiótica o inconsciente e a libido.
5. A Semiótica Psiconalítica estuda as consequências psíquicas dos signos culturais.
6. A SP é uma disciplina heurística que trabalha com conjecturas e hipóteses.
A Clínica da cultura faz diagnósticos por imagens e palavras.
7. EXEMPLO: O mal-estar da cultura capitalista é a causa da psicopatologia da vida cotidiana, e de um futuro sem ilusão.
8. Os sintomas da cultura são as contradições da sociedade, seus impasses e soluções de compromisso, cujas manifestações e latências podem ser descritas, analisadas e interpretadas.
9. As representações da sexualidade, suas imagens e metáforas, constituem um interesse específico da SP, por colocar ern questão a significação do falo na contemporaneidade, um problema ao mesmo tempo semiótico e psicanalítico.
10. SLOGAN: A Semiótica entende o funcionamento sígnico da Internet, mas só a Psicanálise explica por quê os sites mais visitados são os de sacanagem.
Retomando: o signo peirciano, como li no texto da Santaella, pode representar inúmeras coisas. Pode ser uma piscadela, pode ser um grito, uma mancha, pode se apresentar como uma imagem. Ser for uma imagem, vai ser um ícone; mas eu não vou entrar nisso não; só para vocês ficarem com muita curiosidade, um dia, se tiverem interesse, começem a estudar semiótica.
No primeiro cata-vento, a linguagem – e não estou falando da linguística, embora devemos a Saussure a elaboração do modelo sígnico e a Peirce a concepção da semiótica geral – para Freud e, mais tarde, para Lacan, é a condição do inconsciente, do mesmo modo que é para a semiótica.
O segundo cata-vento é “a complexidade humana que se presta para ser lida como texto e escutada como um discurso”. É bom aqui fazermos uma distinção pois, discurso, na psicanálise, envolve os quatro lugares definidos por Lacan, no seminário O Avesso da Psicanálise; e do ponto de vista da semiótica, o que nós temos é uma definição do discurso (diferente da de Lacan), que corresponde à mensagem.
O terceiro cata-vento são os conceitos de simbólico, imaginário e real, as três dimensões habitadas pelos falantes, que permitem pensar, em simultâneo, a subjetividade e o mundo dos signos, com as recíprocas implicações.
De fato, o que parece interessante, é pensar o seguinte: na Abertura da Sessão Clínica, de 1977, Lacan vai dizer que devemos dar luz ao significante, porque o signo designa uma orientação, uma flecha. É como se fosse, então, o dedo que indica a lua. A lua não é o dedo. Logo, se o signo dá a condição para que o significante apareça, o que nos interessa – do ponto de vista dessa conexão semiótica e psicanálise – é pensar o signo à luz do sintoma da cultura.
Ou, melhor dizendo, vale ressaltar a clínica da cultura pelo viés da psicanálise em extensão, do signo representado– seja pela face visual, que envolve a imagem, seja pelo sonoro, isto é, a pulsão invocante, e pelo verbal – e de que modo esse signo afeta as produções da cultura. Entretanto, nós temos de reconhecer que essa produção ou esses fenômenos da cultura, que demarcam a clínica da cultura, só podem ser compreendidos desde que se entenda o que é o sujeito do inconsciente, o sujeito marcado pela linguagem, o sujeito marcado pelo significante.
Na Abertura da Sessão Clínica, o que diz Lacan – quando está definindo o que é a clínica psicanalítica – que o erro é sempre da ordem significante e o signo comparece como uma flecha.
O quarto cata-vento: a semiótica incrementa a psicanálise com o repertório de meios e linguagem. A psicanálise introduz na semiótica o inconsciente e a libido.
Na conexão entre psicanálise e semiótica, em relação aos fenômenos e sintomas da cultura, a psicanálise tem muito a se beneficiar das proposições da semiótica peirciana. Por outro lado, a semiótica será muito mais enriquecida considerando o inconsciente e a libido. Por exemplo, a semiótica convoca todas as mídias – e aqui vamos entender mídias como a mídia impressa, jornais, revistas, assim como a internet, a mídia virtual – ou seja, o meio é a mensagem, parafraseando Marshall McLuham.
A vídeo-conferência online é um meio que possibilita a mensagem. É o emissor que vai em direção ao receptor. Como isso, chega na mente de cada um: essa é a questão que tem produzido várias inquietações no campo das pesquisas que estamos desenvolvendo com a semiótica psicanalítica. Uma vez que existe a extensão com a máquina, o humano, a máquina e essa conectividade entre o homem e a máquina, o sujeito do inconsciente adéqua-se ao ambiente pós-humano.
O quinto e sexto cata-ventos estudam as consequências psíquicas dos signos culturais. Portanto, é uma disciplina heurística, que trabalha com conjecturas e hipóteses. A clínica da cultura faz diagnósticos por imagens e palavras.
No sétimo, o mal-estar da cultura capitalista é causa da psicopatologia da vida cotidiana e de um futuro sem ilusão. No oitavo, os sintomas da cultura são as contradições da sociedade, os impasses e as soluções de compromisso, cujas manifestações e latências podem ser descritas, analisadas e interpretadas. Nono: as representações da sexualidade, as imagens e metáforas, constituem um interesse específico da semiótica psicanalítica, por colocar em questão a significação do falo na contemporaneidade, um problema ao mesmo tempo semiótico e psicanalítico.
Por último, o slogan: a semiótica entende o funcionamento sígnico da internet mas só a psicanálise explica porque os sites mais visitados são os de sacanagem.
Neste ponto, podemos pensar de que maneira – no caso do psicanalista – podemos utilizar e provar do caldo da semiótica, para elucidar os fenômenos da cultura. Quem tem interesse em estudar semiótica psicanalítica são os publicitários; o pessoal de marketing e jornalistas, além dos psicólogos e este tem sido o nosso público e os nossos grandes interlocutores. E nós, psicanalistas, estamos aprendendo muito com esses parceiros, para conhecer a lógica que rege a demanda do consumidor com o objeto de desejo do sujeito.
O meio é a mensagem, porém, o sujeito em questão só é afetado pela publicidade uma vez que ele se encontre numa postura de alienação. E a gente sabe que a grande massa faz parte da alienação do ideal do Outro. Um dos fenômenos que a gente pode dar destaque – para pensar a clínica da cultura – perante à publicidade, corresponde aos dois grandes estabelecimentos que fazem muito sucesso na vida cotidiana do paulistano: as drogarias e as panificadoras.
Vocês já devem ter notado a dificuldade de estacionar o carro tanto em frente às panificadoras assim como nas proximidades de drogarias. São dois dos lugares mais disputados pelos paulistanos. É interessante notar que o brasileiro tem praticado mais esportes porém isso não significa que ele esteja menos obeso. A obesidade mórbida tem aumentado entre os brasileiros. Nós sabemos também que o padecimento psíquico vai desde essas novas modalidades de gozo, que passam tanto pelas panificadoras como pelas drogarias, ao produto mais acessível para o consumidor. E, se você entra numa panificadora, a vitrine revela inúmeras possibilidades de satisfação oral. Entretanto, todas aquelas ofertas não garantem a discriminação de um produto do outro. O que diferencia um produto de outro é o tamanho, é a forma – de novo, é a imagem. Todavia, a gente observa que a massa é a mesma para um produto e para o outro.
As panificadoras assim como os shopping centers – tudo que faz parte da nossa vida cotidiana na sociedade atual – são lugares de descarga libidinal. Toda descarga libidinal envolve um custo, envolve um pagamento. Como diz Lacan na Abertura da Sessão Clínica, todo discernimento de coisas envolve um custo. As panificadoras são lugares que promovem a alienação, do mesmo modo que as drogarias, que estabelecem um tipo de lugar de comércio que considera o consumidor no ponto em que ele fica dependente das drogas e dos farináceos.
Esses fenômenos que a gente observa na cultura e que, de fato, têm produzido efeitos devastadores no padecimento psíquico são fenômenos que ocorrem porque a publicidade explora esses ambientes em que o sujeito se vê seduzido por ofertas. Ofertas que promovem e mantém o sujeito no padecimento, com algumas consequências psíquicas para o sujeito.
Voltando à questão de que o meio é a mensagem, na semiótica psicanalítica, interessa muito o fenômeno humano a partir desse atravessamento do signo como um conjunto de estímulos que o sujeito está recebendo a todo instante, por intermédio de todas as mídias. Pela mídia, a gente pode detectar esses fenômenos.
Este é um ponto importante da conexão entre a semiótica e a psicanálise. Podemos detectar os fenômenos da cultura, ou seja, o mal-estar da cultura, porque as mídias – o meio – produz uma mensagem que afeta o sujeito.
Outro exemplo, retirado da revista Época de 31 de maio de 2009, mostra um casal de mulheres homossexuais jovens. Segundo a matéria, houve uma relação entre essas duas mulheres e, uma delas, está grávida do óvulo da outra. A que está grávida, recebeu o embrião da parceira e esse casal está pleiteando que, na hora do nascimento, se possa registrar essa criança com o nome das duas mães.
Do ponto de vista formal e jurídico, isso não seria possível, entretanto aqui nós temos uma nova modalidade de parceria, bastante curiosa para que a gente comece a refletir, porque o conceito de família tem passado por uma transformação. E nós sabemos que, como o Márcio Peter colocou no livro sobre a falta – A Negação da Falta (Márcio Peter de Souza Leite, editora Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1992) – o homem é reconhecido como supérfluo, no que diz respeito à fecundação. E, de fato, parece isso. Hoje, o homem não se faz mais necessário.
Do ponto de vista da psicanálise – e aí entra a grande contribuição da psicanálise – não é apenas uma questão de gênero. Não se trata de reconhecer que a criança que vai nascer possuirá duas mães e a gente sabe que essa criança não vai ter duas mães, mesmo que essas duas mulheres tenham isso como uma fantasia. É interessante que nós podemos resgatar no texto do Freud, Romances Familiares, 1909, porque se trata da fantasia inconsciente infantil da infidelidade da mãe. Entretanto, temos aqui uma configuração social, inclusive até biológica, que não dá conta do que há por trás de tudo isso.
Esses fenômenos que a cultura vai nos oferecendo e, sempre, pela mídia, têm sido objeto de interesse para nós pesquisadores da semiótica psicanalítica. Estou mencionando alguns mas podemos conversar um pouco mais sobre isso. Só vou lançar alguns fenômenos para a gente ir conversando já que o tempo é curto.
Um outro sintoma da cultura que agora diz respeito a um dos meus temas prediletos tem a ver com a pedofilia, pois escrevi uma tese de doutorado sobre isso, no caso a pornografia eletrônica, a pornografia infantil na mídia eletrônica. Todo aquele que tem contato com a exploração de imagens de crianças, digitais ou eletrônicas, todo o sujeito que estabelece uma relação com a pornografia infantil é um pedófilo. Essa relação absurda serviu para confundir um sujeito diagnosticado como perverso com um pedófilo. Ele não é pedófilo porque explora a pornografia infantil eletrônica. Mas, do ponto de vista dessa ideologia policialesca, todo aquele que mantém relação com a pornografia infantil é visto como um pedófilo.
A pornografia infantil eletrônica pode ser um elemento que breca o ato pedófilo. Pode ser um estímulo para fantasias aflorarem, para o sujeito construir uma animação da fantasia sexual, sem conduzir ao ato. Então, aqui nós temos esse meio que é a internet que produz uma mensagem e a mensagem é a de que toda criança pode ser um objeto erótico do adulto. Essa imagem da pornografia infantil eletrônica revela algo que não estava presente no imaginário coletivo global.
Na hora em que isso fica a céu aberto está criada a margem para a construção de pensamentos retrógrados que só desviam da questão central, um dos grandes tabus, que é a sexualidade perversa polimorfa na infância. O pano de fundo da pedofilia é a sexualidade perversa polimorfa, então convocamos mais um texto de Freud, Os Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade Infantil, que precisa ser considerado, uma vez que há uma espécie de infantolatria, como o sentimento de infância que cada época anuncia.
Do mesmo modo que a constituição da subjetividade importa ao ser humano, ele é também uma pedra no calçado da neurociência. Para os psicanalistas, a subjetividade é o objeto de estudo e, no fenômeno da pedofilia, o que precisa ser recalcado é aquilo que se apresenta como uma grande conexão com a sexualidade.
Portanto, a sexualidade infantil é associada ao quê? À pulsão de morte. Convocamos um outro exemplo freudiano na Psicopatologia da Vida Cotidiana, 1901. No capítulo sobre o esquecimento de nomes próprios, temos o caso do significante Signorelli, que é a grande contribuição quando Freud faz essa articulação entre sexualidade e morte. E sexualidade e morte têm se apresentado, no mundo contemporâneo, a partir de várias modalidades.
Eu não sei se a gente ainda tem mais tempo, já são sete horas, vocês podem me responder alguma coisa, como é que nós estamos? Temos mais tempo?
Conexão Lacaniana: Temos sim.
Fani Hisgail: Ótimo. Algo que não mencionei mas acho que é importante diz respeito à Traumdeutung, a ciência dos sonhos. A Interpretação dos Sonhos é um texto capital porque aí aparece, pela primeira vez, a definição de inconsciente e, como Freud coloca tão bem, o inconsciente ex-siste porque funciona segundo o deslocamento e a condensação. Ou como duas figuras da linguagem que são a metonímia e a metáfora.
A ciência dos sonhos revela a linguagem como elemento simbólico e, portanto, o inconsciente, estruturado como uma linguagem. A ciência dos sonhos tem, digamos assim, um espaço que contém o estudo da semiótica. E, aqui, a possibilidade de pensar a semiótica já que a semiótica também vai tratar da metáfora e da metonímia.
O modo como a semiótica define a metáfora e a metonímia fornece uma condição interessante para a gente pensar o funcionamento e as formações do inconsciente, dado que, o analista é convocado, se apresenta e surge como um significante perante às formações do inconsciente.
O que eu quero dizer é que o analista surge porque há a formação do inconsciente. Se não houvesse formação do inconsciente não haveria analista. E a semiótica se apresenta como um possível instrumento para se pensar tanto a mensagem, onde se situa o desejo em relação a um sujeito definido pela articulação com o significante. Lacan dirá assim que a linha horizontal, a linha do significante, é atravessada por dois pontos que são o lugar do código do Grande Outro, do tesouro do significante, e outro ponto que é o lugar da mensagem.
Se, na ciência dos sonhos, nós temos uma semiose, isto é, a ação do signo, uma lógica se apresenta entre o conteúdo latente e o manifesto do sonho. O campo semiótico distingue os enunciados provenientes da metáfora e da metonímia: condensação e deslocamento. O “umbigo do sonho” representa a flecha apontada para o código que emite uma possível significação da mensagem.
É dessa forma que nós estamos tentando formalizar essa linha de pesquisa que é a semiótica psicanalítica.
Penso que há muito o que descobrir e desenvolver, já que a semiótica psicanalítica é uma interlocução, um diálogo original que adquire um sentido quando relacionado com as categorias da ciência da linguagem, tal qual afirma o filósofo italiano Giorgio Agamben, no livro Infância e História, da editora Humanitas, de 2005, ao se referir à teoria da infância. Com os livros Psicanálise & Conexões, da editora Hacker, organizado por Samira Challub, em 1993, Biografia: Sintoma da Cultura, da mesma editora, de 1997, e A Ciência dos Sonhos, um Século de Interpretação, da editora Unimarco, de2000, os dois últimos organizados por mim, além das monografias reunidas pelos alunos do curso de Semiótica Psicanalítica: Clínica da Cultura, COGEAE-PUC/SP, conferimos uma produção instigante e dinâmica.
Bom, acho que a gente poderia encerrar e começar a fazer o debate. Vocês estão de acordo? Fico aguardando a manifestação de alguém.
Conexão Lacaniana: Nós vamos dar inicio às perguntas. Peço aos interessados que coloquem alguma questão, levantem a mão e aí nós passaremos na ordem de chegada para a Fani responder.
Pergunta (SP): Em que estrutura estaria encaixada a pedofilia? No plano da neurose, psicose ou perversão?
Fani Hisgail: Do ponto de vista da psicanálise, a pedofilia é uma perversão, uma perversão sexual, segundo o DSM-IV-TR é uma parafilia. Embora a pedofilia seja definida como uma perversão sexual, ela surge como um sintoma da cultura devido aos inúmeras notícias de casos de abuso sexual infantil.
Eu me lembro que quando comecei a fazer minha pesquisa, na década de 90, poucas pessoas sabiam o que significava essa palavra. Hoje, qualquer um sabe alguma coisa a respeito da pedofilia, pode não saber como um estudioso mas sabe que o pedófilo é um adulto que abusa de criança.
Os efeitos dessa palavra têm repercutido na grande massa e só se atinge a opinião pública pelos meios de comunicação. Isso é um ponto importante e dá para pensar esse fenômeno à luz da semiótica psicanalítica pelo seguinte: se este assunto era do âmbito da psiquiatria forense e dos códigos penais, hoje há uma concepção popular sobre os descuidos que se tem com as crianças. Deixou de ser algo relativo à psicopatologia e passou a ser um tema que afeta a todos nós.
Temos uma situação que produz sentimentos não muito agradáveis, que vão desde o eu-não-quero-saber-disso até aqueles que têm um grande interesse em saber, em querer conhecer e esse é um tema que faz sucesso. Isso é outra coisa importante de colocar nestes termos: de que faz sucesso.
Por que faz sucesso? Por que as pessoas querem conhecer, querem saber?
Isso é algo que chama a atenção, não só pela brutalidade, pelo que não se deve fazer com uma criança mas pelo que está evocando esta palavra e o que a mídia tem explorado quando traz notícias sobre este fenômeno. A mídia descreve imagens da pornografia infantil ao mesmo tempo em que explora a erotização precoce da infância porque há um interesse em abreviar o período da infância.
A pedofilia é um fenômeno que colabora com a abreviação ou achatamento da infância. E, no mundo atual, isso tem enorme interesse porque, quanto mais a criança se parecer com um adulto, menos trabalho e menos enigmas o adulto terá em relação àquilo que provém da infância, que é esta conexão que Freud tão bem colocou na Psicopatologia da Vida Cotidiana, entre a sexualidade e a morte. Perante a sexualidade infantil, o adulto crê que a criança possui condição de experimentar os prazeres da carne. Esse é o mote daquele sujeito que, de fato, tem interesse e se vê perante o desejo sexual como sendo o desejo que o impede de se conter.
Entretanto, é como se todos aqueles que têm fantasia sexual com criança fossem pedófilos em potencial. A sexualidade humana, tão enigmática, habita o psiquismo humano com fantasias que nascem na primeira infância. Logo, isso diz respeito ao desenvolvimento da sexualidade infantil do sujeito em questão. Essa dimensão dos fatos fica pouco abordada, quando o grande tema é a pedofilia.
A pedofilia não é apenas um tema que fala da psicopatologia – do que é singular, do que é de cada sujeito – mas também aborda um funcionamento de uma grande massa que foi moldada pelo meio, portanto, pela mídia, transmitido a partir de uma visão corrompida, o que impossibilita ao leitor refletir e ampliar o conhecimento.
Pergunta (SC): No caso das duas “mães” da reportagem, elas não estão considerando que uma delas tomará o lugar do “terceiro”, do pai, e que representa o corte na relação entre mãe e filho?
Fani Hisgail: Não, de maneira alguma, isso sequer se cogita, isso só poderia ser cogitado, se você tem um saber sobre o que é o Édipo estrutural, o que é a função, e isso é um assunto para refletir. Qual é o meio que está produzindo essa matéria? É a revista e, no caso, é uma revista semanal, que é a revista Época, então nós temos que especificar essa mídia, e poderíamos estudar todas as matérias de comportamento que determinados jornalistas escrevem mas numa mídia específica ou, então, matérias de comportamento nas revistas femininas.
No caso, essa é uma matéria de comportamento que fala dessas duas mães, portanto a semiótica psicanalítica se ocupa de interpretar as novas modalidades dos romances familiares. Utiliza os recursos que a semiótica nos oferece para que possamos pensar isso que você acabou de perguntar, esse terceiro que é a função do pai que representa o corte na relação mãe e filho. O psicanalista que agrega a semiótica para pensar nos casos, incorpora as matérias de comportamento que se apresentam nesses veículos – nas revistas semanais ou nas revistas femininas – pode ter algo mais a dizer a respeito destes fenômenos. Não sei se ficou claro mas acho que, agora, até para mim ficou mais claro, para vocês entenderem o que é esta conexão.
Pergunta (SP): Cara Fani, você poderia dar um exemplo de aplicação concreta de alguma ferramenta da semiótica na análise do discurso de um paciente?
Fani Hisgail: Não, como eu disse para vocês, na semiótica a gente vai trabalhar com os fenômenos da cultura, não na clínica. Isso é algo ainda incipiente, quase inexistente para utilizar essa ferramenta como uma intervenção do analista no tratamento psicanalítico. Essa é uma pergunta interessante, essa interlocução entre psicanálise e semiótica, tal qual a que ocorre entre psicanálise e a literatura. A gente não vai trabalhar com o sujeito mas, sim, com o texto, com o que está escrito, com o registro. Então, por exemplo, em psicanálise e literatura, trata-se de personagens e personagem não é pessoa, então tenho de trabalhar com o que está dado ali, não posso pôr nem tirar, é o que está dado.
Eu posso, sim, como psicanalista, como pesquisadora da semiótica, como uma profissional que pensa essas conexões, posso pensar de modo a identificar, no discurso, elementos que envolvem o signo com o objeto, na relação com o objeto, ou seja, como o signo se mostra pela a face icônica, indicial, e pelo símbolo. Ou seja, aqui a gente está se aprofundando um pouco mais no que seria a semiótica mas vamos entender que, do ponto de vista da semiótica, o signo revela as faces e as conexões com o objeto. Até posso escutar, na narrativa, uma semiose de signos e significantes, perceber e reconhecer que no discurso tem algo mais específico mas eu não vou utilizar isso como uma intervenção clínica. Posso utilizar, sim, os elementos da semiótica psicanalítica frente aos sintomas da cultura.
Pergunta (SC): Eu precisaria entender melhor a relação entre o medo de não se conter e o princípio de morte, no caso da pedofilia tal como foi colocado antes.
Fani Hisgail: Você está falando da pedofilia? O que é o medo de não se conter, o que quer dizer isso, Maria? E o princípio de morte na pedofilia tal como foi colocado. O que é relação entre medo de não se conter? Você esta querendo dizer assim que, por exemplo, a pornografia infantil pode influenciar na passagem ao ato? Ao que você está se referindo quando você diz entender melhor a relação entre medo de não se conter e princípio de morte? O que é o medo de não se conter, você pode ser um pouquinho mais clara, por favor?
Pergunta (CE): Quando a senhora fala na alienação do ideal do Outro, lembrei de um comentário que ouvi há pouco sobre a questão da comunicação e a internet. Uma psicanalista observou que, para ela, a grande questão desse meio é o sujeito da enunciação que fica apagado. O que circula é só o enunciado. O que a semiótica psicanalítica poderia dizer sobre isso?
Fani Hisgail: Eu não concordo com esta idéia de que a internet apague o sujeito da enunciação. Primeiro, a internet não tem este poder; segundo, o sujeito da enunciação surge toda vez que nós temos as formações do inconsciente. Por exemplo, um lapso de escrita na hora que você está digitando, se comunicando com o próximo, por exemplo, pelo Skype, MSN ou Twitter, isso pode acontecer, um lapso de escrita e aí nós temos uma formação do inconsciente.
Então, não dá para dizer que o sujeito da enunciação fica apagado. Dá para dizer, apenas, que esse não é o ambiente propício para intervir no sujeito da enunciação, porque o ambiente em que nós colocamos o dedo no sujeito da enunciação, é no campo do tratamento psicanalítico. Diferente do que acontece na relação do internauta com a internet, o sujeito da enunciação está lá e as formações do inconsciente ocorrem.
Então veja, o meio que é a internet. A internet é um meio que produziu um efeito tal no ser humano e, portanto, na condição humana, que revoluciona a subjetividade, a posição do sujeito frente ao Grande Outro.
Por quê? Porque isso, essa possibilidade aqui neste momento em que vocês estão me ouvindo, estão me vendo, entretanto eu não os ouço, apenas leio o que vocês escrevem e não os vejo.
Ora, é interessante porque o que tento transmitir, então a partir desse registro, isso não quer dizer que eu me alieno ou que, no caso, a internet aliena o sujeito. A gente sabe muito bem que a alienação nasce na constituição do Eu, na constituição do narcisismo.
Entretanto, a internet ou o modo como a gente navega na internet, o modo como navego na internet é diferente de um outro e isso não quer dizer que me apago ou que me alieno. Ao contrário, alienação, como você escreveu, está relacionada com o ideal do Outro e a internet afeta essa qualidade do ser, que é o humano, uma vez que essa conectividade do humano com a máquina, produz, sim, uma possibilidade muito maior de comunicação do que até então nós estávamos habituados.
Hoje para uma criança – costumo dizer aos meus alunos que a criança nasce com o dedo no mouse – o dedo é o signo, a flecha que opera na cadeia significante ao produzir um efeito de sentido quando ocorre a interatividade entre um e outro.
Pergunta (SP): Você acredita que a materialização da fantasia na mídia, no espaço virtual da internet ou outras mídias, tem efeito sobre o recalque na cultura? Inclusive no estabelecimento de discursos perversos?
Fani Hisgail: Sim. Inclusive no estabelecimento de discursos. Não sei se é uma questão de crença. Você colocou bem: o recalque na cultura, não no particular, tem efeito porque aquilo que antes não era dito, era um tabu – e falar sobre pedofilia era tabu – vem à luz e o que vem à luz? A sexualidade perversa polimorfa na infância. E isso que vem à luz como um fenômeno da cultura. Aparece como a face, a primeira face que é a erotização infantil.
Então deste modo, o retorno do recalcado com relação a este tema diz respeito à sexualidade infantil e essa conexão entre sexualidade e morte. E, aqui, vamos entender pulsão de morte pelo viés de Eros, uma das faces de Eros que podemos identificar como um Eros alucinado, um Eros que vai em direção à morte, do significante morte, e não em direção ao significante vida. Por isso, faço essa conexão de sexualidade e morte. Então o tema da pedofilia, do ponto de vista do recalque na cultura, faz aparecer essa conexão: sexualidade e morte.
Pergunta (MG): Penso mídia, como meio, medium, como algo entre dois, quer no macro, publicidade, ou micro, entre dois ou entre eu e o Outro.
Fani Hisgail: Sim, você tem razão, o meio, um dos cata-ventos que o Oscar Cesarotto escreve, define a significação do falo, que é o nono cata-vento: as representações da sexualidade, as imagens e metáforas constituem o interesse específico da semiótica psicanalítica, por colocar em questão a significação do falo na contemporaneidade, um problema ao mesmo tempo semiótico e psicanalítico.
É isso aí, Márcia, acho que você pegou muito bem o que está entre semiótica e psicanálise, esta conexão, que é a significação do falo, esse é o quarto elemento do Édipo, que é o falo, então, que é entre o eu e o Outro, que é a mediação, do mesmo modo que a publicidade se pretende ser essa mediação mas nunca será, porque aí se trata do falo imaginário.
Conexão Lacaniana: Agora devemos começar a encerrar a conferência, pois já passou da hora combinada.
Fani Hisgail: Olha: fiquei muito satisfeita de ter experimentado essa vivência aqui. É uma relação com o significante muito particular. Estou muito satisfeita com isso.
Conexão Lacaniana: Foi uma conferência muito agradável, um tema que desperta muitas considerações e muito desejo de continuar com a pesquisa nessa área da semiótica e o cruzamento com a psicanálise. Nós agradecemos a generosidade. As colocações despertaram uma série de perguntas e os alunos participaram bastante. Seria um prazer enorme continuarmos aqui até o final da noite mas nós sabemos que seria muito exaustivo também. Então, em nome de Márcio Peter, da Conexão Lacaniana e dos alunos deste curso Deus é A mulher - a Feminilidade em Lacan gostaríamos de agradecer a presença e gostaríamos também de contar com a sua presença no próximo curso.
Fani Hisgail: Muito obrigada por esta oportunidade e um grande beijo no meu querido amigo Márcio.
Conexão Lacaniana: Muito obrigada, será dado. Um abraço grande e boa noite a todos. Foi excelente. A conferência despertou uma série de questões e precisaríamos de uma nova oportunidade para continuarmos a pensar sobre isso.
(Muitos agradecimentos)
Conexão Lacaniana: Só um último aviso. A conferência será transcrita e disponibilizada no moodle, no nosso curso.
Obrigada pela presença. Se quiserem colocar alguma questão advinda deste encontro, podem utilizar o fórum. Abraço a todos e, uma vez mais, boa noite.
Núcleo Márcio Peter de Ensino - Conexão Lacaniana
Curso OnLine "Deus é A Mulher - A feminilidade em Lacan"
Conferência 31/05/09 | Moderação: Ana Maria Ferraz