Conferência com Geraldino Alves Ferreira Netto
A Tragédia Paterna em Sófocles,
Shakespeare, Goethe e Dostoievski
Geraldino Alves Ferreira Netto é psicólogo e psicanalista, palestrante e conferencista, professor convidado do curso de Pós-graduação em Semiótica Psicanalítica - Clínica da Cultura, da PUC-SP, formação em Psicanálise pelo Centro de Estudos Freudianos (SP), Escola Lacaniana de São Paulo, Associação Livre-Clínica Freudiana (SP), várias publicações em revistas nacionais e internacionais, artigos em livros e jornais, autor de Wim Wenders, Psicanálise e Cinema, ed. Unimarco, 2001, SP.
Conexão Lacaniana: Boa tarde a todos, em nome do dr. Márcio Peter e da Conexão Lacaniana, eu queria dizer que é com grande prazer que recebemos Geraldino Alves Ferreira Netto, para a primeira conferência do nosso quarto curso intitulado “Psicanálise e Cultura – Freud e Lacan”.
O dr. Geraldino vai nos falar, através de seu longo percurso, aquilo que nos propomos fazer neste curso, a conversação entre a psicanálise e cultura. O dr. Geraldino fará a conferência nos primeiros quarenta e cinco minutos e depois abrirá para questões. Nos gostaríamos de pedir que as questões fossem sendo colocadas uma a uma e na ordem que elas forem colocadas elas serão respondidas.
E também é com grande prazer que temos Dr. Márcio Peter aqui hoje junto conosco. Geraldino é com você a palavra.
Geraldino A. F. Netto: Boa tarde pessoal, eu agradeço e é com muito prazer que aceito esse convite que me vem da parte do Márcio, que eu considero meu irmão, colega de trabalho durante vinte cinco anos no mesmo consultório. Uma vida de colaboração intelectual, afetiva. Enfim, agradeço muito ao Márcio e fico muito feliz de estar podendo trabalhar neste momento com esta equipe da Conexão Lacaniana, e agradeço também ao Luis, pelo suporte técnico que ele tem dado estes dias.
A proposta que eu me coloquei para falar hoje, sobre o tema a tragédia paterna isto é uma leitura que estou fazendo de alguns textos de Freud em que ele cita várias tragédias, que estão aí já anotadas nos seus respectivos autores. Eu vou ser rápido porque acho que o tempo está pouco para o objetivo que eu tinha em mente de falar.
O que é uma tragédia? É o “canto do bode”. A etimologia da palavra vem do grego trágos, que significa bode. E tragodía ou tragédia, era a música ou ode que se cantava no ritual de sacrifício do bode, nas festas de Baco, quando se faziam representações teatrais, focadas no infortúnio do protagonista. A ação destinava-se a inspirar terror ou piedade pelo espetáculo das paixões humanas e das desgraças decorrentes.
Além dos rituais de dança, a população toda fazia também preces pelo sucesso das colheitas. E, às comemorações dionisíacas, sucederam-se as lendas que faziam uma fusão entre os heróis humanos e divinos. A representação provocava, na platéia, uma tensão permanente, a ser aliviada, no final, por meio da catarse.
Depois de Sófocles, o gênero entrou em declínio na Grécia, para ressurgir em Roma, na obra de Sêneca. Após a Renascença (século XV e XVI), retorna com Shakespeare, o maior representante da tragédia dos tempos modernos. Em sua forma clássica, a tragédia desapareceu, sendo substituída por outros gêneros, como o drama e o romance.
No Judaísmo, o ritual sempre teve sentido religioso, com o nome de bode expiatório. Na festa da expiação, os judeus expulsavam da cidade um bode em direção ao deserto, depois de o terem carregado com todos os pecados do povo. É chamado também de bode emissário.
Na história bíblica, alguns personagens assumiram o papel do bode expiatório. Por exemplo, no livro Moisés e o monoteísmo, Freud defende a tese de que houve dois Moisés: o primeiro, da família do faraó, trouxe o monoteísmo para os judeus exilados, tendo sido assassinado por seu povo que preferia a idolatria; o segundo foi o menino hebreu, salvo das águas, reencarnação do primeiro após oito séculos, que recebeu as tábuas da Lei e levou o povo para a Terra Prometida. O primeiro Moisés, uma figura paterna, fez o papel de bode expiatório.
Freud refere-se também a Jesus Cristo, que se ofereceu para expiar os pecados do mundo, e foi assassinado. Na liturgia católica, ele é chamado de cordeiro, em vez de bode: Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo! Sendo assim, a palavra tragédia foi se associando à idéia de morte.
Nos textos freudianos, especialmente em casos clínicos, está presente um bestiário variado: o cavalo (no caso do Pequeno Hans), os ratos (no caso d’O homem dos ratos), o lobo (no Homem dos Lobos). Todos estes animais são interpretados, por Freud, como representantes da figura paterna. O bode também pode ser incluído aí, já que o diabo costuma apresentar-se como cachorro ou bode. O diabo é definido por Freud como substituto paterno, e vender a alma ao diabo é uma alegoria do desejo humano.
Para a psicanálise, o que vem a ser a tragédia paterna? A função paterna é responsável por proibir à criança o gozo da mãe (na relação incestuosa), introduzindo a criança na economia do desejo, pela operação da castração, ou interdição do incesto. A resposta da criança, como vingança à privação da mãe, é um desejo de matar o pai, em fantasia. E se o pai falha nesta tarefa, está aberto o caminho da tragédia. O desejo, portanto, tem um preço a pagar, às vezes, alto, às vezes, trágico. Compete sempre ao pai pagar as contas e responder por seus atos ou omissões.
A seguir, serão comentadas as quatro tragédias citadas por Freud em seus textos, em momentos diferentes e com objetivos variados.
A tragédia grega
O primeiro grande autor que inspirou Freud foi Sófocles, (496-406 a.C.), poeta e teatrólogo trágico grego, nascido em Colona, que escreveu 123 tragédias, das quais somente sete chegaram até nós. São dramas psicológicos, retirados dos mitos, que retratam a firme vontade e as paixões do herói. Desde a adolescência, Sófocles atuou no teatro, interpretando vários papéis femininos, numa época em que a mulher não podia apresentar-se no palco.
Como autor, ganhou os primeiros prêmios mais de 60 vezes. Participou também de cargos políticos e militares, mas seu forte eram os dotes literários. Já velho, uniu-se a uma cortesã, com quem teve um filho. Outro filho, do primeiro casamento, temendo que o pai legasse os bens ao irmão ilegítimo, processou-o judicialmente, acusando-o de senil e incapaz. Diante dos juízes, Sófocles defendeu-se, lendo trechos de Édipo em Colona, e foi absolvido.
O mito do Édipo-Rei, certamente o maior do Ocidente, transforma a vida do rei de Tebas num paradigma do destino humano. Posteriormente, este mito é retomado por Freud, chamado agora de Complexo de Édipo, e relaciona o destino com uma determinação psíquica vinda do inconsciente.
No livro d’A interpretação de sonhos, Freud dedica o capítulo V a descrever o material e as fontes dos sonhos. Relata os chamados sonhos típicos, entre os quais destaca os sonhos sobre a morte de pessoas queridas. O ponto alto é a referência à mais trágica das tragédias de Sófocles, Édipo Rei.A história do trio incestuoso e parricida, Laio, Jocasta e Édipo, é por demais conhecida para que a recapitulemos aqui.
A escolha desta peça sofocleanajustifica-se por muitas razões. Freud lutara intimamente contra seus próprios desejos edipianos, que o faziam sofrer mesmo depois de adulto. Dedicando-se à escuta analítica, deparou-se com o mesmo drama familiar do amor e do ódio entre pais e filhos, fundamento das neuroses. O texto de Sófocles caiu-lhe como uma luva.
Freud declarou: “Esta descoberta é confirmada por uma lenda da antiguidade clássica, que chegou até nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover somente pode ser compreendido se a hipótese que apresentei, no tocante à psicologia das crianças, tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do Rei Édipo e o drama de Sófocles, que traz o seu nome.”
O desenrolar da peça vai revelando uma investigação criminal em que, aos poucos, o cerco vai se fechando, na busca de uma verdade escondida, cuja descoberta é surpreendente. Segundo Freud, este é um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanálise. Esta foi a primeira vez que o conceito de complexo de Édipo aparece explicitamente na teoria.
A leitura que Freud fez de Sófocles suscitou polêmica e discussão por parte dos especialistas em mitologia grega, sobretudo na França. Jean-Pierre Vernant, em 1967, criticou o que chamava de interpretações selvagens e psicologizantes da psicanálise. Vernant propôs, então, uma nova interpretação, mais conforme, segundo ele, às representações da mitologia grega.
Referindo-se a Édipo, diz Vernant: “Seu destino excepcional, e a façanha que lhe concedeu a vitória sobre a Esfinge, colocaram-no acima dos outros cidadãos, além da condição humana – semelhante ou igual a um deus – e, através do parricídio e do incesto, que consagraram seu acesso ao poder, também o rejeitaram para aquém da vida civilizada, excluíram-no da comunidade dos homens, reduzido a nada, igual ao nada. Os dois crimes que ele cometeu, sem saber nem querer, tornaram-no – a ele, o adulto firme sobre seus dois pés, - semelhante a seu pai, ajudado por uma bengala, velho de três pés, cujo lugar assumiu ao lado de Jocasta, e também semelhante a seus filhos pequenos, ainda andando de quatro, e dos quais ele tanto era irmão quanto pai. Seu erro inexplicável foi misturar em si três gerações etárias, que deviam seguir-se sem jamais se confundir nem se superpor no seio de uma linhagem familiar”.
Mas não foi muito diferente do Édipo grego a proposta de Freud, porque, para ele, o complexo se propõe a organizar a economia do desejo incestuoso e sua interdição, vista como indispensável para justamente evitar que se transgrida o encadeamento das gerações.
Tragédia paterna: para a psicanálise, no Édipo-Rei, a falha paterna vem do fato de que Laio abdicou e fugiu de sua função de provar, ao filho, que ele, Laio, era o objeto de desejo de Jocasta. Comodista e covarde, Laio preferiu matar a criança, mas falhou nesta tentativa, criando todas as condições para que o incesto e o parricídio acontecessem de fato, merecendo, portanto, o castigo, e levando o filho, a esposa e os netos, à tragédia.
A tragédia inglesa
Logo na seqüência do texto sobre os sonhos, Freud explora outra grande criação da poesia trágica, Hamlet, o príncipe da Dinamarca. Seu autor, William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo e poeta inglês, deixou tão poucos dados biográficos, que surgiu a lenda de que não tivesse existido. Era filho de um homem rico que perdeu tudo. Com o teatro, Shakespeare recuperou, rapidamente, a fortuna familiar e um título de nobreza para o pai. Lacan não duvida de que Shakespeare era homossexual, e seu amor era possivelmente o conde de Essex, por ele descrito como um rapaz bastante charmoso.
Seus muitos poemas e sonetos expressam agitação, frustração, homossexualismo e masoquismo. Sua obra dramática concilia uma visão poética e refinada (para agradar à corte e à aristocracia), com um forte caráter popular (para divertimento do público). Na primeira fase de sua produção, estão as comédias ligeiras; na segunda, marcada pelas decepções pessoais e políticas, encontram-se as grandes tragédias; na terceira, conseguindo o equilíbrio, estão as peças romanescas. Até hoje, o maior sonho de qualquer ator é interpretar algum dos personagens de Shakespeare.
Segundo Freud, embora tratando do mesmo tema, o cotejo dos dois gênios da literatura, Sófocles e Shakespeare, separados por dois milênios, mostra bem como o inconsciente evolui junto com a cultura. O raciocínio é de que se observa um avanço secular do recalque na vida emocional da espécie humana. Em Sófocles, o desejo incestuoso e parricida é realizado concretamente, a céu aberto. A repressão cultural não era tão forte.
Já em Shakespeare, a fantasia incestuosa e parricida é contida. Para obedecer ao pai, cujo espectro lhe revela o assassino, seu próprio irmão, e que pede vingança, Hamlet tenta, mas não consegue matar Cláudio, seu tio que, além disso, desposou sua mãe. Ocorre, então, uma série de tragédias: a morte de Polonius, futuro sogro de Hamlet, a morte de Ofélia, sua noiva, de Cláudio, da mãe de Hamlet e do próprio Hamlet, que acaba sendo envenenado pela espada de Laerte, seu grande amigo e irmão de Ofélia.
O texto é extremamente complexo, de difícil compreensão, e numa linguagem tão rebuscada e profunda que confundiu muitos críticos. Alguns preferiram definir o texto como vazio e sem sentido. As tentativas de explicação sobre a hesitação de Hamlet não conseguiram chegar a nenhuma conclusão.
São três as hipóteses: Goethe defende uma causa interna, o fato da formação intelectual ao estilo alemão, de quando Hamlet viveu na cidade alemã de Wittenberg: percebendo toda a complexidade do fato, Hamlet fica paralisado; para outros autores, seria uma dificuldade externa, de natureza política, dificuldade para convencer o povo dinamarquês da culpabilidade de Cláudio. Ernest Jones defende uma razão psicanalítica, dizendo que a causa está na própria tarefa, que é conflitiva. Freud acata a opinião de Goethe: Hamlet representaria o homem cuja ação está dominada por um desenvolvimento excessivo do pensamento, cuja força de ação está paralisada.
Para este total enigma literário, Freud trouxe uma pista nova para a compreensão do drama. São os escrúpulos de consciência, um mecanismo de defesa que denuncia alguma correspondência no inconsciente. Diferente do Édipo-Rei, aqui o assassino é conhecido e identificado desde o início da peça. E a diferença de culturas, do paganismo ao cristianismo medieval, pode ter sido decisiva para o incremento de um processo social de repressão.
Segundo Freud, “Hamlet é capaz de fazer qualquer coisa – salvo vingar-se do homem que eliminou o seu pai e ocupou o lugar deste com sua mãe, o homem que lhe mostra os desejos reprimidos de sua própria infância realizados”.
Os fantasmas shakespeareanos são os mesmos que povoam nossos sonhos, e Freud cita outras obras do dramaturgo e poeta inglês: Henrique IV, Henrique VI, Júlio César, Otelo, Sonho de uma noite de verão e Timão de Atenas. E o Hamlet volta a ser citado em outros textos além do trabalho sobre os sonhos.
Leitura lacaniana do Hamlet
O mote característico: to be or not to be tornou-se popular, embora ninguém entenda bem o sentido. Até parece uma piada. Mas mantém a tragicidade do lema grego: melhor não ter nascido.
Não é casual que o texto de Hamlet tenha sido escrito logo depois da morte do pai de Shakespeare, em 1601. Digno de nota também é o fato de que Shakespeare perdera um filho precocemente, e que se chamava Hamlet. Não seria possível que o poeta estivesse descrevendo, em sua obra, seus próprios sentimentos, algo autobiográfico?
Na peça, o pai, é um rei muito admirável, o ideal tanto de rei como de pai, e que morreu misteriosamente. Teria sido picado por uma serpente, enquanto dormia no jardim, ou teria sido envenenado, pelo ouvido, por uma planta tóxica chamada meimendro.
Detalhe importante: de acordo com a cultura dinamarquesa, ofereceu-se um lauto banquete no dia do enterro do rei. Logo no dia seguinte, Cláudio assume o trono e casa-se com a rainha viúva. Novo banquete comemorativo, no qual se aproveitaram as sobras de comida do dia do enterro.
Na seqüência, o pai de Hamlet aparece, então, como ghost, fantasma, para revelar ao filho Hamlet as condições de sua morte, pedindo vingança.
Lacan considera insuficiente a hipótese freudiana, segundo a qual, os modernos seriam mais neuróticos do que os antigos. Insatisfatório também é explicar a inibição do herói, pelo fato de que Cláudio realiza o desejo incestuoso de Hamlet, de matar o pai e dormir com a mãe. O desejo pessoal de vingança, somado à ordem expressa do fantasma do pai, seriam mais que suficientes para que Hamlet agisse. Se não o faz, é que algo de errado acontece em seu desejo.
Qual seria, no registro da consciência, seu desejo? É sua noiva Ofélia, que ele amava, mas, a partir de então, rejeita-a, e expressa um horror à feminilidade. Hamlet não trata mais Ofélia como uma mulher. Segundo Lacan, ela se torna, a seus olhos, a portadora de filhos de todos os pecados, aquela que está destinada a engendrar os pecadores e que sucumbirá sob todas as calúnias. O pai de Ofélia, Polônio, oferece uma interpretação selvagem, dizendo, segundo Lacan: Se Hamlet está melancólico, é porque escreveu cartas de amor para sua filha, e ele, Polônio, conforme seu dever de pai, ordenou a esta responder rudemente. Dito de outra forma, nosso Hamlet está doente de amor. Ofélia enlouquece e se afoga no riacho, talvez, suicidando-se.
Segundo Lacan, a resposta a este imbróglio está, essencialmente, na relação de Hamlet com seu próprio ato. Trata-se de um ato a realizar, e Hamlet depende dele. O que se evidencia, durante toda a peça, é a procrastinação, adiando o fato sempre para o dia seguinte. Lacan insiste em que este ato não é o ato edipiano. Hamlet é, desde o início, culpado de ser. Para ele, é insuportável ser.
Acontece que o pai de Hamlet lhe disse, enquanto fantasma, que foi surpreendido pela morte na flor de seus pecados. (Ele foi assassinado na cama do casal). Através da vingança, Hamlet iria ocupar este lugar marcado pelo pecado do outro, um pecado não pago. Ao contrário de Édipo, que não sabia, e que pagou caro, através da própria morte, da morte de sua esposa-mãe e de seus filhos-irmãos, nosso Hamlet sabe, e não pagou o preço de existir.
Então, se ele matar Cláudio, vai ter que pagar o preço com sua vida também. Logo, seu dilema, motivo de sua inibição, é: SER vingador OU NÃO SER vingador. No plano da consciência, escolheu ser, já que fazia tentativas de vingança, mas, na instância inconsciente, decidiu-se pelo não ser, porquanto boicotava todas as chances reais que se ofereciam.
A dificuldade da escolha é crucial, porque a tragédia está em ambas as alternativas. Se executar a vingança, terá a segunda morte, a morte física, como castigo. Se não se vinga, carregará a angústia dos remorsos de consciência, ou seja, a primeira morte, do desejo.
Lacan destaca, então, a questão do desejo, dizendo que o homem não está simplesmente possuído pelo desejo, mas tem de encontrá-lo às suas custas e a duras penas. Ele só o encontrará no limite, numa ação que culmina com a morte.
No encontro de Hamlet com o espectro do pai, este lhe revela o horror do local em que vive um sofrimento insuportável. E lhe dá uma ordem: fazer cessar, de qualquer jeito, o escândalo de luxúria da rainha. Aconselha-o também a se proteger a si mesmo nas suas relações com sua mãe. Trata-se agora do desejo da mãe. E Hamlet sugere claramente à mãe que não tenha mais relações com Cláudio.
Hamlet planeja surpreender e matar Cláudio na cama. Mas indaga se, com isso, não o estaria levando para o céu, enquanto seu pai penava no inferno. No fundo, Hamlet é cúmplice de Cláudio quanto ao desejo da mãe. Ele já cometeu, inconscientemente, o mesmo crime de desejar a mãe, logo, atacar Cláudio é atacar a si mesmo. O desejo da mãe está recalcado em Hamlet. Ele pensa também no suicídio, mas, da mesma maneira que no homicídio, teria que pagar caro. E assim, to be or not to be recebe outro sentido: eternidade no céu, ou no inferno.
E este desejo, com qual Hamlet se debate, não é só seu desejo pela mãe, é também o desejo de sua mãe. Quando Hamlet a instiga a retomar o caminho da dignidade e dos bons costumes, ela lhe pergunta: Você quer me matar? Até onde você quer ir? Durante esta conversa, Hamlet percebe alguém se mexendo atrás da cortina. Supondo ser Cláudio, decide que chegou a hora. Com a espada, atravessa, por engano, o corpo de Polônio.
Um dos pontos altos da peça é a cena da luta dentro da cova de Ofélia. Hamlet estava sempre espreitando a chance de matar Cláudio, tendo-se feito até passar por louco, ou por bobo da corte. Mas, como Cláudio se sentia meio responsável pela morte de Ofélia, e incomodado pelo exagerado luto de Laerte, irmão dela e seu desafeto, convida Hamlet para se bater em duelo com Laerte, seu amigo. Hamlet aceita lutar em nome daquele que, justamente, gostaria de eliminar. E Hamlet mostrou-se exímio na esgrima. Mas Cláudio foi desonesto, mandando colocar veneno mortal na ponta da espada de Laerte. Um simples ferimento condenou Hamlet à morte.
Estamos já no final da peça, e Hamlet, mesmo ferido, elimina Laerte e, depois de 36 tentativas, fica, enfim, livre para realizar seu ato, matando Cláudio. Mas só depois de ter matado outros, por engano, e depois que sua mãe se envenenou, também por engano. Com sua morte, Hamlet puniu-se e pagou seus pecados.
Ao dilema shakespeareano, Freud contrapõe o seu: to have or not to have, ter ou não ter o falo. E Lacan acrescenta que o homem se caracteriza por ter sem ser, e a mulher, por ser sem ter. Toda a questão do Hamlet é ser ou não ser o falo da mãe.
Para a psicanálise, onde está a tragédia paterna em Hamlet? Por algum motivo não declarado, o rei não soube ocupar o lugar de objeto de desejo da rainha, entregando-a facilmente a Cláudio, com o qual ela já devia estar comprometida, por ocasião assassinato real. Ao sair de cena, e não interditar ao filho o desejo da mãe, o pai abre espaço e induz Hamlet a substituí-lo, vingando-se, e ter que ocupar um lugar proibido e trágico.
A tragédia alemã
Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), escritor e teatrólogo alemão, nasceu em Frankfurt. Seu pai era Conselheiro Imperial. Estudou Direito, História, Filosofia, Teologia, Poética, Medicina, Ciências Naturais, Desenho e Teatro. Leu os clássicos franceses e se interessou pela Alquimia, Astrologia e Ocultismo.
Como político, tornou-se membro do Conselho Secreto da cidade de Weimar, e assumiu a administração financeira do Estado, a exploração de recursos minerais e a construção de estradas. Ao mesmo tempo, dedicava-se à literatura. Entediado com as atividades políticas e administrativas, assume um nome falso e viaja escondido, sem se despedir de ninguém, para a Itália, onde assimila os valores clássicos da Antiguidade.
Voltando à Alemanha, Goethe fez profunda e fecunda amizade com o poeta Friedrich Schiller (1759-1805). Juntos, estes dois gênios lideraram o movimento literário do pré-romantismo, Sturm und Drang (Tempestade e Impulso), surgido em 1770, que catalisava as aspirações da juventude alemã. E Goethe assuma a direção do Teatro de Weimar. Casou-se com a florista Christiane Vulpius, com quem teve alguns filhos, dos quais só um sobreviveu, chamado August.
Em sua principal obra, Faust: eine Tragödie (Fausto, uma tragédia), a erudição extravasa entre os dados de filosofia da natureza, mitologia, literatura, arte, filologia, finanças, teatro, diplomacia, mineração, maçonaria, feitiçaria e religião. Goethe dedicou 60 anos a escrever este texto. O tema já vinha sendo explorado há trezentos anos, mas tornou-se insuperável em sua pena.
Goethe começou a escrevê-lo por volta dos quinze anos. A primeira redação tem o nome de UrFaust, que seria o Fausto Primitivo, traduzido por Fausto Zero, escrito em prosa. Depois, demorou vários anos transcrevendo, em versos, a primeira parte, chamada de Fausto Um. Somente aos 75 anos de idade, véspera de sua morte, é que deu por terminada a segunda parte, o Fausto Dois. Inexplicavelmente, algumas traduções ao português omitem, no título, a palavra tragédia.
Goethe foi o autor preferido de Freud, em todos os sentidos. Este cita-o em sua obra mais de uma centena de vezes, e destaca passagens de Goethe em que vários conceitos fundamentais da psicanálise estão descritos por antecipação.
Após comparar a versatilidade de Goethe com a de Leonardo da Vinci, Freud confessa, em sua autobiografia, que “foi ouvindo o belo ensaio de Goethe sobre a Natureza, lido em voz alta numa conferência” que resolvera tornar-se estudante de medicina. Além disso, Freud afirma também que o escritor pode ser considerado o patrono dos psicanalistas.
Apesar de distantes um do outro por pouco mais de um século, foram contemporâneos no pensamento, no talento e na influência mundial de suas criações. Ao dizer, portanto, que Goethe foi também um pouco psicanalista, a recíproca impõe-se como verdadeira: Freud também se destacou como escritor. Produziu textos literários, além dos escritos clínicos, teóricos e sociais, tendo sido agraciado, em 1930, com a única distinção que recebeu em vida, o “Prêmio Goethe”, criado em 1927, em Frankfurt, para que fosse concedido anualmente a “uma personalidade de realizações já firmadas, cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória de Goethe”. Como Freud comentaria posteriormente, isso teria sido o clímax de sua “vida como cidadão”.
Os 10.000 marcos alemães do prêmio eram nada em comparação com o júbilo, o fausto que isto representou para Freud. Se Faustus significa “feliz, afortunado”, Freud significa“alegria”. Freud manifestou sua satisfação e orgulho através do emocionado discurso de agradecimento, lido por Anna Freud, em virtude da limitação de saúde do pai.
No texto A psicopatologia da vida cotidiana,disse Freud: “Antigamente, achei que havia muito de Fausto em mim”
Pela frase acima, Freud confessa que, de certo modo, vendeu sua alma ao diabo, quando decidiu embrenhar-se e apostar no desconhecido da alma humana. Mas, as histórias de venda da alma ao diabo são imemoriais. Goethe inspira-se no pacto demoníaco a que Cristo foi convidado nas tentações do deserto: Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares (Mateus, 4: 8-10).
A história, conforme está descrito na introdução Prólogo no céu, começa com um diálogo respeitoso e reverente entre O Altíssimo e Mefistófeles. Segundo os eruditos, o nome Mephostophiles tem uma origem grega, significando “aquele que não ama a luz”, ao contrário de Lúcifer, o portador da luz.
Está em jogo uma aposta entre Deus e o Diabo, sobre qual conseguirá vencer a disputa pela alma de Fausto. Ambos garantem a vitória. Goethe afirma, com todas as letras, que este diálogo é uma réplica do tema bíblico, descrito no Livro de Jó, em que também o próprio Deus toma a iniciativa de provocar Satanás para tentar conquistar o pobre homem. No Fausto, a apresentação do Diabo é assim:
“Já que, Senhor, de novo te aproximas,
Para indagar se estamos bem ou mal,
E habitualmente ouvir-me e ver-me estimas,
Também me vês, agora, entre o pessoal”.
O Diabo se apresenta no céu, mas diz que é Deus que se aproxima dele. É a mesma estratégia apresentada no Hamlet, quando se aproxima dos portões do palácio a troca de guardas, e um deles grita na escuridão: Quem vem lá?
No momento em que foi feita a aposta nos céus, Fausto passa por maus momentos na terra. Mergulhado em profunda depressão, assim expressa o desespero de sua condição humana:
“E da existência, assim, o fardo me contrista,
A morte almejo, a vida me é malquista”.
No contrato pactuado, costuma constar a duração de 24 anos. E Fausto recebia a visita o demônio seis vezes por semana, em hora marcada. Para possuir a alma de Fausto no outro mundo, o demônio prometia riquezas, prazeres sensuais, artes mágicas e respostas a todas as suas indagações.
Fausto estudou Teologia e Medicina, dedicou-se à pansofia, entregando-se finalmente ao charlatanismo, sendo freqüentes as anedotas e episódios burlescos. Mas não faltaram as tragédias em sua vida.
Fausto se apaixona por Margarida, chamada, na intimidade, de Gretchen. Para poder viver com ela, enfrentou a oposição da mãe e do irmão de Gretchen. Fausto envenena e mata a mãe de Margarida, e atravessa com a espada o irmão, que também morre. Tem um filho com Gretchen que, enlouquecida pelo descuido do marido, acaba matando o bebê por afogamento.
Todo o terceiro ato do Fausto Dois se passa em Esparta, diante do palácio de Menelau. Do casamento de Helena de Tróia com Fausto nasce Euforion, destinado também a morrer tragicamente. Goethe escolheu o nome de Euforion (às vezes traduzido por Justus), como homenagem ao gênio da poesia e do romantismo inglês, Lord Byron, do qual Goethe era profundo admirador, e cujas características atribuiu ao filho de Helena.
Freud faz uma referência curiosa a Goethe no relato clínico freudiano do “Homem dos Ratos”, um caso de neurose obsessiva, em que o paciente tem dúvidas sobre se casar com a mulher pobre que ama ou com a rica que não deseja. Tinha o hábito de se masturbar à meia-noite, diante do espelho. A condição para o paciente se excitar sexualmente era ler as belíssimas passagens literárias da autobiografia de Goethe, Memórias, poesia e verdade, especialmente aquela em que o autor se livra da maldição, lançada por uma amante rejeitada, contra a próxima mulher que lhe beijasse os lábios.
Mas é no texto Uma neurose demoníaca do século XVII, que Freud analisa um manuscrito originário do santuário de Mariazell, local de peregrinação próximo a Viena, no qual havia a descrição pormenorizada de um pacto demoníaco perpetrado pelo pintor Christoph Haizmann. Logo de início, Freud confessa que seu interesse por esse caso vinha exatamente de sua semelhança com a lenda de Fausto.
A partir daí, Freud desenvolve a tese de que o demônio é um substituto do pai. Alguns anos depois, em O futuro de uma ilusão, faz o mesmo raciocínio com a figura de Deus. E tanto Freud quanto Lacan insistem em dizer que o diabo é considerado como porta-voz do desejo, sendo a magia a fantasia de realização do mesmo.
Para a psicanálise, a tragédia paterna goetheana está no fato de que, ao apelar Fausto para o Mefisto, um substituto paterno, ele está denunciando a ausência e a falha do pai, cuja forclusão é sempre prenhe do pior, na ordem do desejo.
Mas há uma grande novidade na maneira de Goethe tratar a tragédia. No Fausto Um, escrito na primeira metade de sua vida, todo o enredo sugere e prepara a condenação de Fausto, que seria estrangulado pelo Mefisto, no final.
A surpresa vem no Fausto Dois, escrito nos anos de maturidade, quando Goethe decide redimir o Fausto, livrando-o da condenação, e fazendo-o ser recebido no céu, triunfalmente, com pompa e circunstância, com a presença ostensiva dos Coros Celestiais de anjos, bem como da Virgem Maria. O raciocínio é que, apesar dos pesares, Fausto teve a coragem e a honradez de lutar por seu próprio desejo, merecendo a salvação.
A tragédia russa
Um quarto gigante da literatura universal, que Freud cita mais adiante em sua obra, é Fiódor Mikháilovitch Dostoievski (1821-1881), certamente o maior escritor russo de seu tempo. Nasceu em Moscou, de família aristocrata que perdeu a fortuna. Teve uma infância sofrida, devido ao temperamento despótico do pai, Mikhail, médico de um sanatório para pobres, e devido também à triste passividade da mãe.
Aos dezoito anos, Dostoievski ficou traumatizado com a morte de seu pai, assassinado por seus servos camponeses. A partir daí, sente-se responsável pela morte do pai, e assume a culpa por toda a miséria dos seres humanos. Mitiga a culpa, escrevendo dramas históricos, com personagens tirânicos como o pai, e com mulheres infelizes e injustiçadas como a mãe. Um de seus livros leva o sugestivo título de Crime e castigo. Tornou-se “o escritor da Rússia”, um guia espiritual dos leitores. Ao retratar a alma do povo russo, revelou-se exímio caracterizador de tipos psicológicos, cujo alcance universal descreve a própria condição humana.
Desiludido com o insucesso de seus primeiros textos literários, dedicou-se à política, envolvendo-se em um complô para assassinar Nicolau I, o imperador da Rússia. Foi preso e condenado à morte, mas a sentença foi comutada pelo czar por trabalhos forçados na Sibéria. Aí começou a escrever suas obras-primas. Continuou-as, depois, em Moscou. Foi influenciado por Lord Byron, Victor Hugo, William Shakespeare e Miguel de Cervantes.
Somente no final da vida, encontrou o amor que procurava, tendo filhos e encontrando a paz. Mas teve pouco tempo para desfrutar.
Por volta de 1926, os editores das Obras Completas de Dostoievski resolveram publicar os rascunhos do livro Os Irmãos Karamázovi, e solicitaram a Freud que escrevesse uma introdução, focando os aspectos psicológicos do livro e do autor. O ensaio de Freud destacou, na primeira parte, o caráter de Dostoievski, seu masoquismo, o sentimento de culpa, seus ataques epilépticos e seu complexo de Édipo. Na segunda parte, a análise recai sobre a paixão pelo jogo, que dominou o autor.
Ao descrever o perfil psicológico do autor, Freud apontou quatro facetas de sua rica personalidade: como artista, Dostoievski é comparável a Shakespeare, e seu romance Os Irmãos Karamázovi é o mais grandioso jamais escrito; como moralista, à moda dos russos, é comparável aos bárbaros, que matavam e, depois, faziam penitência; como pecador ou criminoso, ele fez uma possível confissão de pedofilia contra uma garotinha; como neurótico, apresentava ataques de epilepsia que, na realidade, era uma histeroepilepsia, de natureza emocional e não orgânica.
Suas crises epilépticas, iniciadas levemente na infância, agravaram-se quando seu pai foi assassinado. Também no romance dos Karamázovi, ocorre um assassinato do pai, o que levou os biógrafos e críticos a fazerem, eles mesmos, uma interpretação psicanalítica desta coincidência biográfica.
Segundo Freud, as crises epilépticas do autor tinham características e significado de morte, pelos estados de letargia que se seguiam. Interpretou-as, então, como identificação a uma pessoa morta, ou como um desejo de que alguma pessoa morresse. Em função do desejo edipiano de matar o pai odiado, Dostoievski se autopunia com seus desmaios. Afinal, considerado o crime principal e mais primitivo da humanidade e do indivíduo (na realidade ou na fantasia), o parricídio é uma das maiores fontes do sentimento de culpa.
Segundo Freud, “Dificilmente pode dever-se ao acaso que três das obras-primas da literatura de todos os tempos – Édipo Rei, de Sófocles, Hamlet, de Shakespeare, e Os Irmãos Karamázovi, de Dostoievski – tratem todas do mesmo assunto, o parricídio. Em todas três, ademais, o motivo para a ação, a rivalidade por uma mulher, é posto a nu”.
Em que diferem estas pérolas da literatura? Na tragédia grega, a representação é a mais direta. O próprio herói, Édipo, comete o crime. Mas há uma atenuante: tudo foi obra do destino, como explicaram os oráculos. O herói comete o ato sem intenção, inconscientemente, e sem ser influenciado pela mulher.
Na tragédia inglesa, a apresentação é indireta; o herói Hamlet não comete o crime pessoalmente. Como este é executado por outra pessoa, o tio Cláudio, transformado em seu padrasto, então, Hamlet não cometeu o parricídio, de fato. E também, sendo assim, seu desejo pela mãe não precisou de disfarce. Mas Hamlet fez várias tentativas de matar Cláudio, antes de consegui-lo. A dificuldade de Hamlet para obedecer ao fantasma de seu pai que pedia vingança, é fruto do sentimento de culpa que o paralisa.
O que acontece na tragédia russa? Segundo Freud, o romance de Dostoiévski é o mais psicanalítico dos três, porque, em vez de mostrar um inconsciente disfarçado de destino, como no Édipo, ou uma inibição culpada, como em Shakespeare, aqui aparece, sem máscara, a própria pulsão assassina, o caráter universal do desejo parricida, habitando a alma de cada um dos quatro irmãos.
A história, tão complexa como em Hamlet, mas ganhando no nível da confusão dos papéis, gira em torno de uma família de cinco personagens principais, além de outros de menor importância:
- O pai, Fiódor Pávlovitch Karamázov, era chamado de vil, corrompido, doidivanas, boêmio, bêbado, debochado, parasita e desonesto. Casou-e com Adelaide Ivânovna, com quem teve um filho, Dimítri Karamázov, chamado de Mítia. Fiódor abandonou o filho e surrupiou o dote da mulher, que veio a falecer, segundo alguns, de fome.
Fiódor casa-se, pela segunda vez, com Sofia Ivânovna, com a qual tem dois filhos, Ivã e Aliocha, os quais abandona também. Fiódor rouba, de novo, o precioso dote da esposa, e vive como um rico que não trabalha.
- Mítia, considerado sensual, detestava o pai.
- Ivã é ateu, mas escreve artigos sobre teologia.
- Aliócha é virgem, místico e preocupado com questões sociais.
-Smiérdiakov, filho natural, epiléptico, vive com um empregado doméstico.
Dostoievski atribuiu seu próprio nome, Fiódor, ao pai dos Irmãos Karamázovi. O nome Karamázovi, plural de Karamázov, é provavelmente composto de Kara (castigo, punição) e do verbo mázat (sujar, errar). O autor atribuiu ainda sua própria doença, a epilepsia, ao filho natural.
O texto é uma trama policial incrível, que arrebata o leitor, apesar do peso da culpa que atormenta todos os personagens. Somos culpados por tudo e por todos, é o refrão que não cessa de ser repetido.
Os irmãos Karamázovi não sentem afeição pelo pai. Ao contrário, só diferem entre si pela quantidade de ódio que cada um devota ao personagem que os cobre de vergonha. Mítia é o mais decepcionado, revoltado com o fato de que Fiódor dilapidou a herança materna que caberia, por direito, aos filhos. Mítia fez várias tentativas de recuperar, pelo menos, uma pequena parte do dinheiro que lhe pertencia, e que o pai gastava com mulheres, com farras e jogatina.
Nenhum dos filhos disfarçava o desejo confesso de matar o pai. Entre os três, sobressaía Mítia que, além de ameaçar cometer o parricídio, já era chamado, pelo próprio pai, de parricida. O drama culmina no momento em que pai e filho disputam a mesma amante, Grúchenhka, apaixonadamente, com paroxismos de ciúme. Neste trio, Grúchenhka está claramente no lugar da mãe de Mítia, a qual, aliás, é a grande ausente no enredo. A mãe é representada também pelo dote disputado entre pai e filho.
Finalmente, ocorre o assassinato de Fiódor, em circunstâncias obscuras e confusas, deixando dúvidas sobre o assassino, apesar de muitas pistas, que apontavam para Mítia e Smiérdiakov. Ambos negavam a autoria, atribuindo-a sempre ao outro. A investigação policial é tão minuciosa, que havia indícios fortes sobre os dois suspeitos. Mítia insistia e não ocultava que sempre desejou matar o pai, mas não o executou. Smiérdiakov, por seu lado, dizia ter percebido insinuações do irmão, para que matasse em lugar dele.
Mítia vai se firmando como o mandante do crime. Mas acontece que, no momento do assassinato, Smiérdiakov tinha entrado em crise epiléptica, real ou fingida, e alegava não se lembrar de nada. Foi marcado o dia do julgamento. Na véspera, Smiérdiakov se suicida. Agora, o júri só tem um suspeito, Mítia, que havia planejado fugir, e deixou uma carta assinada, em que confessava o crime. Foi preso antes da fuga. Ao escutar a leitura dos autos, alegou que a carta tinha sido escrita em estado de embriaguês.
O leitor se sente perdido no meio de tantas argumentações, provas, contraprovas e desmentidos, sem conseguir identificar o culpado. A sentença do juiz condenou Mítia. A pena foi a deportação para a Sibéria, para vinte anos de trabalhos forçados. Mítia aparentou estar conformado com a condenação, mas insistia em dizer que o verdadeiro culpado de toda a tragédia foi Fiódor, o pai que induziu os filhos a uma revolta parricida. O último lance da história foi o plano bem arquitetado por Mítia de fugir durante o translado para a Sibéria. Não há informação se teve sucesso nisto.
Freud, no texto sobre Dostoievski e o parricídio, aposta na culpabilidade de Smiérdiakov. Comparando este texto com o de Shakespeare, afirma que o romance russo avança mais: o homicídio é também cometido por um outro, Smiérdiakov, mas este outro está, para com o assassinado, na mesma relação filial, de irmão, que o herói Mítia. Em Hamlet, o filho assassina o tio, por ordem do pai. E o motivo da rivalidade sexual é abertamente admitido, a mãe ou sua substituta. Ao atribuir ao culpado, Smiérdiakov, sua própria doença, a epilepsia, Dostoievski parece estar confessando que o epiléptico, o neurótico nele próprio, era um parricida, já que se sentia culpado pela morte de seu pai, mesmo não sendo o autor da mesma.
Neste intercâmbio entre o escritor e o personagem de seu romance, a culpa do próprio Dostoievski, com relação à morte de seu pai, assumiu uma forma tangível, concreta, através de dívidas financeiras. Para saldá-las, refugiava-se nas mesas de jogo, onde esperava ganhar dinheiro, e onde sempre perdia.
Para a psicanálise, importa pouco quem seja o verdadeiro assassino. Desejar simplesmente a morte do pai já caracteriza o parricídio imaginário. E o sentimento de culpa daí decorrente pode levar ao crime concreto. É o que diz Freud no texto sobre Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, onde fala do “criminoso por um sentimento de culpa”, expondo a tese de que, em vez de o crime produzir a culpa, é a culpa que pode levar a cometer um crime, para punir e a apaziguar o sujeito.
Na mesma linha, Lacan, propôs o conceito de paranóia de autopunição, em que o crime tem um efeito terapêutico de acalmar quem o comete, porque recebe, finalmente, a punição de uma culpa que o fazia sofrer.
Onde está a tragédia paterna em Dostoievski, segundo a psicanálise? A caracterização do pai dos Karamazov é mais que suficiente para definir sua falha na função paterna. Este pai, em nenhum momento se coloca como desejante de suas duas esposas, das quais só queria o dinheiro. E não impôs a lei aos filhos, já que nem ele mesmo a cumpriu. Desrespeitou o desejo da mãe de deixar a herança para os filhos. O parricídio encontrou o caminho aberto no desejo dos filhos. Nenhum deles se casou, nem teve descendência. Sendo assim, eles também não cumpriram a função paterna.
“A despeito de toda a minha admiração pela intensidade e preeminência de Dostoievski, de fato não gosto dele. Isso se deve a que minha paciência com as naturezas patológicas está exaurida na análise. Na arte e na vida, não as tolero”. (S. Freud, em “Carta a Theodor Reik”).
Conclusões
Contrariamente à afirmação de Freud, segundo a qual o romance trágico russo é o mais psicanalítico das quatro tragédias citadas, defendo a idéia de que o Fausto, sim, é a que mais se aproxima da proposta psicanalítica, principalmente depois da elaboração lacaniana.
As três outras tragédias seguem mais ou menos uma linha de raciocínio, segundo a qual o desejo é intrinsecamente trágico. Nelas, o trágico é necessário, o desejo é castigado, dentro de um modelo racional e lógico, aristotélico, que não admite contradições: o bem é bem, o mal é mal. Sendo assim, a tragédia é inevitável, já que é comandada pelo Destino, pelos Deuses, pelos Oráculos. A culpa por seguir o desejo não tem remissão, e o preço é a morte. Há um Bem Supremo que é o Bem igual para todos.
No Édipo de Sófocles, a responsabilidade dos acontecimentos vem dos Oráculos e do Destino. O protagonista Édipo não tem autonomia nem poder de decisão.
No Hamlet de Shakespeare, a responsabilidade também vem de fora, do tio Cláudio, com a conivência do fantasma e do espectro do falecido rei. O protagonista é Hamlet que, a reboque dos outros, demora a se decidir, mas não tem outra escolha.
Nos Karamázovi de Dostoiévski, a responsabilidade dos protagonistas é atribuída à epilepsia, no caso de Smiérdiakov, à embriaguês, no caso de Dimítri, ou à própria vítima, Fiódor, o esbanjador.
No Fausto de Goethe, como também para a psicanálise, a contradição é admitida. Bem e mal podem conviver. O desejo não é intrinsecamente mau, pelo contrário, é incentivado, e a tragédia é só contingente. Não há um Bem Supremo para todos, mas a Ética é uma ética do desejo de cada um. O mal não vem de fora, mas de dentro, do inconsciente, que é responsabilidade do sujeito. Logo, o sujeito pode administrar seu desejo, conforme o livre arbítrio.
Assim, ao contrário da tragédia clássica, em que seguir o desejo gera culpa e castigo, para a psicanálise só há culpa se não se seguir o desejo. Por isso, Freud tanto valorizou o desejo, pondo a psicanálise a seu serviço, e Lacan deixou claro que, de nossa posição de sujeitos, somos sempre responsáveis.
Onde está a tragédia paterna em Goethe? Podemos afirmar que ela não existiu. Fausto foi redimido e recompensado. Por quê? Porque ele providenciou para si mesmo uma suplência da função paterna, nas pessoas do Mefisto e de Deus, que funcionaram como pais substitutos para ele, autorizando-o a desejar.
A tragédia na modernidade
E como é a tragédia na modernidade? Ao contrário da tragédia clássica, psicológica, individual, a moderna tragédia é de cunho social, político, de massas. Caracteriza-se pelo anonimato e descomprometimento das vítimas. Nela, as vítimas pagam caro pelo que não fizeram. Na Primeira Guerra Mundial, houve 8.700.000 mortos, desconhecidos. Igualmente na Segunda Guerra, 40.000.000 de vítimas, não incluídos os feridos, inválidos, órfãos.
O que significou o atentado às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos? As explosões dos homens-bomba pelo mundo afora? A violência incontrolável nas cidades? Poucos cidadãos ainda não foram vítimas de seqüestros ou de assaltos. Cresce a civilização e, com ela, o mal-estar. A pulsão de destruição, ou de morte, não dá trégua.
Mas a psicanálise, com Freud e Lacan, veio destacar também a comédia na vida cotidiana, seja pelos chistes, com Freud, seja pela comicidade do amor e da paixão, com Lacan. A tragicomédia, pelo menos, é mais lúdica e voltada para o princípio do prazer, do que a tragédia clássica.
Dou por encerrada essa minha apresentação, agradeço mais uma vez o convite e a atenção dos alunos todos e espero que agora vocês tenham a oportunidade de fazerem as questões, se eu puder responder, sentirei muito prazer. Muito obrigado!
Conexão Lacaniana: Muito obrigada Geraldino, agora iremos passar para as questões. Já temos aqui uma primeira questão do Angelino e eu pediria que vocês fossem colocando suas questões, nós estaremos marcando a ordem e propondo para o professor Geraldino. Muito obrigada, vamos as questões.
Geraldino A. F. Netto: As perguntas estão muito confusas porque estão vindo muitas ao mesmo tempo mas eu vou adiantando a questão da função paterna, que vem cada vez mais definhando né, pelo menos como ela era vista antes da psicanálise, ela faz com que esta figura do pai que foi sempre aquele que colocava o desejo em ordem, essa figura perdeu um pouco a sua força e perdeu da sua violência, mas a função paterna em si não desapareceu, ela é exercida hoje também pela mãe, tanto a mãe quanto o pai exercem a mesma função paterna, essa que pode estar hoje sendo dividida e não interessa quem exercita essa função, o importante é que acontece, mas fica claro que a ausência da lei, a ausência da função paterna faz com que a sociedade atravesse por uma enorme tragédia, nós vivemos hoje a questão da violência e vivemos hoje a questão da corrupção e vivemos hoje uma questão social de desigualdade muito grande e que certamente tem haver com isso, não há uma lei, não há uma ordenação fraterna no sentido de que as pessoas tenham tempo de (trecho incompreensível) e aí a responsabilidade de cada um vai diminuindo.
Pergunta (SC): Vimos a função paterna e a tragédia. E numa tragédia coletiva como a da 2a. Guerra Mundial? Como analisar?
Geraldino: A pergunta de como analisar a Segunda Guerra Mundial. Certamente que o pai que falhou aí nesta história foi o Hitler, ele tinha uma função que foi muito claramente atribuída pela população, pelo povo alemão, ele foi eleito por uma votação direta para uma função que seria aquela de representar, de ser representante da lei, portanto ser a função do pai. Mas ele falhou exatamente nisso, ele colocou outros propósitos pessoais, outras questões um tanto... eu vou dizer que é algo do seu próprio desejo pequeno, pessoal, que fez com que a sua função se diluísse completamente e na sua fantasia ele pensou em conquistar o mundo que não tinha nada a vercom a proposta dos seus filiados. Tentou extirpar do mundo a raça dos judeus, tentou criar uma raça nova, um direito completamente fora da sua atribuição, e com isso ele cria uma psicose coletiva.
A questão do nazismo, da Alemanha, da guerra mundial, foi uma psicose coletiva, assim como se entende que se numa família, a foraclusão do nome do pai, a ausência dessa figura pode levar uma pessoa a psicose, também do ponto de vista coletivo, aquilo que acontece com a pessoa, acontece também com o grupo.
E, bom, acredito que foi isso que aconteceu, uma loucura coletiva da qual as pessoas, os alemães, só conseguiram tomar conhecimento depois que não havia mais retorno, infelizmente, a gente espera que isso não aconteça mais, embora nada nos garanta. O Freud, na sua correspondência com Einstein, defende essa idéia, que a guerra haverá sempre, que a questão da guerra é a questão da destrutividade, a questão da agressividade é constitutiva do ser humano e faz parte da pulsão de morte e não há como mudar isso.
(SC): Metaforicamente há uma função paterna na tragédia coletiva
Conexão Lacaniana: Juliana, faça sua pergunta sobre não "desculpabilizar-se pelo desejo"
Geraldino: Desculpabilizar-se... eu estou me perdendo aqui no meio das questões que são muitas, mas há uma pergunta... não se desculpabilizar pelo desejo.
Bom, nós não temos que ter culpa por desejar, o desejo faz parte de nós seres humanos, a paixão ela nos pega, nós não temos como controlar o desejo, aliás, nós temos é que agradecer muito pela presença do desejo em nós, porque a presença do desejo significa simplesmente que houve uma função paterna em jogo na nossa história. É que houve alguém que impediu o gozo de andar, esse gozo que nos enlouqueceria se ele não fosse, de certa maneira, disciplinado.
Portanto, com a função paterna esse gozo foi proibido, foi interruptado e nós tivemos acesso ao desejo. Longe por nos sentirmos culpados por desejar, nós devemos agradecer por poder ter acesso ao desejo, embora o desejo muitas vezes nos apronte alguns imprevistos, ele pode continuar, ele pode em algum momento nos levar para a tragédia, mas pior do que desejar e encontrar a tragédia seria não desejar em hipótese alguma, porque o não desejar já é a morte, a morte do desejo, já é uma primeira morte e isso gera a tragédia da segunda morte, bom, pelo menos o sujeito já não tem que se arrepender da sua missão, porque era o que era possível fazer. Vamos ver mais uma pergunta.
Pergunta (CE): O senhor mencionou que o desejo de matar é o importante, para Freud, mesmo que isso não aconteça de fato. Pois bem, Édipo não desejou matar o pai, pois ele de nada sabia. Ele nem sabia que aquele senhor que ele matou, o Laio era o seu pai biológico. Aliás para ele o seu pai era aquele que o criou e que ele abandonou quando soube do oráculo do seu destino de matar o pai e desposar a mãe. Édipo não teria pois matado o pai simbólico quando o abandonou por temer o vaticínio de que iria matá-lo? Aí não estaria o assassinato? Já que no medo existe algo do desejo?
Geraldino: Essa pergunta sobre o Édipo, se o simples desejo de matar já constitui o parricídio, é interessante essa pergunta porque o Édipo não teve o desejo de matar o pai, pelo menos o desejo consciente. A saída do Freud foi exatamente isso, tudo bem, mas ele tinha um desejo inconsciente de matar o pai, mas o próprio Freud não ficou lá muito satisfeito com essa articulação não, porque ninguém se convence de que o Édipo tinha alguma culpa.
Coitado, fez tudo aquilo sem querer. Muito pelo contrário, ele fez tudo para evitar que isso acontecesse, mas mesmo assim a tragédia o surpreendeu. Mas o Freud foi procurar outros argumentos para provar que a questão do parricídio é uma questão que é comum na humanidade toda, para isso ele inventa aquele mito de assassinato do pai da horda primitiva porque ali o assassinato foi consciente.
Então dá para entender que ali os filhos têm a culpa mesmo, que o mataram, mas no caso do Édipo não tem nenhuma culpa clara, porque na tragédia grega é isso, quem investiga a vida dos humanos são os deuses, aquilo tudo foi vontade dos deuses, foi vontade dos oráculos. Então o Édipo, como o povo grego em geral, não se sentia responsável por nada, era tudo fruto do destino.
O que está de diferente aí entre a tragédia grega e o que a psicanálise propõe, é que se lá não havia subjetividade, a psicanálise propõe que não, com tragédia ou sem tragédia nós somos responsáveis pelos nossos atos, nos temos que pagar pelo que fazemos e temos que perseguir sim o nosso desejo, que é melhor assim do que não ter desejo nenhum.
Por exemplo, os budistas vão ter uma teoria segundo a qual a gente tem que eliminar todos os desejos da vida. Acho uma proposta meia estanha porque é impossível eliminar os desejos, sem desejo a gente não vive, o que nos faz estar vivos é estar desejante. Porque desejar significa que falta alguma coisa e se falta alguma coisa, nós vamos tentar buscá-la, esteja onde ela estiver. Ainda que seja uma pulsão extremamente imaginária, mas estamos tentando completar isso o que nos falta.
Querer viver sem desejo, como diz os budista, já é um desejo, um desejo de não desejar. Então do desejo não temos como escapá-lo, e também não temos como nos culpar. Cada um deve fazer aquilo que é melhor para si mesmo, aquilo que vai lhe trazer um maior prazer.
E há ainda uma outra diferença entre as tragédias gregas e a psicanálise é que na tragédia grega não há subjetividade. O sujeito não está ali porque ele é dominado, ele é controlado sempre de fora, então ele nem deseja, os deuses desejam por ele. Então o que a psicanálise vai propor é que nós podemos sim desejar, somos responsáveis pelo que fazemos, e o desejo nos mantém vivos. Sem desejo a gente esta já morto.
Pergunta (SC): O simples desejo de pecar pecado é, diz-se na Igreja Católica; Édipo matou o pai sem sabê-lo.
Geraldino: Essa idéia da psicanálise de que um simples desejo do parricídio já é um parricídio é muito parecido mesmo com que o João Carvalho está perguntando. Se o simples desejo de pecar, já é pecado para a Igreja Católica, é mais ou menos isso, ele acrescenta que o Édipo matou o pai sem sabê-lo e aqui no caso ele não teve este desejo.
Pergunta (RJ): Se houve a presença do desejo em Fausto como pode ter havido falha na função do pai?
Geraldino: No caso do Fausto, eu coloco que houve falha na função do pai pelo seguinte, o fato de que se Fausto teve que procurar Nefisto, o demônio, para fazer um pacto com ele, é porque ele estava dizendo claramente que não teve pai. O pai não aparece, o pai do Fausto não aparece no livro, então ele substitui o pai pelo demônio. Aliás, essa é uma questão interessante porque, podemos pensar que no Fausto houve duas funções paternas. Uma exercida pelo diabo, outra exercida por Deus. Pelo menos ele tentou, Fausto tentou uma restituição desta função paterna no pacto que fez ao demônio e na insistência que Deus fez para tentar salvá-lo. Então de alguma maneira, ele teria essa função paterna e é por isso, certamente, que ele se saia melhor do que os personagens das tragédias anteriores. Ele, apesar de tudo, se saiu relativamente bem, ou muito bem.
Voltando as diferenças entre as tragédias gregas, clássicas, é que lá, naqueles casos citados sempre há um outro que se coloca como responsável, mas é um outro que é um pequeno outro, é uma outra coisa, uma outra pessoa, uma doença, uma embriaguez, um substituto que comete o crime, mas no caso o que a psicanálise me faz pensar é que um outro que está em jogo é um grande Outro, é o nosso próprio inconsciente, é a lei que com toda a sua questão, e que é função do pai colocá-la em ação para o filho. Bom, são muitas questões que me confundo um pouco... bom, não sei como está a questão do tempo, eu me coloco a disposição para responder...
Pergunta (CE): O senhor mencionou que o desejo de matar é o importante, para Freud, mesmo que isso não aconteça de fato. Pois bem, Édipo não desejou matar o pai, pois ele de nada sabia. Ele nem sabia que aquele senhor que ele matou, o Laio era o seu pai biológico. Aliás para ele o seu pai era aquele que o criou e que ele abandonou quando soube do oráculo do seu destino de matar o pai e desposar a mãe. Édipo não teria pois matado o pai simbólico quando o abandonou por temer o vaticínio de que iria matá-lo? Aí não estaria o assassinato? Já que no medo existe algo do desejo?
Geraldino: É, correto, no caso do Édipo ele matou o pai biológico, o Laio, mas o verdadeiro pai dele era outro, que era o Rei de Coritos. Então, essa foi a questão que deixou o Freud implicado neste caso, porque a lenda, a história do Édipo, embora o Freud tenha utilizado ela de uma maneira bastante convincente para ele, a história em si não me parece muito adaptada para explicar o que ele queria dizer.
A questão da proibição do incesto e a questão da culpabilidade quando o sujeito tem que decidir os seus próprios atos, minimamente ele teria que saber, no caso do Édipo, mas quando se trata da questão do inconsciente, Freud deixa claro que não é justo alguém alegar que não é responsável pelos seus erros porque foi o seu inconsciente que mandou fazer, como se dissesse, meu inconsciente não é meu.
No final, para a psicanálise o sujeito é responsável sim pelo seu inconsciente, embora ele possa não saber exatamente o que se passa no seu inconsciente, foi ele que recalcou o material que ele mandou para o inconsciente.
É uma ação do próprio sujeito que constitui o inconsciente e por tanto ele é responsável por isso, e ele tem como acessar o seu inconsciente, basta querer. A psicanálise se propõe inclusive como um método exatamente para isso, o sujeito não tem o direito de dizer que agiu sem responsabilidade porque agiu inconscientemente.
Na nossa condição de sujeito, sujeito de Lacan, somos sempre responsáveis, não há desculpa de que isso era inconsciente. Ainda tem mais uma pergunta, se no medo existe algo do desejo. Essa é uma tese freudiana, quando alguém tem medo de alguma coisa, é porque ao mesmo tempo tem desejo sim, aí tem toda a questão do sinistro, do estranho, aquelas coisas que nos causam uma certa estranheza e ao mesmo tempo aquilo que a gente de alguma maneira deseja.
Geraldino: Com relação à transcrição desta palestra, eu poderei também enviar o texto escrito até mais completo para que vocês possam depois dispor dele, é uma coisa pesada para eu encaminhar isso, mas estará disponível para vocês nos próximos dias. Estou tentando organizar as perguntas...
Pergunta (SP): A culpa em Dostoiévski residiria também numa demanda de morte?
Geraldino: Olha, uma pergunta interessante, a culpa em Dostoiévski residiria também numa demanda de morte? O texto de Dostoiévski é cheio da idéia de castigo e de crime, aliás ele tem um livro chamado Crime e Castigo. Os personagens de Dostoiévski, inclusive os irmãos Karamazov, insistem numa frase que se repete o tempo todo: “somos culpados por tudo e por todos”. Bom, se o sujeito mantém sempre presente a idéia de que ele é culpado, concordo que haveria nisso uma certa demanda de morte, o sujeito que fabrica uma grande culpa, ele quer ser punido por esta culpa, ou como Freud sugeriu e Lacan também, atacando uma outra pessoa ou matando alguém, para poder ser punido de uma maneira mais concreta ou se matando a si mesmo, então, a demanda de morte faz sentido sim, dentro deste contexto da culpa que não se resolve nunca nos personagens de Dostoiévski, por isso os livros de Dostoiévski são muito pesados, eu acho que ele mostra bem qual é a cultura da Rússia, um povo muito (incompreensível) na questão da culpa e do castigo.
Conexão Lacaniana: Vamos para última questão.
Pergunta (SP): Penso na função do Pai na história de Kasper Hauser, ausente desde o começo da história. Há um vazio na constituição de sua subjetividade, talvez por não haver uma tragédia na trama de sua história. A tragédia talvez seja a própria falta de tragédia; assim Kasper acaba "pagando o bode" de sua própria história. Pela relação que temos neste momento cultural com o Nome-do-Pai não seríamos todos como que irmãos de Kasper Hauser?
Geraldino: Temos aqui uma pergunta falando sobre Kasper Hauser, de que a tragédia seja talvez a própria falta de tragédia... Kasper acaba pagando o bode de sua própria história. Bom, o que Lacan coloca é isso, que a castração é algo que nos faz sofrer, é o que vai introduzir em nós uma grande falta, vamos perder a mãe, digamos assim, mas pior do que essa falta, é a falta da falta, se faltar esta tragédia, é uma outra tragédia, pelo menos é isso que está sendo dito aqui, nessa pergunta da Carla Audi, que a tragédia seja a própria falta de tragédia, é a falta da falta como o pior que pode acontecer para alguém, a falta em si já é sofrida, mas a falta da falta é a morte total, né, ou a loucura.
Geraldino: Bom, aqui estava dito que esta seria a última questão, não sei como está a questão do tempo... bom, como é que esta a situação, não sei se tem perguntas para responder, se já estamos terminando, como ficamos, da minha parte dou por terminada minha apresentação e se alguém ainda tiver outra questão, estou aqui disponível.
(SC): Professor, excelente sua conferência, para mim um pouco prejudicada porque o som estava entrecortado, mas deu de acompanhar que a culpa no Fausto não tem o mesmo peso, se entendi bem; hoje o mal-estar não está na ausência da lei mas no NADA, na ausência do trágico? Teria como definir esse trágico do Agora? E já que falou em História, a do bode expiatório no caso, para gregos e romanos o mal estava no mundo e o indivíduo era purificado (batismo) ao entrar e sair do mundo, na religião judaico-cristã o homem vem ao mundo com o "pecado original" - poderíamos pensar que esse pecado original se refere ao Desejo, ao incesto, portanto? Obrigada, Maria Luiza.
Geraldino: Dizer que o mal-estar, hoje, está no Nada, e não na ausência da lei, é uma afirmação lúcida. Talvez a ausência da lei esteja exatamente na abundância de leis, que não são respeitadas, nacional e internacionalmente. Não por acaso, dois grandes filósofos, meio contemporâneos e admirados por Freud, Nietzsche e Schopenhauer, eram nihilistas. Uma grande diferença entre as tragédias clássicas é que, nestas, fica patente o respeito à vida. Para se matar uma única pessoa, se bem que não é uma pessoa qualquer, mas um pai (Laio, Fiódor, Cláudio, este no lugar do pai de Hamlet), arma-se todo um drama, uma parafernália, demora-se a executar, sente-se enorme culpa, paga-se caro pelo ato. Sendo que estas pessoas haviam aprontado alguma arte, e mereciam vingança. Hoje, a detonação de uma bomba atômica precisa de apenas alguns minutos para exterminar milhões de pessoas inocentes. A vida, hoje, vale Nada. Numa guerra do Iraque, milhares de mortes são até justificadas oficialmente como um bem para a democracia. Os assaltantes ou os pistoleiros matam por 200 ou 300 reais. Sem culpa, sem punição.
Dizer que a vida é um Nada, é nossa tragédia. Vivemos a cultura da banalidade da vida. Na Grécia, os deuses eram os controladores da vida das pessoas. Todas nasciam com o destino traçado e explicado pelos oráculos. No cristianismo, acredita-se que é Deus quem cria as pessoas, mas já as marca com o pecado original, antes que elas tenham chance de consentir ou não. E tudo isto tem a ver com o desejo? O que aconteceu com Adão e Eva, quando desejaram ("comer?") uma maçã? O desejo aponta sempre para uma falta que, em qualquer abordagem, filosófica, religiosa, psicanalítica, jamais será preenchida. Trágico, não? Se não podemos beber uma garrafa inteira, por que não curtir meia garrafa?
Conexão Lacaniana: Geraldino, acho que podemos ir terminando, e me parece que todas as perguntas foram respondidas. Eu gostaria de agradecer imensamente em nome do Dr. Márcio e de toda a Conexão a excelente conferência com a qual você nos presenteou, e esperamos poder contar com você por aqui outras vezes. Para aqueles que perguntaram, está conferência vai ser transcrita e disponibilizada a vocês. Muito obrigada Geraldino, foi um prazer tê-lo conosco.
Geraldino: Eu que agradeço a vocês a gentileza e o amável convite que aceitei com muito prazer.
Conexão Lacaniana: Boa noite a todos.
Núcleo Márcio Peter de Ensino - Conexão Lacaniana
Curso OnLine "Psicanálise e Cultura - Freud e Lacan"
Conferência 31/08/08 | Moderação: Carla Audi