A Negação da Falta
Cinco seminários para analistas kleinianos
Márcio Peter de Souza Leite
Não é o caso de Márcio Peter de S. Leite. Convidado a apresentar uma série de cinco seminários sobre o ensino de Lacan para um grupo de psicanalistas influenciados basicamente pela escola inglesa, kleinianos portanto, ele não hesita em produzir um discurso de clareza peculiar, fluido em sua articulação, cheio de exemplos e referências que prendem a atenção do ouvinte/leitor. Tal discurso, contudo, não prescinde do rigor e da precisão exigidos pelo tema. Aqui, a complexidade dos conceitos não é evitada, mas, ao contrário, exposta e comentada com nitidez.
Esta é a marca distintiva desta obra, de interesse não só para os psicanalistas mas para todos os que tenham na psicanálise uma referência e/ou uma causa (de desejo).
Apresentação
Inicialmente intitulado “Introdução ao ensino de Lacan”, os cinco seminários que agora são publicados fazem parte de uma experiência do autor junto a analistas de orientação kleiniana. Não se trata portanto de aqui fazer uma introdução, posto que introductione – admissão em um lugar – foi realizada pelos referidos colegas. Tampouco um prefácio se revelaria adequado ao que lhe foi atribuído – de praefatio, o que diz no princípio –, já que aí ele habitou.
Apresentar os seminários de Márcio Peter corresponde a reconhecer que sua produção inscreve-se no campo onde nos autorizamos a freqüentar como psicanalistas. Quanto mais sua palavra avança, ressignifica-se, em retorno, a obra de Freud e a marca de Lacan. É apenas no sentido desse reencontro faltoso que algumas palavras podem obter espaço.
Encontramos no texto uma passagem que em geral nos é apresentada como um problema de tradução. O autor nos lembra que mais do que admitir Id, Ego e Superego como latinizações impróprias ao original alemão das Es, das Ich e Uberich, a questão deve ser deslocada para Outro lugar. Pelo rigor da leitura de Lacan, Isso, Eu e Supereu adquirem características que ultrapassam as discussões de fidelidade a termos. Trata-se de admitir que, como conceitos, revelam muito mais um impasse do que uma solução, e dessa forma somos convocados a manejar seus efeitos, e não apenas limitar seu campo a uma adequação terminológica.
Sabe-se que Freud utilizou das Es – o Isso – na reformulação que deu origem à segunda tópica. A partir daí o recalque deixa de ter o lugar que possuía na primeira tópica, já que inconsciente e recalcado não mais coincidem. Faz operar dessa maneira uma mudança na própria técnica analítica, uma vez que “o grande reservatório da energia pulsional”, Eros e Tanatos, não permite mais a transformação do inconsciente em consciente. Uma vez que o Isso, para Freud, não abrange a totalidade do psiquismo inconsciente, ainda assim o Eu dele retira sua energia. Sendo o Eu essa “parte do Isso que foi modificada sob a influência direta do mundo exterior", Freud vê nele operar, particularmente através do fetichismo, duas atitudes psíquicas distintas baseadas na Spaltung do Eu, uma divisão na vida psíquica. Trata-se da entrada em cena da Verleugnung – recusa – que procura apagar a presença da castração. Mesmo assim, diria Mannoni, a diferença não deixa de se marcar pela própria exigência do fetiche.
A não-coincidência da vida psíquica, o fato de o Eu não ser senhor na própria casa, é uma das heranças que Freud nos lega, como acabamos de constatar. Quando Lacan insiste na diferenciação entre o Je e o Moi, respectivamente o sujeito da subjetividade desejante e o Eu como função imaginária, recoloca magistralmente essa questão. O Eu que deve advir na consagrada fórmula freudiana wo Es war soll Ich werden é o je na condição de sujeito inconsistente, representante da divisão psíquica. Lacan requalifica esse isso que fala em mim mesmo (moi même) como corte, fissura, cisão. Sua contribuição do Estádio do Espelho permite apresentar o Eu como sendo desde sempre remetido a um Outro. A alienação do Eu ao Outro é mantida no nível da imagem e do desconhecimento, o que fará com que os primeiros objetos de desejo impliquem a rivalidade, laço essencial de tensionamento que aglutina a função imaginária na vertente da agressividade. O avanço dessa elaboração irá conduzir Lacan a atribuir ao Eu o estatuto de objeto. No que para além dessa autoconsciência que a identificação à imagem do Outro promove, trata-se de considerar a fascinação que no olhar se inclui para além da captura narcisista da imagem, em direção ao objeto real, não especularizável, causa de desejo. Da mesma forma, a alienação assumirá o lugar que lhe é próprio na cadeia significante, fazendo com que a divisão apareça na separação, para logo depois desaparecer.
A contribuição de Lacan quanto ao Eu e ao Sujeito é fundamental, tanto no que restitui o sentido da obra de Freud quanto no que coloca em questão o narcisismo e a análise do Eu como guias da prática analítica. Isto porque se a reparação do Eu não é possível de ser operada, a noção de objeto adquire um valor totalmente distinto ao que comumente se admite. Vale dizer que é a ética da psicanálise que entra em cena, de maneira a interrogar se o limite da prática analítica não excede aos ideais e ao narcisismo. E se a função do analista na cura não implicaria tanto um questionamento do ideal histérico da reparação quanto um lugar de dessubjetivação onde o sujeito pudesse ser remetido a um Outro, mais do que tu.
No que se refere ao Unbewusste de Freud, o inconsciente, Lacan o recuperou segundo uma estruturação por elementos formais, pelas duas leis constitutivas da metáfora e metonímia. Permitiu-se assim, como nos mostra o autor do seminário, a vigência de uma determinação simbólica frente à tradição pós-freudiana de substancialização imagética. A tópica do inconsciente se define pelo algoritmo S/s, onde o significante assume lugar de destaque, e a barra, barrando a significação pelo recalque das representações, o qualifica eticamente como faltoso, real, sempre à deriva de simbolização e, portanto, de desejo e sentido.
Além desses comentários que o seminário promoveu, gostaria ainda de ressaltar dois aspectos. O primeiro refere-se ao estilo do autor. Ele se inclui numa direção que poderíamos denominar, rigorosamente, envolvida com Lacan. E aqui não se trata de relevar o conjunto dos enunciados. Mais do que isso, pauta-se pela orientação desses elementos mínimos de escrita denominados matemas. Permite rigorizar de forma reduzida ao que irá ser transmitido. Exclui assim todo um pseudo-estilo lacaniano, comum em nosso meio, onde se qualifica o máximo de confusão e hermetismo. Afastado desse modismo nefasto, Márcio Peter nos permite entrar em contato com um discurso que pauta suas referências na experiência da prática clínica. Ponto de confluência daqueles que se intitulam psicanalistas, a prática clínica empresta seu vigor até mesmo para questionar algumas afirmações teóricas. É evidente que sem elas nada disso seria possível, mas o autor nos demonstra que a fala de um analista numa situação de seminário, em que sua enunciação é convocada, não pode se confundir com os regulamentos do discurso universitário, em que o Saber, ocupando o lugar de agente, anula os efeitos do sujeito que aí subsiste.
Por último, vale lembrar a própria situação em que o seminário se desenrolou. Um momento de encontro, troca, e, por que não, de transmissão com colegas kleinianos. Se por um lado é possível afirmar que a transmissão da psicanálise é impossível, uma vez que ela só se concebe como “ruptura na cura”, por outro lado o sintoma de que se sofre ensina “porque ele é posto na obra que se quer ler e a desordena”. Se a psicanálise pode se tornar o sintoma do psicanalista – na qualidade de pedaço de real que se tenta dizer –, espera-se que a verdade parcial desse desejo possa ter remetido cada um dos ouvintes ao desejo presente em sua questão. Dessa forma, o que era antes um curso de introdução ganha novo valor pelo sentido que esse desejo terá despertado, e que agora nos convoca pela escrita.
(Mauro Mendes Dias)
SUMÁRIO - A NEGAÇÃO DA FALTA
Cinco seminários sobre Lacan para analistas kleinianos
(Márcio Peter de Souza Leite)
INTRODUÇÃO – O inconsciente avança?
• O chiste e o inconsciente que muda
• A angústia e a modernidade
• Declínio da psicanálise
• Saber e pós-modernidade
CAPÍTULO I – O percurso de Lacan
• Da biografia à teoria
· Apresentação
· Biografia versus teoria
· A transmissão da psicanálise
· A comunicação oral
· O método
· Da Lingüística à Matemática
· A cadeia de significantes
· Didática do Real, do Simbólico e do Imaginário
• Da psiquiatria à psicanálise
· Psicanálise lacaniana versus psicanálise kleiniana
· Lacan psiquiatra
· O crime paranóico
· O Estádio do Espelho
· a estruturação do ego
· O corpo despedaçado
· Antecipação do psicológico sobre o biológico
· A estrutura do ser
· Narcisismo
· Identificação
· Ciúmes primordiais
• Conclusões
CAPÍTULO II – O inconsciente estruturado como linguagem
• As formações do inconsciente
· Registro do Simbólico
· Um enigma, um jogo
• O retorno a Freud
· O Sujeito e o Ego
· O sentido de Freud
· Diga com suas palavras
· Significante/Significado
· O chiste, o cômico e o humor
• Conclusões
CAPÍTULO III – O inconsciente como Lei
• Édipo estrutural
· A ética e a Psicanálise
· Outro Lacan
· O outro sentido
· O discurso
· Édipo estrutural
· Mito, um sonho
• A função paterna
· Primeiro tempo do édipo
· O Pai
· O Pai Simbólico
· O Pai Imaginário
· Estrutura de parentesco
· O Nome-do-Pai
· Segundo tempo do édipo
· Metáfora paterna
• Conclusões
· Superego
· Gozo
CAPÍTULO IV – A clínica psicanalítica
• As estruturas clínicas
· A verdade e o tempo
· Títulos
· Père-version
· Saber e verdade
· Haveria por dizer
· “No princípio era verbo”
· Sinais, sintomas e síndromes
· Neurose
· Perversão
· Psicopatia
· Rupturas radicais
· Técnica e teoria
· Angústia de castração
· Clínica freudiana
• A posição do analista
· A falta no Outro
· O estilo histérico e o estilo obsessivo
· Fobia
· Diagnóstico
· A estrutura psicótica
· $—A
· “Não é louco quem quer”
· Transferência
· Feitichismo
• Conclusões
CAPÍTULO V – A direção da cura
• A situação analítica
· Estilo de transmissão
· Os Quatro Discursos
· A cadeia significante
· Verdade e castração
· Clínica da transferência
· Jogo de xadrez
· A direção da cura
· A estrutura dos discursos
· Condições de cura
· O ato analítico
· O preço
· A tática e estratégia
· A liberdade do analista
• O fim da análise
· O tempo de tratamento
· Duração da sessão
· Freqüência
· Tempo de sessão
· Tempo metonímico
· Pressa
· Pulsão temporal
· Entrada em análise
· Entrevistas preliminares e psicose
· Transferência e início de análise
· Diagnóstico
· Fim de análise
· As vias
• Nota bibliográfica
O autor
Márcio Peter de Souza Leite é médico, psiquiatra e psicanalista, membro da da Sociedade Psicanalítica de São Paulo. É autor de O Deus odioso, o diabo amoroso - Psicanálise e a representação do mal (Escuta, 1991). Também é co-autor dos livros Lacan através dos espelhos e O que é Psicanálise, segunda visão, ambos da editora Brasiliense
Editora Relume-Dumará • RJ • 1992