Vinte anos atrás, quando a psicanálise lacaniana começou a ser divulgada no Brasil, era heresia chamá-la de lacaniana. Para ser verdadeiramente lacaniano, o analista, a instituição ou a publicação deveriam usar a chancela de freudiano, seguindo um conselho de Lacan: “Vocês podem ser lacanianos, eu sou freudiano.” Hoje, a psicanálise lacaniana não é mais aquela que não pode dizer seu nome.
Márcio Peter de Souza Leite ousou ser lacaniano desde sempre. Daí que não é de estranhar o título de seu novo livro, com a agravante ainda de incorrer numa segunda heresia, no subtítulo, ao dirigir sua fala a um pùblico kleiniano. Porque era também estipulado que cada gueto psicanalítico, qualquer que fosse sua filiação, considerasse o outro bairro como inimigo cordial. O autor rompeu a convenção, abrindo fecunda interlocução com analistas kleinianos em Psicanálise Lacaniana, Cinco Seminários para Analistas Kleinianos (Editora Iluminuras, 269 págs., R$ 25,00).
Quem acompanha sua vasta produção teórica, em livros, revistas, artigos, seminários, grupos de estudos, conferências e, sobretudo, sua rigorosa prática clínica em consultório e hospital psiquiátrico, não se vai surpreender com esta pérola de livro que sintetiza uma elaborada articulação das teorias freudiana e lacaniana. A profundidade com que aborda tais temas, emoldurada pela clareza e didática, chegam a destoar do conjunto das publicações lacanianas, em geral prenhes de jargões incompreensíveis mesmo para os iniciados.
Este não é um livro para iniciantes. Para neófitos, o autor escreveu “O que é psicanálise”, em 1984. Anos depois, em 1991, o livro sobre o desejo, intitulado “O Deus odioso e o diabo amoroso”. No ano seguinte, lançou os seminários para kleinianos, com o título de “A negação da falta”, que agora vem reeditado, revisto e aumentado com novos temas, testemunhando o avanço da psicanálise, ao mesmo tempo que a maturidade do autor, em Psicanálise Lacaniana.
É inviável condensar conteùdo tão denso numa pequena resenha. Mas algumas das principais idéias podem ser destacadas, como o avanço da psicanálise em direção à pós-modernidade, no rastro do pensamento filosófico pós-estruturalista. De acordo com tal visão, em razão do caráter representacional da linguagem, problemático por causa da desarticulação entre as palavras e as coisas, caberia perguntar se o sujeito pós-moderno seria diferente do sujeito freudiano. O sujeito pós-moderno não responderia a um saber compartido socialmente, seria um sujeito decorrente das mudanças dos costumes sexuais, das mudanças ideológicas, carente de ideais preestabelecidos, que modificou sua relação com o saber.
O autor baseia-se no pensamento de Lacan, que chamou de “sujeito novo” ao sujeito da ciência. Esclarece que foi Descartes quem caracterizou o sujeito moderno, com a operação do Cogito, seguido por Kant, que inaugurou nova forma de pensar, fazendo do presente um acontecimento e propondo a indagação filosófica sobre a problematização da atualidade, com os signos do progresso.Mas foi com Max Weber e Habermas que o conceito de modernidade estabeleceu-se como uma interseção entre tempo e eternidade.
Para Lacan, ser moderno implica que o homem seja independente e autônomo em relação a todo amo e a todo Deus. A criação ex-nihilo seria a manifestação da potência criacionista do significante, e o novo Cogito, em conseqüência da descoberta do inconsciente, seria: “ou eu não penso, ou eu não sou”.
Segundo Márcio Peter, outra questão candente, decorrente da clínica, aponta para as modernas formas de reprodução humana assistida, por meio de inseminação artificial, questionando o desejo feminino de querer ter um filho sem poder, ou de poder tê-lo, sem querer. Ter filhos é um desejo ou uma necessidade? é conhecida a resposta de Freud, afirmando que a mulher normal entra em rivalidade com a mãe quando se depara com a castração materna e escolhe o pai como objeto de amor, do qual poderia ter um filho que a tornaria completa. Com base na equação simbólica (falo é igual a pênis que é igual a criança), a necessidade de ter um filho responde ao desejo de ter o falo, e a mulher vai amar um homem como substituto do pai.
Mas, quando a mulher recorre a uma fertilização pela inseminação, independente do coito, de um doador de esperma desconhecido, ocorre uma subversão, até então impensável, da fantasia que sempre associou a gravidez com relação sexual e com a presença de um homem, do pai. Agora, o desejo de procriação pode ser unilateral, da parte da mulher.
A pergunta que não se deixa de fazer é quanto às fantasias futuras do filho com relação a seu verdadeiro pai, seu pai cromossômico, e as fantasias da mãe com sua produção independente.
Em oposição à mulher freudiana, o autor afirma que, para a mulher lacaniana, o centro do desejo feminino não estaria no “desejo pelo pai”, mas nos efeitos da perda que instaura a falta, o que institui a mulher como não-toda (fálica). E, no capítulo sobre a moda, lembrando que não há um significante para a mulher, propõe que, se o homem nasce vestido por linguagem, no caso da mulher, citando Mauro Mendes Dias, “a moda possa ser caracterizada como uma atividade que produz a vestimenta simbólica para dar conta da nudez, obtendo, como efeito, uma nova posição do ser”.
Vai ser difícil não encontrar Psicanálise Lacaniana em qualquer estante de psicanalistas atualizados. A única ressalva a fazer é que, em razão do acréscimo de vários artigos a um livro anterior, o presente volume perdeu em unidade, aparecendo alguns temas em mais de um lugar. E a revisão gráfica cochilou em vários momentos.
(Geraldino Alves Ferreira Netto)