Uma pérola para estudiosos

Márcio Peter de Souza Leite aborda em livro,
com profundidade, as teorias dos analistas.

(Geraldino Alves Ferreira Netto, “O Estado de S.Paulo”, 20.agosto.2000)

    Vinte anos atrás, quando a psicanálise lacaniana começou a ser divulgada no Brasil, era heresia chamá-la de lacaniana. Para ser verdadeiramente lacaniano, o analista, a instituição ou a publicação deveriam usar a chancela de freudiano, seguindo um conselho de Lacan: “Vocês podem ser lacanianos, eu sou freudiano.” Hoje, a psicanálise lacaniana não é mais aquela que não pode dizer seu nome.

    Márcio Peter de Souza Leite ousou ser lacaniano desde sempre. Daí que não é de estranhar o título de seu novo livro, com a agravante ainda de incorrer numa segunda heresia, no subtítulo, ao dirigir sua fala a um pùblico kleiniano. Porque era também estipulado que cada gueto psicanalítico, qualquer que fosse sua filiação, considerasse o outro bairro como inimigo cordial. O autor rompeu a convenção, abrindo fecunda interlocução com analistas kleinianos em Psicanálise Lacaniana, Cinco Seminários para Analistas Kleinianos (Editora Iluminuras, 269 págs., R$ 25,00).

    Quem acompanha sua vasta produção teórica, em livros, revistas, artigos, seminários, grupos de estudos, conferências e, sobretudo, sua rigorosa prática clínica em consultório e hospital psiquiátrico, não se vai surpreender com esta pérola de livro que sintetiza uma elaborada articulação das teorias freudiana e lacaniana. A profundidade com que aborda tais temas, emoldurada pela clareza e didática, chegam a destoar do conjunto das publicações lacanianas, em geral prenhes de jargões incompreensíveis mesmo para os iniciados.

    Este não é um livro para iniciantes. Para neófitos, o autor escreveu “O que é psicanálise”, em 1984. Anos depois, em 1991, o livro sobre o desejo, intitulado “O Deus odioso e o diabo amoroso”. No ano seguinte, lançou os seminários para kleinianos, com o título de “A negação da falta”, que agora vem reeditado, revisto e aumentado com novos temas, testemunhando o avanço da psicanálise, ao mesmo tempo que a maturidade do autor, em Psicanálise Lacaniana.

    É inviável condensar conteùdo tão denso numa pequena resenha. Mas algumas das principais idéias podem ser destacadas, como o avanço da psicanálise em direção à pós-modernidade, no rastro do pensamento filosófico pós-estruturalista. De acordo com tal visão, em razão do caráter representacional da linguagem, problemático por causa da desarticulação entre as palavras e as coisas, caberia perguntar se o sujeito pós-moderno seria diferente do sujeito freudiano. O sujeito pós-moderno não responderia a um saber compartido socialmente, seria um sujeito decorrente das mudanças dos costumes sexuais, das mudanças ideológicas, carente de ideais preestabelecidos, que modificou sua relação com o saber.

    O autor baseia-se no pensamento de Lacan, que chamou de “sujeito novo” ao sujeito da ciência. Esclarece que foi Descartes quem caracterizou o sujeito moderno, com a operação do Cogito, seguido por Kant, que inaugurou nova forma de pensar, fazendo do presente um acontecimento e propondo a indagação filosófica sobre a problematização da atualidade, com os signos do progresso.Mas foi com Max Weber e Habermas que o conceito de modernidade estabeleceu-se como uma interseção entre tempo e eternidade.

    Para Lacan, ser moderno implica que o homem seja independente e autônomo em relação a todo amo e a todo Deus. A criação ex-nihilo seria a manifestação da potência criacionista do significante, e o novo Cogito, em conseqüência da descoberta do inconsciente, seria: “ou eu não penso, ou eu não sou”.

    Segundo Márcio Peter, outra questão candente, decorrente da clínica, aponta para as modernas formas de reprodução humana assistida, por meio de inseminação artificial, questionando o desejo feminino de querer ter um filho sem poder, ou de poder tê-lo, sem querer. Ter filhos é um desejo ou uma necessidade? é conhecida a resposta de Freud, afirmando que a mulher normal entra em rivalidade com a mãe quando se depara com a castração materna e escolhe o pai como objeto de amor, do qual poderia ter um filho que a tornaria completa. Com base na equação simbólica (falo é igual a pênis que é igual a criança), a necessidade de ter um filho responde ao desejo de ter o falo, e a mulher vai amar um homem como substituto do pai.

    Mas, quando a mulher recorre a uma fertilização pela inseminação, independente do coito, de um doador de esperma desconhecido, ocorre uma subversão, até então impensável, da fantasia que sempre associou a gravidez com relação sexual e com a presença de um homem, do pai. Agora, o desejo de procriação pode ser unilateral, da parte da mulher.

    A pergunta que não se deixa de fazer é quanto às fantasias futuras do filho com relação a seu verdadeiro pai, seu pai cromossômico, e as fantasias da mãe com sua produção independente.

    Em oposição à mulher freudiana, o autor afirma que, para a mulher lacaniana, o centro do desejo feminino não estaria no “desejo pelo pai”, mas nos efeitos da perda que instaura a falta, o que institui a mulher como não-toda (fálica). E, no capítulo sobre a moda, lembrando que não há um significante para a mulher, propõe que, se o homem nasce vestido por linguagem, no caso da mulher, citando Mauro Mendes Dias, “a moda possa ser caracterizada como uma atividade que produz a vestimenta simbólica para dar conta da nudez, obtendo, como efeito, uma nova posição do ser”.

    Vai ser difícil não encontrar Psicanálise Lacaniana em qualquer estante de psicanalistas atualizados. A única ressalva a fazer é que, em razão do acréscimo de vários artigos a um livro anterior, o presente volume perdeu em unidade, aparecendo alguns temas em mais de um lugar. E a revisão gráfica cochilou em vários momentos.

(Geraldino Alves Ferreira Netto)