PSICANÁLISE LACANIANA - Capítulo I   

O Imaginário
  Márcio Peter de Souza Leite



• Lacan aplicado a Lacan
   Biografia e teoria
   Transmissão da psicanálise: onde Lacan supera Freud

• O Eu em Freud e o Imaginário em Lacan
   Paranóia e o Estádio do Espelho
   O Eu em Lacan: do narcisismo ao Estádio do Espelho
   Do Isso à cisão do Eu
   Estádio do Espelho e castração
   Falo Imaginário e falo Simbólico
   O Imaginário ressignificado. Lacan avança Lacan



LACAN APLICADO A LACAN

Biografia e teoria
Lacan sugeriu que o lêssemos após ter-se lido Freud, pois ele fez um retorno a Freud, e não a descoberta da psicanálise. Tentarei mostrar de que forma as reflexões de Lacan trouxeram uma nova interpretação à obra de Freud.
Ao ser colocado como porta voz do saber de Lacan produz-se uma situação estimulante, que propicia escutar de psicanalistas com formação e reflexão próprias, como lhes chegam as idéias de Lacan.
O exercício de pensar criticamente uma teoria mostra a maturidade do meio analítico de São Paulo, pois até então, existiam rivalidades entre grupos que entendiam qualquer questionamento dos dogmas instituídos como uma agressão pessoal.
Considerando as diferentes formações, não existe entre os psicanalistas paulistas um compromisso exclusivo com o empirismo inglês ou com o racionalismo francês, apesar de alguns terem tais inclinações. Ao refletir sobre as várias correntes psicanalíticas poderemos formular críticas e formar uma opinião não apenas repetitiva, mas criativa e original.
É difícil a tarefa de apresentar Lacan. Não fui seu discípulo, sou seu leitor. Lacan chamava seus leitores da América Latina de “lacano-americanos”, dando-lhes muita importância pois supunha que a distância da sua pessoa poderia deixar emergir a significação pura de seu ensino.
Aumentando a dificuldade de compreendermos Lacan, não existe uma biografia definitiva sobre ele, o que dificulta o estudo de sua obra. Com Freud foi diferente, paralelamente à leitura da obra freudiana, pudemos conhecer sua biografia, e com isso interpretar sua produção teórica como um sintoma, pois o principal caso clínico da obra freudiana foi o próprio Freud. Dele conhecemos a vida, os sonhos, a auto-análise e alguns sintomas que ele mesmo interpretou. A construção do caso clínico que é o próprio Freud nos faz interpretar sua obra como sintoma, o que relativiza a teoria e permite ressignificá-la e rearticulá-la.
O mesmo já não se pode fazer com Lacan. Não há referências biográficas que nos possibilitem articular sua vida com sua teoria, pois os dados referentes à sua pessoa na maioria das vezes estão relacionados unicamente à sua vida profissional.
A partir da morte de Lacan, em 1981, tenta-se entender no avanço da sua teoria, quais os momentos da sua produção ulterior que ressignificam a anterior, mas não é ainda possível interpretar sua obra articulando-a com sua história pessoal. Talvez um dia surja o equivalente a um Ernest Jones para Lacan, e uma biografia válida nos permita refletir sobre as motivações da sua produção teórica, talvez isto seja possível com o volumoso livro de Elizabeth Roudinesco: “Jacques Lacan, esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento”. [1].
Lacan formou-se em medicina e especializou-se em psiquiatria. Nesse período teve ligações com o movimento surrealista, e sua tese de doutoramento em medicina foi comemorada como um acontecimento literário. Intitulada Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade” [2] e datada de 1931, sua tese marcou o início da aproximação com a psicanálise e deste momento até 1953 a produção de Lacan foi reunida sob a designação de “registro do Imaginário”. Somente a partir de 1953 Lacan reconheceu o início de seu ensino, apesar de nessa época já estar na Sociedade Psicanalítica de Paris, há dezessete anos. Sua análise didática, ele a fez com Lowenstein, que mais tarde iria para Nova York e faria parte da chamada “tríade de Nova York”, junto a Hartman e a Kris.
Teria importância para a teoria de Lacan a identidade de seu analista? Veremos que um dos alvos constantes dentro de sua produção teórica foi a “psicanálise do Ego”, corrente da psicanálise elaborada, entre outros, por Lowenstein.
Em 1953 Lacan rompeu com a Sociedade Psicanalítica de Paris, por motivos ligados à formação do psicanalista; um ponto ao qual se opunha era a exigência de que os candidatos a analista fossem médicos.
Em decorrência dessa ruptura, Lacan, junto a Lagache, formou a Sociedade Francesa de Psicanálise, Sociedade esta que não obteve o reconhecimento da IPA, uma vez que isso só poderia ocorrer se Lacan se afastasse. Em 1964, Lacan saiu da Sociedade Francesa de Psicanálise e fundou a Escola Freudiana de Paris, que dissolveria em 1980 para “perseverar” fundando a Escola da Causa Freudiana. Lacan morreu um ano depois.
Sua produção teórica pode ser dividida em três períodos. No primeiro, que vai de 1936 a 1953, foi desenvolvido o registro do Imaginário, centrado na teoria do Estádio do Espelho. No segundo, de 1953 a 1964, Lacan desenvolveu o registro do Simbólico, quando formulou a tese do “inconsciente estruturado como linguagem”. No terceiro período, de 1964 a 1980, a ênfase se deu no registro do Real e sua principal contribuição foi o objeto pequeno a.
No primeiro momento, que eqüivale ao desenvolvimento do Imaginário, se poderia pensar que Lacan concebia o inconsciente estruturado como fantasia. Portanto, haveria um privilégio do registro do Imaginário sobre o Real (I>R). A partir das articulações do registro do Simbólico, houve uma ruptura e superação do pensamento anterior. Da mesma forma, quando Lacan introduziu o Real, houve outra ressignificação, tanto do Simbólico quanto do Imaginário, produzindo novos sentidos que não existiriam sem esse percurso.


Transmissão da psicanálise: onde Lacan supera Freud
A transmissão do ensino de Lacan apresenta dificuldades que atingem tanto aqueles que desejam um primeiro contato com ele como os que visam aprofundar a leitura. Esse ensino, realizado principalmente sob a forma de seminários, foi gravado, transcrito e publicado parcialmente, com o título Le Séminaire, por seu genro Jacques-Alain Miller.
A obra de Lacan é muito extensa. Além dos seminários, existem textos recolhidos de revistas, que somente em 1966 foram organizados e publicados sob forma de livro, com o titulo de "Escritos", cujos textos são hoje considerados como clássicos da psicanálise.
A elaboração do “O Estádio do Espelho” [3], por exemplo, foi feita e apresentada pela primeira vez em 1936, por ocasião do Congresso de Marienbad. O original perdeu-se, e por treze anos Lacan utilizou-se dos conceitos lá formulados, mas apenas em 1949 foi possível reescrevê-lo e publicá-lo.
No período de 1953 a 1980, Lacan realizou 28 seminários, um por ano. Ainda hoje circulam cópias desautorizadas, realizadas pelos freqüentadores que registraram as sessões por taquigrafia ou transcrição. De todos os seminários, dez estão publicados oficialmente com texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, mediante aval do próprio Lacan.
Recentemente, o escritor Jorge Luis Borges, reunindo num só livro os prólogos que fez para obras alheias, produziu um prólogo para esta obra que passou a ser o “prólogo dos prólogos”. Uma lista dos trabalhos de Lacan, ainda com mais razão, merece uma “introdução às introduções”, pois, se a vastidão de sua obra torna necessária uma orientação para sua compreensão, também a promessa de “chaves” para sua leitura requer certos cuidados.
Estes reparos, no entanto, não inviabilizam as tentativas de se ordenar e agrupar conceitos e épocas do ensino de Lacan, visando facilitar o acesso do neófito ao mesmo. Só que a convenção das divisões, cuja finalidade didática poderia ser de utilidade para o leitor, fala quase sempre mais do percurso do introdutor do que do próprio Lacan.
Queremos afirmar com isso que ninguém escapa de ter que fazer sua próxima leitura. Entretanto, é necessário precaver-se contra autores que, imbuídos de uma certeza, pretendem ser a sua, a única e verdadeira leitura.
Assim prevenidos, podemos abordar as várias formas em que o pensamento produzido por Lacan foi dividido.
Uma primeira, seria a aplicação de um parâmetro estritamente histórico-cronológico. Nesta perspectiva, poderíamos situar os artigos escritos entre 1926 e 1934, fruto de sua especialização em neurologia e psiquiatria. Depois, de 1934 a 1953, seus trabalhos decorrem da adesão à psicanálise, dando base ao questionamento dos modelos nos quais sua formação se efetuou. Um terceiro período, de 1953 a 1964, marca sua ruptura com a IPA, e o início da emergência de um pensamento teórico que foi designado como “retorno a Freud”. Finalmente, um quarto período, de 1964 a 1981, em que a terminologia e articulações, tanto teóricas quanto práticas, são específicas de um esquema conceitual próprio, que seria o que se conhece, hoje, como “psicanálise lacaniana”.
Traçando um paralelo com Freud – que dentro das conseqüências de sua teoria teria se tornado freudiano só em 1925, com o artigo “A denegação” poder-se-ia dizer, grosso modo, que Lacan se torna lacaniano em 1964, momento em que apresenta uma visão da psicanálise exclusivamente fundamentada nas suas conclusões. Cumpre acrescentar que a virada lacaniana se refere à formalização do conceito de “objeto a”, elaborado a partir da idéia freudiana de "Coisa" (das Ding), abordado em 1961 no seminário sobre a ética e articulado formalmente no seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Da mesma forma, outro ponto de viragem se situa em 1973, no seminário “Mais, ainda”, onde o tema do gozo, já elaborado desde a ética, passa a ser o centro em torno do qual gira a questão do real na prática analítica.
Outra maneira de se convencionar a seqüência do ensino de Lacan não tem a ver com a referência temporal, senão com a lógica interna dos desenvolvimentos teóricos. Este modelo aponta três etapas:
I. A primeira, de 1936, ano da apresentação, no Congresso Internacional de Psicanálise de Mariembad, do texto sobre “O Estádio do Espelho”, até 1953, ano da leitura, no Congresso de Roma, de “Função e campo da palavra e da linguagem na psicanálise”, período caracterizado pela delimitação do registro do Imaginário.
II. A segunda, iria de 1953, com o já citado “Informe de Roma”, até 1976, poria em evidência o registro do Simbólico.
III. Finalmente, uma terceira se estenderia de 1976, ano do seminário “Le Sinthome”, até as últimas produções de Lacan em 1980, período que se destaca pela ênfase dada ao registro do Real.
Uma outra tentativa de vetorizar a obra lacaniana, sugerida por C. Faig, mais detalhada que as anteriores, permite uma panorâmica minuciosa de suas interseções conceituais, sem desconhecer as articulações precedentes. Esta proposta, cristaliza os temas dos seminários e dos escritos, em função de sete subdivisões:

I) Seminários I a IV: desenvolvem o conceito de intersubjetividade, a partir dos esquemas L, e R. O seminário IV situa-se no limite do nascimento do objeto a.

Os escritos correlatos são: “A agressividade“, “O Estádio do Espelho...”, “Introdução e resposta a Jean Hyppolite“, “Função e campo da palavra”... “A carta roubada”, “A coisa freudiana...”, e “Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”.

II) Seminários V a VIII: descrevem os gráficos do desejo, e a relação entre o significante e o objeto parcial. Se correspondem com “A instância da letra... “, “Significação do falo”, “Direção do tratamento... “, “Metáfora do sujeito”, os textos sobre os trabalhos de Lagache e Jones, e “Kant com Sade “.

III) Seminários IX a XII: exemplificam a chamada “álgebra lacaniana”, em estreita relação com a fundamentação da aritmética no logicismo matemático depois de Frege. Associam-se à “Subversão do sujeito... “, “Posição do inconsciente e “A ciência e verdade”.

IV) Seminários X a XVI: referem-se ao ato analítico, dando uma forma acabada à questão da transferência. Uma resultante disto é a “Proposição de 9 de outubro de 67...”.

V) Seminários XVI a XVII: tematizam os quatro discursos, suas articulações e disjunções.

VI) Seminários XV, XVIII e XX: definem as fórmulas quânticas da sexuação. O escrito emergente é “L′Etourdit”.

VII) Seminários XXI a XXVII: conceitualizam os nós borromeamos.

Uma outra divisão do ensino de Lacan, mais recente, foi feita por J. A. Miller no curso "Léxperience du réel dans la cure analytique" de 1999, onde divide a obra de Lacan em seis paradigmas passiveis de serem localizados nos seguintes seminários:

I) Seminários I a IV, que corresponderiam à imaginarização do gozo.

II) Seminários V e VI, que corresponderiam à significação do gozo.

III) Seminário VII onde a noção de gozo se transforma em conceito.

IV) Seminário XI onde com as operações de alienação e separação a gozo é retomado a partir destes um mecanismo, e se increve na operação de separação, e está pensado como objeto perdido.

V) Seminário XVII onde haveria uma substitiuição do Sujeito pela noção de gozo. Ou seja onde Lacan transforma o o gozo no aparelho significante.

VI) Seminário XX onde o significante passa a ser signo do sujeito.
Qualquer opinião sobre o ensino de Lacan depende do que o expositor leu e o que considera importante. É necessário levar em conta também que, em termos de volume, a produção de Lacan representa o dobro da de Freud – e, supondo-se a necessidade de se ler Freud antes de Lacan, a quantidade de tempo e esforço que esse trabalho requer revela-se considerável.
Sobre o percurso didático de Lacan deve-se considerar, além da dificuldade de acesso ao material de estudo, que seu estilo parece à primeira vista prolixo e difícil, apesar de sua qualidade. O que de início parece obscuro pode se tornar extrema e perigosamente fascinante.
Por vezes, deixando-se levar pela paixão que o texto desperta, corre-se o risco de aceitar idéias que sucumbiram diante de uma crítica mais profunda. Ultrapassado o fascínio, a paixão repleta de transferência, a leitura talvez surta melhor efeito.
Da mesma forma que Freud havia se utilizado da termodinâmica – o máximo que a física de sua época permitia – para estabelecer, de maneira dessubjetivada, a sua psicologia, Lacan se apresenta como racionalista e reivindica, como metodologia científica, o modelo de ciências como a física e a matemática. Dentro da física e da matemática, Lacan privilegiou a lógica; seu esforço foi matematizar a psicanálise, e operá-la dessa forma.
Em 1980, Lacan veio à América Latina, em Caracas, Venezuela, e declarou que ouvira falar da existência de uma escola latino-americana que produzira um tipo de lógica que ele acreditava poder dar conta da lógica do inconsciente.
Para Freud, o inconsciente se caracteriza por romper com as leis da lógica clássica, da lógica aristotélica. Para Aristóteles, "a" não pode ser “a” e “b” ao mesmo tempo, não pode estar num lugar e noutro ao mesmo tempo.
Na “Interpretação dos sonhos” [4] Freud demonstrou empiricamente, que para o inconsciente não valem as relações da lógica formal. No inconsciente, “a” pode ser “a” e “b” ao mesmo tempo. E é por aí que ele, ao caracterizar a função do Ego, vai mostrar que no inconsciente, ao contrário, há uma ruptura com o princípio de realidade.
Nessa nova lógica apontada por Lacan não vale o princípio da não-contradição. É a chamada lógica paraconsistente. Seu formalizador, Newton da Costa, é professor da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas. A lógica idealizada por ele torna a lógica aristotélica apenas um tipo específico dessa outra lógica (a paraconsistente), que é mais ampla e mais abrangente, suportando até mesmo a contradição. Isso faria emergir a possibilidade de se formular logicamente a estrutura do inconsciente.
Entre os vários outros recursos que Lacan utilizou para elaborar sua teoria, se alguns nos ajudam a esclarecê-la, outros às vezes dificultam sua compreensão. Por ocasiões os leitores de Lacan se sentem despreparados, e quando conversam entre si concluem que, na verdade, poucos conhecem todas as referências usadas em sua obra.
A título de exemplo, na época do Imaginário, Lacan trabalhou com conceitos da etologia (ciência que estuda o comportamento dos animais), da psicologia comparada e da gestalt. Quando desenvolveu o Simbólico, a principal referência foi a lingüística estruturalista de Saussure e a antropologia de Lévi-Strauss.
A filosofia também foi muito citada por Lacan através de Hegel, Kant, Descartes, Heidegger. Em sua obra o papel desse último é tão fundamental, que o fim da análise, num determinado momento, foi pensado em termos heideggerianos do “ser para a morte”.
Já os recursos da matemática que Lacan usou no último período de sua obra são, na maioria das vezes, árduos e difíceis para os que preferem as ciências humanas. O Teorema de Göedel, por exemplo, é um teorema aritmético bastante complexo que prova que nenhum conjunto pode ser completo, o que terá incidência na demonstração da não-saturação da cadeia significante. Lacan também se utilizou da Lógica de Boole dos Grupos de Klein, e da Topologia um ramo da matemática que pretende dar conta das superfícies elásticas. Esses modelos como devem ser usados heuristicamente.

Um exemplo é este modelo gráfico, usado por Lacan:



Ele significa que, dentro de uma série, só depois se chegar ao último elemento é que o primeiro adquire significado, assim por exemplo, a obra de Lacan, como a de Freud, na medida em que foram sendo introduzidos novos conceitos, eles ressignificaram os anteriores.
Dentro dos modelos gráficos, também está o esquema L, que foi chamado por Lacan de “estática do sujeito” e que é uma forma de “imaginarizar” a estrutura do sujeito e torná-la visualizável:



Neste esquema Lacan relaciona o imaginário, caracterizado pelo eixo a-a′, que corresponde à relação do Eu (ego) ao semelhante (a′), representando a constituição do Eu no Estádio de Espelho, o qual cruza com eixo do Simbólico, caracterizado pela relação do Sujeito ($) ao Outro (A). Note-se que o gráfico está vetorizado, caracterizando a constituição do Sujeito pelo Outro, e o Eu pelo semelhante (imagem do outro).
Entre estes modelos destaca-se o esquema óptico, que é uma modificação de uma experiência de física óptica proposta por Bouasse, à qual Lacan acrescenta um espelho plano. Lacan ao utilizar os modelos ópticos seguiu uma sugestão de Freud, que indicou o interêsse deles para a psicanálise, onde são usados para descartar a noção de localização anatômica e ficar no terreno do psicológico.
O olho, no modelo usado por Lacan, é símbolo do Sujeito, e quer dizer que na relação do imaginário com o real, tudo depende da situação do Sujeito, posto que esta situação está essencialmente caracterizada por seu lugar no mundo simbólico, que é o da palavra, o que faz do espelho plano o Outro (A). O corpo (C) em tanto real, é como o vaso de flores refletido no espelho, quer dizer, ele é inacessível ao olhar, e o Sujeito (determinado pela ordem simbólica) nunca terá mais que uma apreensão imaginária do corpo .



O lugar do corpo foi retomado por Lacan ainda a partir da noção de gozo, noção que articula o significante com o corpo. Daí as últimas elaborações de Lacan se referirem aos tipos diferentes de gozo decorrentes da inter-relação dos registros entre si, ou seja, às maneiras diferentes do significante marcar o corpo.
Depois dos modelos gráficos, Lacan introduziu uma formalização teórica a que chamou matemas. Matema é uma expressão que não existe na matemática e não há uma versão definitiva sobre a procedência do termo, que alguns autores afirmam ser de Heidegger, como também do grego “o que ensina”.
Uma outra explicação que, mesmo não sendo a melhor, é útil: Lévi-Strauss introduziu o conceito de mitema, que é a unidade mínima de um mito. Talvez Lacan tenha retirado a noção de matema de mitema.
Um exemplo de matema, é o sujeito barrado, que se escreve: $. A barra no S equivale o conceito de Spaltung, e aponta à cisão do sujeito. Em vez de se falar-se “o sujeito do inconsciente, produto da Spaltung”, ou “o sujeito que decorre da cadeia significante”, escreve-se $.
Também S1→S2 é um matema equivalente à uma forma gráfica que torna possível reduzir a cadeia significante ao seu mínimo. Outro matema é o a, que é a escrita do objeto causa do desejo.
A partir da álgebra lacaniana, há a possibilidade de se fazer fórmulas, o que foi feito por Lacan ao juntar o $ à a, produzindo a fórmula da fantasia. O símbolo à pode ser entendido como a junção dos símbolos lógicos de e (∧) e ou (∨), com maior (>) e menor (<). Lacan condensou-os produzindo um símbolo a que chamou poiçon, que quer dizer que o sujeito está em relação ao objeto de acordo com essas possibilidades.
Ainda um outro materna é , traduzível como castração materna ou significante da falta no Outro.
Esse recurso teórico usado por Lacan provém da lógica simbólica. Porém embora possa-se usar os matemas de forma heurística, não se pode fazer uma equação com eles.
No desenvolvimento da obra lacaniana temos então três momentos: um em que ele privilegiou os modelos gráficos; outro, em que introduziu uma álgebra: os matemas; depois, o momento em que recorreu à topologia, apontando-os como a melhor possibilidade de se pensar o Real.
O “nó Borromeano”, por exemplo, foi um recurso retirado da topologia e usado por Lacan para mostrar como se articulam os registros do Imaginário, Simbólico e Real, o que se daria pela lógica intrínseca à amarração deste nó.
O nó chamado de “olímpico”, que possui quatro elos, caso se solte um deles, ficarão três unidos; caso se solte dois, ficarão dois unidos. Já no “nó Borromeano”, caso se solte qualquer um dos elos, os outros dois se desamarrarão.
Uma outra figura topológica utilizada por Lacan foi a Fita de Moebius. Na geometria euclidiana teremos sempre a divisão do espaço em planos, porém um matemático, Moebius, mostrou que, se fizermos uma torção de 50° em uma superfície e juntarmos as pontas, haverá uma superfície de um lado só, o que rompe com os preceitos da geometria euclidiana.
Lacan sugeriu que o pensamento ocidental estaria condicionada por uma visão euclidiana da realidade, que é a de pensar o espaço dividido em planos. Decorre daí que, na psicanálise, haver-se formalizado o consciente e o inconsciente em termos de “dentro” e de “fora”. Porém, por intermédio da Fita de Moebius, pode-se localizar o inconsciente e o consciente na mesma superfície, porém em lados opostos.




Fita de Moebius
 
Com a Fita de Moebius, Lacan também modificou as noções de introjeção e projeção, mostrando que as categorias de “dentro” e de “fora” podem ser questionadas.
Aplicando-se a lógica do ensino de Lacan à sua transmissão, em um primeiro momento se mostrará que na relação entre o Imaginário, o Simbólico e o Real, em decorrência da tese lacaniana do Estádio do Espelho, há um predomínio do Imaginário sobre o Real. Esse fato orientará interlocução com Melanie Klein, já que para ela acontece exatamente o oposto, isto é, há um predomínio do Real sobre o Imaginário.
Em um segundo momento, quando se introduzir do Simbólico, se apontará que há um predomínio do Simbólico sobre o Imaginário.
E, em um terceiro momento se mostrará que há um predomínio do Real sobre o Simbólico, fato que levou Lacan a propor a possibilidade de um fim para a análise.



A possibilidade de um fim de análise é um avanço em relação a Freud, que a situava na “rocha de castração”, o que clinicamente se manifestaria como “rebeldia à submissão passiva” no homem, e penisneid na mulher. Para Lacan, a “rocha da castração” não é o limite da análise e é possível ultrapassá-la.


O EU EM FREUD E O IMAGINÁRIO EM LACAN

Paranóia e o Estádio do Espelho
Lacan graduou-se em medicina, especializou-se em psiquiatria e logo depois trabalhou na enfermaria especial de alienados da Chefatura de Polícia, sob a direção de Clérambault, um dos mestres da psiquiatria francesa da época, criador do conceito de “automatismo mental”, de muita importância para o pensamento de Lacan.
Na enfermaria onde Lacan trabalhou eram levadas pessoas que haviam cometido algum crime, mas que não poderiam ser responsabilizadas caso apresentassem um distúrbio mental. Foi nesse lugar que Lacan fez sua tese de psiquiatria “Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade" [5]. Nela Lacan relata o fato de alguns pacientes se curarem após cometerem um crime. A partir dessa observação, Lacan propôs um novo diagnóstico, denominado “paranóia de autopunição”.
A característica principal da paranóia de autopunição é o efeito de cura que um ato criminoso produz num sujeito que o comete em decorrência de um delírio. Apesar de ter recolhido muitos casos dessa manifestação, Lacan escreveu sua tese fundamentando-se no Caso Aimée, que se tornou o paradigma da paranóia de autopunição.
Aimée era o nome de uma mulher que pertencia à burguesia, uma funcionária pública fascinada por uma atriz famosa. Ela foi à saída do teatro onde a atriz trabalhava e atacou-a com uma navalha. A atriz teve os tendões da mão cortados, e Aimée foi então presa e levada para a clínica de Clérambault.
A conclusão a que Lacan chegou foi que o que estava em jogo naquele caso era uma idealização patológica, a princípio pela irmã, depois pela atriz. Porém, as únicas noções que poderiam explicar a razão da conduta da paciente não estavam na psiquiatria: eram conceitos que só existiam na psicanálise. No caso, o conceito de Superego.
Logo em seguida, em 1933, Lacan publicou dois textos: "O problema do estilo e a concepção psqiuiátrica das formas paranóicas da experiência" [6] e “Motivações do crime paranóico: o crime das irmãs Papin” [7], que era o relato do caso de duas irmãs, empregadas domésticas em Paris, que em certo dia, por um motivo fútil – a falta de luz em casa – mataram e esquartejaram suas patroas.
Ao publicar esse texto, propondo as razões do crime paranóico, Lacan avançou em relação à sua tese anterior: a concepção de que o outro é o que o criminoso quer ser, então, ele tem de anular o outro para que possa existir – caso contrário, se perde nesse outro. Segundo Lacan, o que provocou o crime foi a realização de fantasias arcaicas estruturantes do psiquismo do criminoso, que são fantasias de estripação, fantasias que Lacan chamou de “corpo despedaçado”. Assim como Freud descobriu as fantasias neuróticas, Lacan evidenciou as “fantasias paranóicas”, porém dirá que todos temos essas fantasias, e o paranóico seria o sujeito que as coloca em prática.
Em 1936, com 35 anos de idade, já como psicanalista, Lacan apresentou no Congresso de Marienbad, o texto “O Estádio do Espelho”. Na época, o subtítulo desse texto era “Teoria do momento estruturante genético da constituição da realidade conhecida em relação à experiência analítica” [6]. Nele, Lacan produziu uma teoria sobre a conformação da estrutura psíquica do sujeito, e o que se elabora nele não é mais o motivo do crime paranóico, e sim a constituição da realidade.
Em 1949, ao ser apresentado como nós o conhecemos, “O Estádio do Espelho” recebeu o título de “O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelado pela experiência analítica” [8], escrito desde o ponto de vista da observação e da metodologia da psicanálise – e o que se deduz: a constituição do Eu (Je).


O Eu em Lacan: do narcisismo ao Estádio do Espelho
Num primeiro momento, o Eu para Freud era o da psicologia corrente. Depois, na época do narcisismo, Freud propôs a constituição do Eu a partir dele ser o objeto da pulsão. O narcisismo seria o organizador das pulsões parciais, permitindo a passagem do auto-erotismo para o investimento libidinal em um objeto no mundo exterior.
Em relação à pratica analítica fundamentada na obra de Lacan, já houve críticas referindo que esta desconheceria a importância do Eu (Moi) no processo da cura. Também muitos desses críticos pensam que o ensino lacaniano se esgota na conceitualização do Estádio do Espelho. Há porém neste ensino, além de uma relação do Eu com o Imaginário, uma relação do Eu com o Simbólico, e uma menos evidente, que é a do Eu com o Real.
O avanço da conceitualização do Eu em Lacan foi conseqüência das modificações que sofreram no decurso de sua obra, as noções de objeto e de fantasia. No texto “De nossos antecedentes” [9], Lacan afirma que sua teoria do Eu se fundamenta nos elementos da teorização freudiana do Eu, que seriam a imagem do corpo e a teoria das identificações.
Os impasses que haviam na articulação feita por Freud entre a relação da consciência com o Eu, e as próprias contradições internas a esta noção, existentes na obra freudiana, fizeram com que Lacan procurasse superá-los, o que ele realizou com a introdução da noção de Sujeito, separando-o da noção de Eu.
O Eu, classicamente definido como sede da função percepção-consciência, ao ser retomado por Lacan, aparece como um objeto próprio ao homem, que tem como particularidade uma relação com o significante. O subjetivo, portanto, desde esta visão se relaciona com a articulação significante e não com a sensibilidade, efeito do sistema percepção-consciência.
A autoconsciência, articulada desde o ensino de Lacan, seria então a interseção que existe entre a consciência e a percepção que esta tem do objeto único, próprio a cada um, que se chama Eu. E isto, desde o ensino de Lacan, só é possível mediante a existência de um sujeito, que por sua vez é conseqüência de um sistema significante.
O uso do termo Eu, definido de uma maneira diferente de função gramatical, apareceu principalmente na psicofisiologia do século XIX.
Entre as muitas abordagens da psicologia no século passado, estava a psicologia associacionista, uma abordagem que explicava o funcionamento mental em termos de associação de idéias. Esta foi a base comum para a especulação psicofisiológica do século XIX, e baseava-se na noção de que as associações seriam produzidas pela facilitação das vias que estabelecem a conexão entre elementos do sistema nervoso.
Influenciado por estas idéias, Freud, no final de 1895, dedicou consideráveis esforços para explicar fisiologicamente os fenômenos psicológicos, o que resultou no texto “Projeto para uma psicologia cientifica” [10]. Foi neste texto, dentro de um contexto psicofisiológico, que Freud propôs pela primeira vez uma formalização de um Eu, definido de uma maneira própria relacionada à experiência clínica.
Existe até hoje um considerável debate a respeito do uso do termo Eu, muitas vezes apresentado como Ego, que é uma latinização introduzida a partir da tradução da obra de Freud para o inglês, sendo que a isto deve ainda ser acrescentado o termo Self, que para alguns autores também é sinônimo de Eu, ou uma especificação deste, como o Je é para Lacan, porém não no mesmo sentido que o anterior.
Freud, no início de suas investigações, não desejava limitar sua teoria das neuroses somente a considerações etiológicas, mas esperava desenvolver uma teoria unificada dos processos patológicos, como testemunha o seu texto “Projeto para uma psicologia cientifica”, ou melhor, o rascunho sobrevivente desta teorização fisiológica de Freud.
Este texto foi escrito em setembro e outubro de 1895 e consiste de três seções: A primeira ocupa-se em estabelecer os alicerces fisiológicos para a inibição psíquica. A segunda pretende dar uma explicação neurodinâmica do recalque e da patogênese da histeria. Na terceira, Freud amplia o modelo neurofisiológico para abranger processos psíquicos, tais como o pensamento e a cognição.
Naquele contexto, aproveitando-se da recente introdução do termo “neurônio” (1891), Freud sugeriu que no recém-nascido o acúmulo de excitação endógena em “psi” geraria unicamente respostas emocionais, como o choro. A eliminação da excitação, para Freud, constituiria o que ele chamou de “experiência de satisfação”, que seria acompanhada pela percepção dos objetos que serviriam a esta satisfação. Então, as associações seriam estabelecidas entre “psi”, a imagem mnêmica dos objetos e a memória da necessidade biológica.
Freud sugeriu que, em conseqüência das associações estabelecidas por estas experiências primitivas de satisfação e o conseqüente acúmulo de excitação endógena, resultaria a passagem de um fluxo “Q”, pelas vias facilitadas, para a imagem do objeto desejado. O bebê então alucinaria o objeto desejado e realizaria movimentos em resposta à alucinação, o que porém não produziria satisfação. Freud propôs que a recepção de “Q” endógena, em “psi”, levaria à existência permanente de um corpo de neurônios catexizados em “psi”. Alguns desses neurônios estariam permanentemente catexizados, ao passo que outros possuiriam apenas uma carga temporária.
Neste primeiro esquema especulativo de Freud, este “corpo” de neurônios catexizados é o que constituiria a base fisiológica do Eu. O Eu funcionaria para impedir a alucinação dos objetos desejados e para obter verdadeiras experiências de satisfação. Ele executaria sua tarefa através de um mecanismo que na neurologia se denomina “inibição”. Nas situações em que não há inibição pelo Eu, o que permite a “Q” acumulada gerar alucinações, Freud chamou de “Processo primário”, e às atividades psíquicas que são mediadas pela atividade inibitória do Eu, de “Processo secundário”.
No mesmo ano do “Projeto...”, mesmo tendo formalizado o Eu em termos próprios, Freud ainda falava do Eu de uma maneira pouco especificada. Por exemplo no seu texto em parceria com Breuer, intitulado “Estudos sobre a histeria” [11], ainda se referia a “das Individiduum” ou “die Person”, ou seja, Freud ainda fazia uso do termo Eu como representando a personalidade no seu conjunto, embora sempre enfatizasse sua função inibitória.
Mas a prática clínica havia imposto a Freud a necessidade de desmanchar a noção de Eu como uno ou permanente. Também a pretensão de uma explicação fisiológica do psiquismo havia sido abandonada, e o "corpo de neurônios catexizados”, dera lugar ao “corpo erógeno” ou “corpo libidinal”. A clínica, particularmente a clínica do desdobramento da personalidade, fez com que Freud sugerisse a idéia da existência de um conflito psíquico como o causador desse fenômeno, e seria do Eu, de onde partiriam as defesas que resultariam via produção do conflito.
Esta clínica levou Freud progressivamente a diferenciar o Eu da consciência. Freud sugeriu nos “Estudos sobre a histeria” que o Eu estaria “infiltrado” pelo núcleo patógeno inconsciente. O conflito passou então a ser definido pela incompatibilidade de uma representação com o Eu, e Freud sugeriu diferentes mecanismos de defesa, que corresponderiam às diferentes psiconeuroses.
Nesta forma de conceber o funcionamento psíquico, o Eu seria o lugar a ser preservado do conflito pela atividade defensiva. A função do Eu, para Freud, neste momento do seu pensamento, continuava, portanto, fundamentalmente inibidora. Porém em 1910, no texto a propósito de um caso de cegueira histérica, apareceu pela primeira vez o Eu fundado na pulsão. Tratava-se, neste momento, das pulsões do Eu, identificadas com as pulsões de autoconservação e que teriam um lugar determinante no recalque. Neste texto, intitulado “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão” [12], Freud anunciou também as servidões do Eu, isto porque os órgãos estariam tanto a serviço das pulsões sexuais como das pulsões de autoconservação. Freud comenta que não é fácil servir a dois amos ao mesmo tempo, assim, além das funções atribuídas ao Eu por Freud naquela época – que eram, entre outras, o pensamento, a motricidade, a percepção – revelarem ser funções libidinais, a conclusão que a clínica lhe impôs foi a de que a sexualidade também estende seu domínio sobre o Eu.
Não foi sem importância perceber que as perturbações da visão fossem a via pela qual o Eu tenha se revelado como objeto libidinal. Existe um privilégio do olhar na constituição do Eu como sendo, antes de tudo, um Eu corporal, mas não só como uma entidade de superfície, mas principalmente, como a projeção desta superfície. O corpo, então, para Freud, antes de tudo e principalmente é um corpo olhado. Isto já se prenunciava desde a análise que Freud fez do cômico, onde ele demonstrou a consistência libidinal do Eu como decorrente da projeção da imagem do corpo. O cômico põe em evidência a imagem em que o Eu se aliena.
Pela análise do cômico, Freud aproximou-se do outro lado deste, a fascinação pela beleza. Utilizou o mito de Narciso, que aparece na teoria pela primeira vez a propósito da explicação da escolha de um objeto homossexual, feito no seu estudo sobre Leonardo da Vinci. Esta referência aparece também na abordagem que Freud fez da psicose, na análise do texto de Schreber. Desta maneira, através do campo escópico, Freud descobriu o Eros unificador do narcísismo. Pois está na própria essência do mito de Narciso amarrar o olhar com a unidade amorosa. Quer dizer, a teoria do narcisismo implica que um corpo só se torna sexualizado porque se oferece ao olhar do outro. O Eu passou assim, desde esta nova concepção, a ser definido como objeto de amor, o Eu passa a ser o objeto das pulsões e o narcísico é tomar-se a si mesmo como objeto de amor. Portanto o Eu não poderia ser preexistente, nem poderia ser o resultado de uma diferenciação progressiva, como querem entender algumas correntes psicanalíticas, principalmente a kleiniana. Para que o Eu exista, diz literalmente Freud no texto principal sobre sua concepção do Eu, “Para introduzir o narcisismo” [13]: “foi necessária uma nova ação psíquica”, observação aliás retomada por Lacan na sua teoria do Estádio do Espelho.
Nesta nova maneira de conceber o Eu por Freud, ele passa a ter uma unidade ilusória em relação à fragmentação do auto-erotismo e das pulsões parciais . (Ou do corps morcelé de Lacan, mas não do spliting de M. Klein). O Eu passou a ser considerado por Freud um grande reservatório de libido, de onde ela é enviada para os objetos, e que também recebe parte da libido que reflui dos objetos, como por exemplo no trabalho do luto. Também a noção de identificação se modificou e se enriqueceu, pois a identificação, com esta nova noção de narcisismo, passou de uma ação intra-objetiva a um acontecimento intra-subjetivo, pois ela passou a ser mediada pelo Eu.
Seria mais tarde, com a abordagem da melancolia, que Freud precisaria de que maneira o Eu se modifica pela identificação, produzindo a possibilidade de se pensar um Eu que não apenas seria remodelado pelas identificações secundárias, mas que se constituiria, já desde sua origem, por uma identificação que toma como protótipo a incorporação oral. Neste ponto particular, Lacan sendo fiel ao sentido e não à letra de Freud, na teoria do Estádio do Espelho articulará a identificação primária, fundadora do Eu, como identificação à Imagem do semelhante, e não como incorporação oral, mantendo a identificação no campo do escópico, o que para Freud seria a identificação histérica. Haveria também que se apontar que estas considerações de Freud sobre o Eu e sua origem narcisista também prenunciam o que depois se formalizará como a relação falo-castração, o que Freud fez nos anos subseqüentes. De fato, em Freud, o falo estará sempre equacionado ao narcisismo, pois a posição narcisista correspondendo ao desejo da mãe implica que castração e narcisismo estejam sempre em estreita relação. Quando a criança aparece como falo da mãe, esta aparece em posição de objeto, e a impossibilidade de que a imagem do próprio corpo preencha a falta da mãe introduz a ferida narcisista, que a criança fará substituir a mãe por outros objetos que a façam sentir que completando o outro se completa.
O caráter libidinal do Eu, com sua teorização pela teoria do narcisismo é o que fundamenta em Freud a trama edipiana. A constituição do Eu é o acontecimento necessário à castração. É fazendo com que o sujeito responda ao enigma do desejo do outro, oferecendo uma imagem amável, na ilusão de que tal imagem complementaria a falta do outro, que ele se depara sempre com a impossibilidade da completude, um dos nomes da cifra do seu destino.
No entanto sugere-se que a noção de Eu no sentido estritamente psicanalítico, isto é, o Eu entendido de uma maneira “técnica”, só apareceu após o que se convencionou chamar de “virada teórica”, que ocorreu com Freud nos anos 20, com a introdução da pulsão de morte, da noção de masoquismo primário e da “segunda tópica”, que reordenaria as relações entre as instâncias psíquicas desde as novas formulações. Esta mudança, diz-se, teria correspondido a uma reordenação da prática, que, a partir dessas novas conceitualizações teóricas, teria passado a privilegiar a análise do Eu e de seus mecanismos de defesa em detrimento da elucidação dos mecanismos inconscientes, como era feito antes.


Do Isso à cisão do Eu
Em 1920, Freud com a “segunda tópica”, teria feito do Eu um “sistema” ou uma “instância”, ajustando-o às modalidades dos conflitos psíquicos. Se antes a referência principal de seu modelo do aparelho psíquico eram os diferentes tipos do funcionamento mental, isto é, o processo primário e o processo secundário, a partir da "segunda tópica” as partes participantes do conflito passariam a ser privilegiadas. Nessa nova articulação, o Eu intervém como agente da defesa, o Super-Eu como agente das interdições, e o Isso como pólo pulsional. O Eu a partir dessa descrição seria em grande parte inconsciente, produzindo-se um alargamento da sua noção. O Eu, assim revisado, passou a ser principalmente um “mediador” que tentaria dar conta das exigências contraditórias produzidas pelas demais instâncias.
Mas, muito além das implicações meramente técnicas que os pós-freudianos quiseram ver na “segunda tópica”, principalmente os adeptos da “psicologia do Ego”, a virada dos anos 20 acentua a descoberta freudiana de que o ser falante é um animal desnaturalizado. Esta nova postura de Freud frisou um funcionamento psíquico que contradizia a relação mecanicista prazer-desprazer e indicava uma inércia repetitiva, que se opunha a qualquer progresso adaptativo através do aprendizado.
Com a virada dos anos 20, o sofrimento do sintoma como gozo passou a ser entendido como o “benefício primário”, pois a noção de “benefício secundário” não foi suficiente para explicar a permanência do sintoma: o gozo, estando além do princípio do prazer, não teria nenhuma utilidade para o Eu. Freud com a introdução da "segunda tópica”, retirou o postulado do prazer do campo que o Eu enfrenta. Esta retirada dos postulados do prazer aos quais o Eu se opunha, e a repetição como expressão da pulsão de morte, alheia à oposição princípio do prazer com o princípio da realidade, foi a nova maneira como Freud passou a conceber a regulação do Eu. Foi neste sentido que a introdução da pulsão de morte foi necessária para dar conta da cisão entre a organização narcísica regulada pelo princípio do prazer e a repetição, regulada por um “além do princípio do prazer”.
As conseqüências desta reformulação, mais do que técnicas foram éticas. As funções classicamente atribuídas ao sujeito do conhecimento, como o pensamento, a percepção, o juízo, a memória são função do desejo. Para Freud, a psicanálise introduz uma subversão em relação à teoria clássica do conhecimento: o conhecimento é uma função do desejo e não do Eu.
Em 1927, Freud referindo-se ao fetichismo teorizou mais uma vez sobre a divisão psíquica, porém de uma maneira diferente da feita por ele inicialmente em referência à histeria. Freud retomaria ainda a questão da cisão do Eu em 1938 num artigo intitulado “Clivagem do Ego no processo de defesa” [14]. Esta clivagem, tradução da palavra alemã spaltung, seria efeito, no caso do fetichismo, de um mecanismo de defesa que Freud denominou Verleugung, traduzido por “recusa”, ou “desmentido”. Estas propostas, embora introduzidas a partir de uma reflexão sobre a situação clínica caracterizada pelo fetichismo, possibilitaram uma nova verificação do funcionamento do Eu e introduziram formalmente na teoria freudiana um modelo de funcionamento do Eu que não se restringe a uma situação psicopatológica particular, mas introduz como novidade a possibilidade de um Eu radicalmente cindido. Ou seja, se antes Freud descrevia a divisão do Eu em duas correntes não conciliáveis, e aí está a novidade, com esta nova observação Freud admite que elas coexistem em forma paralela, sem produzir uma formação de compromisso como ocorria na histeria.
Com a descrição do mecanismo da recusa, Freud demonstrou uma situação em que o Eu consegue ser triunfante ante uma realidade adversa ao narcisismo. O fetichista consegue transformar o horror ao genital feminino em gozo do fetiche.
Outro fato examinado por Freud na mesma época foi o humor, que é a maneira pela qual o Eu transforma o horror da morte em afirmação de invulnerabilidade diante do desespero e do sofrimento, porém de uma maneira diferente da do fetichista. No humor, o Super-Eu afirma rebeldemente a integridade do Eu, mesmo além da morte.
O texto freudiano sobre a cisão do Eu é de 1938. Fim da vida de Freud e começo da teoria de Lacan. Para Lacan, o Sujeito é primeiro objeto (voltamos à relação indicada no início deste texto entre o Eu e o Real). Quando o Sujeito se pergunta o que é para o Outro como objeto, a resposta é dupla: por um lado o Sujeito está barrado, é faltante, mas por outro lado ele é objeto a. Lacan caracteriza a divisão do Eu entre Sujeito barrado e o objeto a da fantasia, pelo mecanismo freudiano da Verleugnung, o mesmo mecanismo que Freud usou para explicar a produção do fetiche. No texto “Ciência e verdade”, Lacan introduziu a Ichspaltung (correlativa em Freud da Verleugung) como característica da divisão constituinte do Sujeito. Assim para Lacan a cisão do Eu freudiana não é articulada com uma divisão do Eu entendida como Moi senão como uma divisão que afeta ao Eu como Je. A divisão que corresponderia ao Moi seria a equivalente ao efeito da Verneinung (denegação).


Estádio do Espelho e castração
A proposta de Lacan é que, a partir do observado na clínica analítica, se possa formular a constituição do Eu, e, referindo-se às fantasias que aparecem no decurso de uma análise, diz que:
(...) mostram-se regularmente nos sonhos quando a moção da análise toca num certo nível de desintegração agressiva do indivíduo. Aparece então sob a forma de membros disjuntos, bem como desses órgãos figurados em exoscopia, que se alam e se armam para as perseguições intestinas, que para sempre fixou pela pintura o visionário Jerônimo Bosch, na sua ascensão no século XV ao zênite imaginário do homem moderno. Mas essa forma revela-se tangível no próprio plano orgânico, nas linhas de fragilização que definem a anatomia fantasmática, manifesta nos sintomas de esquize ou de espasmo da histeria [15].
Estas fantasias com as quais Lacan formalizou a constituição do Eu são manifestações de corps morcelé , ou seja, fantasias em que o corpo aparece despedaçado.
Para interpretá-las, Lacan utilizou vários recursos. O primeiro deles é o da fisiologia:
A noção objetiva do inacabamento anatômico do sistema piramidal, como de certas remanescências humorais do organismo maternal, confirma a visão que formulamos com o dado de uma verdadeira prematuração específica do nascimento no homem. Notemos, de passagem, que este dado é reconhecido como tal pelos embriologistas sob o termo de fetalização (... ) [16].
Se compararmos o homem a um animal irracional, veremos que o animal nasce com o sistema nervoso completamente desenvolvido. O cavalo, por exemplo, logo que nasce já fica em pé, sabe onde tem de mamar, abre os olhos etc. Isso não acontece com os seres humanos. Na nossa espécie, em primeiro lugar a criança adquire o movimento da cabeça, depois o do tronco etc., num desenvolvimento céfalo-caudal. Os neurologistas atribuem fenômeno à falta de mielinização do sistema nervoso, o que produz os efeitos que Lacan explicou analiticamente.
Aliás, esta concepção não difere da de Freud, que nomeava esse estado lactente de Hilflösigkeit. O termo foi traduzido no Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis por “desamparo”, definido como a dependência total da criança em relação a outra pessoa para a satisfação de suas necessidades.
Além desse dado da fisiologia, Lacan introduziu outro retirado da psicologia comparada e que se refere às observações de Henri Wallon:
Talvez entre vós haja quem se recorde do aspecto de comportamento de que partimos, esclarecido por um fato de psicologia comparada: o pequeno homem, numa idade em que é, por um tempo curto, mas por um tempo ainda, ultrapassado em inteligência instrumental pelo chimpanzé, reconhece, contudo, já como tal, a sua imagem no espelho [17].
Isto quer dizer que, embora o bebê humano não tenha condições neurológicas para dominar a organização de seu esquema corporal – porque ainda não pode coordenar seus movimentos –, pode reconhecer-se no espelho.
A criança se reconhece no espelho não porque a propriocepção ou o sistema neuro-anatômico permitam que ela possa saber sobre seu corpo, Lacan enfatiza que este reconhecimento do corpo próprio só é possível porque há uma antecipação do psicológico sobre o fisiológico e é assim que se constituirá o Eu como unidade corporal.
O que também está sendo evocado com esta formalização é a teoria da castração de Freud. Lacan mostrou que essa teoria é uma série que se ressignifica a partir da diferença sexual anatômica. Tal série é composta por três momentos: o desmame, a separação das fezes e a observação da diferença sexual anatômica. O último momento ressignifica o registro das separações anteriores, ou seja, a teoria da castração em Freud só adquire seu sentido por uma ressignificação.
No gráfico abaixo, vemos que só a partir das vivências do desmame e da separação das fezes é que a ausência de pênis na mulher vai adquirir, para os dois sexos, o aspecto constituinte em relação à castração.



Nessa série de perdas Lacan acrescentou uma fundamental: a impossibilidade do corpo se organizar, tendo como conseqüência a antecipação do psicológico sobre o fisiológico. Foi essa a tese desenvolvida no “O Estádio do Espelho”. Mais tarde Lacan ressignificará essa idéia e localizará a falta na estrutura da cadeia significante.
O que Lacan chamou de “Estádio” foi essa antecipação do psicológico sobre o fisiológico. Estádio seria um momento de viragem. Mais tarde, o termo stade (fase) terá preferência, pois a palavra estádio dá uma idéia de maturação psicobiológica.
O Estádio do Espelho:
...pode ocorrer (...) a partir da idade de seis meses, e a sua repetição freqüentemente fixou a nossa meditação perante o espetáculo surpreendente de uma criança em frente do espelho, que não tem ainda o domínio da marcha, nem sequer da posição ereta (...) [18]
O Estádio do Espelho é uma metáfora, pois o cego também terá acesso ao Imaginário e ao Simbólico, embora o Estádio do Espelho tenha sua demonstração fundada no escópico. Ele se dá da seguinte forma: num determinado momento uma criança é colocada em frente ao espelho e não demonstra nenhuma reação diante daquela imagem. Noutro momento, a criança passa a se relacionar com a imagem, dirigindo-se a uma outra pessoa, mostrando uma expressão de júbilo, do que se deduz que ocorre reconhecimento da imagem como o próprio corpo. E isso muito antes de a criança adquirir a coordenação motora completa.
Lacan conclui então que:
Essa atividade conserva para nós, até a idade de dezoito meses, o sentido que lhe damos – e que não é menos revelador de um dinamismo libidinal, problemático até então, que de uma estrutura ontológica do mundo humano que se insere nas nossas reflexões sobre o conhecimento paranóico [19].
Para Lacan, o Estádio do Espelho estrutura o ser e condiciona a estrutura ontológica do mundo:
A assunção jubilatória da sua imagem especular pelo ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência de alimentação que o pequeno homem, nesse estádio infans, é, parecer-nos-á desde logo manifestar numa situação exemplar a matriz simbólica onde o Eu se precipita em forma primordial, antes que se objetive na dialética da identificação ao outro e que a linguagem lhe restitua no universal a sua função de sujeito [20].
Ao mesmo tempo em que há a assunção do Eu, que é o momento constituinte da estrutura ontológica do ser humano, há também o aparecimento da matriz simbólica. O Estádio do Espelho é o que vai estruturar, ao mesmo tempo, o Imaginário, o Simbólico e o Real, que se organizam nesse momento do desenvolvimento humano.
Dentro da teoria analítica, essas posições de Lacan têm incidência fundamental na proposta da releitura de Freud. Presentificando uma ponderação de Oscar Masotta, que propõe uma ordem das razões e uma razão das ordens, portanto, quando se fala de conceitos como narcisismo, identificação, pulsão de morte, eles têm que ser situados em uma ordem de ressignificações mútuas.
Daí que com o Estádio do Espelho, o primeiro conceito que aparece reformulado é o de narcisismo. Sucintamente, poderíamos dizer que Freud postulou a existência de dois tipos de narcisismo: o narcisismo do sonhar e o narcisismo do dormir. O primeiro implica o narcisismo do sujeito que sonha, o segundo, o do sujeito que dorme. Para Lacan, a partir do Estádio do Espelho:
O termo narcisismo primário com que a doutrina designa o investimento libidinal próprio a esse momento revela nos seus inventores, à luz da nossa concepção, o mais profundo sentimento das latências da semântica. Mas esclarece também a oposição dinâmica que procuraram definir, desta libido à libido sexual, quando invocaram instintos de destruição e mesmo de morte para explicar a relação evidente da libido narcísica com a função alienante do Eu, a agressividade que daí se desprende em toda a relação ao outro, ainda que esta fosse a mais samaritana das ajudas [21].
Neste primeiro momento, Lacan articulou o narcisismo com a agressividade, um como condição do outro e os dois como condições da pulsão de morte.
O segundo conceito que aparece reformulado é de Eu-Ideal. Em alguns dos textos de Freud ele é identificado ao Super-Eu, em outros à identificação, como por exemplo no texto “A psicologia dos grupos e análise do Ego”, e para Lacan esse é outro conceito que só toma sentido a partir da teoria do Estádio do Espelho: “Essa forma do corpo que se estrutura na identificação especular seria antes, de resto, para designar como Eu-Ideal, se quiséssemos fazê-la entrar num registro conhecido, nesse sentido de que será também a raiz das identificações secundárias” [22]. Portanto, o Eu Ideal está no plano do Imaginário, enquanto o Ideal do Eu estaria no plano Simbólico.
Um terceiro conceito de fundamental importância é o de identificação, que levanta as questões das identificações primárias e das identificações histéricas. Sobre elas há várias leituras. Ao entender-se a identificação primária como incorporação oral, organiza-se a teoria numa determinada vertente, pois a noção de incorporação dará significação tanto à perda de objeto como ao dentro e ao fora. Lacan defendendo sua posição propõe:
Basta aí compreender o Estádio do Espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise dá a este termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando este assume uma imagem cuja predestinação a esse efeito de fase está suficientemente indicado pelo uso, na teoria, do termo antigo imago [23].
Há portanto um entendimento de Lacan quanto à identificação primária, que não a faz coincidir com a introjeção.
Uma última conseqüência do Estádio do Espelho seria relativa ao ciúme primordial e ao masoquismo primário: “Esse momento de término do Estádio do Espelho inaugura, pela identificação à imago do semelhante e o drama do ciúme primordial a dialética que desde aí liga o Eu a situações socialmente elaboradas.” [24]
Lacan aplica nesse tema a dialética hegeliana, considerando que só pode haver ciúme quando houver um outro, e só depois de haver outro, e é o Estádio do Espelho que o instaura, é quando surgirá o terceiro na relação especular narcísica primordial.


Falo Imaginário e falo Simbólico
O espelho, esse bizarro objeto mágico, sempre foi fonte de inspiração para escritores, poetas e, modernamente, para cineastas, pois a fascinação desta superfície lisa não está no que ela é, mas sim nas imagens que reproduz. Magicamente, o espelho mostra o que não se pode ver a não ser desde outro lugar: o mistério do próprio corpo na sua totalidade. Só com o espelho é que nos podemos olhar nos próprios olhos. Com Lacan, o espelho abandona uma aura mística para se tornar uma concepção psicanalítica. Mais que isso, torna-se um instrumento essencial ao destino de cada homem.
É necessário ressaltar que, independentemente do que a moderna fisiologia aponta sobre a primazia cortical do sentido visual no homem e as articulações que este aspecto possa ter com as já antigas experiências de psicologia comparada que Lacan evoca dos trabalhos de Baldwin, bem como suas referências à nascente ciência da etologia, o espelho, no uso que Lacan faz dele, é uma metáfora.
Sua concepção não aponta unicamente a uma questão de psicologia evolutiva, decorrente da prematuração específica do ser humano, senão à questão mesma da estrutura ontológica do mundo.
O ser humano, à diferença dos animais, não completa sua maturação, no que concerne ao sistema nervoso, durante o período intra-uterino. Daí a impossibilidade de a criança coordenar os movimentos e o tempo demorado que requer para o ser humano poder andar, o que ocorre devido à falta de mielinização da bainha neuronal que vai se desenvolvendo progressivamente no tempo que se segue ao parto.
Assim prevenidos, ler este escrito de Lacan concebido há quase cinqüenta anos, e que ainda hoje mantém toda sua importância e espanto, requer dois reparos:
Primeiro, o de situá-lo como a conclusão de um percurso que, através do questionamento do Imaginário, aproximou Lacan à psicanálise. Antecedentes estes que marcam sua procura do que ele chamava de conhecimento paranóico. O outro reparo será o de ressignificá-lo com sua produção ulterior, rearticulando-o com os conceitos introduzidos depois.
Aplicando ao próprio Lacan o que ele nos ensinou a respeito de Freud – ser fiel não à letra, mas ao sentido da obra –, obteremos uma elaboração mais ampla dos seus desenvolvimentos.
Depois da morte de Lacan, foi feito um esforço de ressignificação de sua obra possibilitando ordenar e questionar sua produção a partir do efeito retroativo dos novos conceitos produzidos. É bom lembrar que qualquer ordenação do ensino de Lacan sempre será mera convenção, servindo apenas aos fins didáticos de introduzir o valor do tempo na seqüência das teorizações. Ler cronologicamente sua obra pode ser uma ingenuidade, se desconhecer-se suas conclusões. Por isso, a única utilidade dos comentadores de Lacan seria a de encontrar um sentido para cada momento desta obra, em função da sua totalidade.
Retomando ainda o Estádio do Espelho, o investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação imaginária, pelo fato de ter um limite: nem todo investimento libidinal passa pela imagem especular; há um resto que é pivô da dialética entre o todo e o falo, e a localização imaginária do falo chegará sob a forma de uma falta: -φ.
O falo é uma reserva operatória; ela não está somente representada ao nível do Imaginário, senão que está cortada da imagem especular: -φ, posteriormente chamado de falo imaginário, em contraposição ao falo simbólico, que é uma articulação posterior ao texto do espelho e que colhe os frutos das sementes aí plantadas, principalmente no que se refere à distinção e articulação do Simbólico, do Real e do Imaginário.
Estamos então de volta à questão inicial: Como introduzir o Estádio do Espelho, e o Imaginário, considerando-se os quase cinqüenta anos de produção ulterior de Lacan?
Tentaremos seguir o próprio Lacan que, ao introduzir o nó borromeano, possibilitou a articulação destes três registros entre si com o objeto a. A título de síntese, eis o resumo das inter-relações possíveis dos registros:
a) I>R: o Imaginário predomina sobre o Real como conseqüência de i (a) e, ou seja, o Imaginário, segundo a concepção do Estádio do Espelho, tem supremacia sobre o Real, pelo menos nas duas formações que são i (a), imagem do corpo, e m, o Eu, que se constitui a partir do semelhante.
b) S>I: o Simbólico predomina sobre o Imaginário como conseqüência de S barrado e I(A), ou seja, o Simbólico prima sobre o Imaginário no sentido em que a dimensão do sujeito e o I(A), ideal do Ego sustentado a partir do Outro, ressoam além do espelho.
c) R>S: como conseqüência de e, ou seja, o Real supera o Simbólico em dois pontos: primeiro, a verdade não pode ser toda dita, decorrendo disto que o Real não é simbolizável por completo.



O Estádio do Espelho é uma concepção sustentada pela idéia da antecipação do psicológico ao biológico, antecipação necessária devido à insuficiência ocasionada pela falta de mielinização do sistema nervoso (fetalização). Como conseqüência desta prematuração específica do ser humano, há uma antecipação do Imaginário, provocando a constituição do Eu. No princípio da teoria lacaniana a falta aparecia como constitutiva do Sujeito, via teoria de Bolk (prematuração específica). Neste sentido, o Estádio do Espelho não estava de todo dentro do campo freudiano, pois buscava uma referência do real, entendido como exterior ao campo analítico, para fundar o sujeito numa falta.
Porém, a partir do momento que Lacan introduziu o Real, o Simbólico e o Imaginário, a falta aparece fundada primeiro como castração e logo deduzida da própria estrutura significante. é o matema que Lacan utiliza para formalizar esta falta e inscrevê-la no nível do significante mesmo.
O corpo representado se relaciona com a cadeia significante, e por isto está sustentada por um Outro e um Ideal, que é o limite que o Simbólico colocará no Imaginário e que ressitua a falta num nível estrutural.
No texto “L′Etourdit” [25], de 1972, Lacan escreve a falta como (fhi de x), equiparando-a à função fálica e convertendo-a numa função lógica. Uma função na qual o sujeito fica inscrito como uma variável, ou seja: x é fálico.


Utilizando-se dos símbolos da lógica quântica, onde o ∀ é um quantificador universal que significa “para todo”, e ∃ é outro quantificador universal, e significa “existe ao menos um”, Lacan propôs o que chamou de “fórmulas quanticas da sexuação”:

 
O que quer dizer que, quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro. Neste esquema, à esquerda, na linha inferior, a formula ∀xΦx que quer dizer: para todo x existe a função Falo de x, ou seja todos são castrados.
No mesmo esquema, acima da formula anterior, quer dizer: existe ao menos um para o qual a função falo d não existe, ou seja, quer dizer existe ao menos um que não é castrado, e por isto Lacan propõe esta fórmula como a do pai, que por ser agente da castração, escapa a ela.
∀xΦx é uma escrita lógica de que é pela função fálica que o homem, como um todo, toma inscrição, exceto que essa função encontre seu limite na existência de um , pelo qual a função fálica é negada. Aí está a função do pai.
Do lado direito está a inscrição da parte mulher dos seres falantes. A todo ser falante, como se formula expressamente na teoria freudiana, é permitido increver-se nesta parte.


O Imaginário ressignificado. Lacan avança Lacan
Escrever-se I>R resume a concepção de que o Imaginário tem prevalência sobre o Real. No entanto poderia dizer-se que haveria, no avanço da obra de Lacan, a concepção de uma outra categorização do Real que viria a produzir uma subversão do registro do Imaginário?
No início, a noção de Imaginário foi usada como metáfora da completude, em função da teoria do Estádio do Espelho. Nesta teoria, o infante, ao receber do semelhante o que lhe falta, vive a ilusão de unidade, que é a medida humana da completude. Dito de outro modo, Lacan formalizou no momento do Estádio do Espelho um imaginário que tem como fundamento o investimento narcísico de objeto. Porém este Imaginário não é completo, pois há um limite para este investimento na constituição do Eu narcísico, a libido não passa toda para a imagem especular, o que cria uma falta, que foi escrita por Lacan como -φ.
Por isto poderia dizer-se que, antes da introdução do Simbólico, Lacan haveria formalizado um Imaginário em "estado puro”. Por isso ele afirmaria naquele momento a primazia do olhar, e por isso suas referências à gestalt, à etologia e à fenomeologia.
É válido também indagar, desde o Imaginário assim definido, o que seria o Real. Esta questão se apresentou a Lacan a princípio apenas como uma crítica à “função do Real” como determinada pela “função do verdadeiro”, sendo este Real condicionado pela mística da “sensação pura”. Quer dizer, o Real com o qual Lacan se deparou nos seus primeiros anos, combatendo o uso que se fazia dele na psiquiatria, seria o equivalente do estudo “objetivo dos fenômenos”.
Porém, a imagem, tomada como gestalt que é constituinte da função do Eu, não é o Real, mas é da ordem do Real, e é causa da permanência da identificação. O Real pensado assim, poderia ser o próprio Imaginário, pois nesta acepção o Real seria o que está fora, seria o substrato dos fenômenos.
Para Lacan, ao tomar um Imaginário “puro”, decorrente do investimento narcísico dos objetos, haveria um Real que estaria atrás das aparências e independeria da consciência. O Real, pensado neste momento por Lacan, apesar de poder se confundir com o Imaginário, é Racional, é uma invariante, é independente do Eu e da consciência, e é logicizável; mas ainda é apenas suporte do imaginário.
Escrever-se R>S resume a concepção de que o o Simbólico tem uma prevalência sobre o Imaginário. A partir de 1953, ao introduzir o Simbólico, Lacan estabeleceu uma articulação entre os dois registros segundo a qual o Simbólico determinaria o Imaginário. Isto decorreria do fato, lido por Lacan em Freud, de que o Ideal do Eu determinaria o Eu-Ideal, havendo neste movimento uma retomada da idéia do processo da identificação como ato fundador do Eu, o que é demonstrado pela teoria do Estádio do Espelho.
Se antes a questão era apresentada pela dialética mortal constituida pela relação Eu-outro, a partir da introdução do registro simbólico esta dialética passou a ser mediada por um terceiro termo, o Outro, o que quer dizer, pelo significante.
A questão clínica nesta explicação teórica, que antes articula­va o Imaginário à evidência da agressividade, ou seja, “ou Eu, ou o outro” (como na explicação que Lacan deu à causação do ato criminoso de Aimée), passou a ser entendida, com o recurso do Simbólico, como sendo o Ideal do Eu que determinaria e sustentaria a projeção imaginária sobre o Eu-Ideal. Isto obrigou Lacan a romper com a concepção anterior que vinculava o Real ao Imaginário, visto que era ape­nas dessa articulação que retirava a estrutura subjacente à atividade psíquica. Com isso deu-se uma ruptura com o modelo anterior, pois a partir daí não se tratava mais só de Imaginário e Real, mas de Imaginário, Real e Simbólico.
Em 1955, ainda em relação à psicose, ao explicar o fenômeno da alucinação, o Real passou a ser definido como o que não é identificável pelo Simbólico. Lacan argumenta que se o inconsciente deve sua eficácia ao fato não de não ser consciente, mas ao fato de ser linguagem, a questão não era saber por que o inconsciente, que na alucinação está consciente (ao céu aberto como diz Lacan), permanece excluído para o Sujeito, mas porque o inconsciente aparece no Real.
Desta maneira seria o psicótico quem revelaria o Real, pois o Real definido desde a concepção da psicose em Lacan, a partir da teoria da forclusão do Nome-do-Pai, leva à conclusão de que o Real é o impossível de simbolizar.
Real da fala, Real do psicótico e Real do Outro compõem diversas combinações entre o Real e a realidade, deste com o Simbólico, do Simbólico com o Imaginário e do Real com o Imaginário. Combinatória aliás esgotada dois anos antes, em razão da apresentação do texto “O Simbólico, o Imaginário e o Real”, em 8 de julho de 1953. Foi quando expôs a clínica das relações possíveis entre os registros, que se esgotam na combinatória que, segundo Lacan, seria a lógica da ordem do processo analítico: RS, RI, II, IR, SI, SR, RR.
Escrever-se R>S resume a concepção de que o Real tem prevalência sobre o Simbólico. Em 1966, ao rever no texto “De nossos antecedentes” [26], a teoria do Estádio do Espelho, Lacan rompeu com suas posições anteriores. Foi tirada a ênfase da captação visual da Imagem do outro, e deslocada para a situação do sujeito saber-se objeto do olhar do Outro. Já não se tratava mais de uma completude ortopédica que vinha do semelhante, o que daria ao Imaginário um status de Real, mas do objeto escópico como objeto a. A falta, não sendo biológica como no Imaginário puro nem falta fálica como no Simbólico determinante do Imaginário, passa a ser objetal pela imagem especular. Daí os registros só se relacionarem a três, pois o olhar do Outro está no fundamento da constituição do Eu, e a imagem do outro também é faltante, e é esta falta que é motivada pelo objeto a.
A partir disso, como se liga o Simbólico e o Real? Qual a relação entre a falta Imaginária, a Real e a Simbólica? E o Imaginário e o Real?
O recurso ao nó borromeano foi o que serviu a Lacan para tentar articular essas relações. Da combinatória dual entre os registros, como foi feita nos anos 50, 60, Lacan passou por uma combinatória ternária dos registros, com o recurso do nó borromeano. Assim, frente às oito possibilidades anteriores, existem seis com a nova combinatória: RSI, SIR, IRS, ISR, RIS, SRI - onde I prima sobre R (I>R), S>I e R>S.
Explorando este recurso desde 1971, Lacan demonstrou a relação do Imaginário, do Simbólico e do Real articulada em torno de um triplo buraco, que se fechariam amarrando-se em um nó a três.
1 - O buraco do Simbólico seria o seu limite, que é o impossível de se dizer, ou o recalque originário, ou na escrita de Lacan .
2 - O buraco do Real seria o que foi exaustivamente demonstrado por Lacan pela via da lógica e que foi formalizado como “não há relação sexual”, ou seja, o Real pensado como falta, formalizado desta maneira como resto matemático, como o impossível de se atingir, produziu a noção de um Real como impossível. Por isso o Real não pela representação, seria atingido seria desprovido de sentido e, por isso, ele seria o que está fora do Simbólico.
3 - O Imaginário teria sido então ressignificado por este Real assim definido. Não se trataria portanto mais do Imaginário corporal, decorrente da imagem especular. O Imaginário teria aqui a função de consistência, que é função de fazer um, manter junto. Seria esta a função do Imaginário redefinido pelo Real como Ex-sistência, o de um Imaginário que garante as três dimensões que organizam o espaço do ser falante, um Imaginário que é o que dá corpo e que não é o corpo.


[1] Roudinesco, E., Companhia das Letras, S.P., 1994
[2] Lacan, J.,Edicion du Seuil, Paris,1975
[3] Lacan, J. O Estádio do Espelho como formador da função do Eu, in Escritos, p. 96
[4] Freud, S, 1900, S.E., v. IV, p.1
[5] Lacan, J. Mexico, Siglo XXI, 1976.
[6] Lacan, J. Id. ibid, p. 333.
[7] Lacan, J. Id. ibid, p. 338.
[8] Lacan, J. Escritos, p. 69
[9] Lacan, J. in Escritos , p. 69.
[10] Freud, S. in S.E. v. I, p. 23
[11] Freud, S., S.E., v. II
[12] Freud, S., S.E, 1911, v. XI, p. 209.
[13] Freud, S., S.E., 1914, v. XVI, p. 67.
[14] Freud, S. S.E., 1926, v. XX, p. 271
[15] Lacan, J. O Estádio do Espelho como formador da função do Eu, p. 96
[16] Id. Ibid.
[17] Id. Ibid.
[18] Id. Ibid.
[19] Id. Ibid.
[20] Id. Ibid.
[21] Id. Ibid.
[22] Id. Ibid.
[23] Id. Ibid.
[24] Id. Ibid.
[25] Lacan, J. Scilicet, n. 4, 1973.
[26] Lacan, J. Escritos, p. 69


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