PSICANÁLISE LACANIANA - Apresentação
O inconsciente avança?
Márcio Peter de Souza Leite
• O chiste e o inconsciente que muda
• A angústia e a modernidade
• Declínio da psicanálise
• Saber e pós-modernidade
Este livro é a retomada do A negação da falta , publicado em 1992, que por sua vez é o registro do seminário realizado em 1988 no CEPSI a convite do Dr. Roberto Azevedo. Retornar a este texto implicou rever a teoria lacaniana, a modernização da psicanálise, e pesquisar se há na atualidade uma modificação dos modos de subjetivação.
Porém, revê-lo desde a perspectiva atual, onze anos depois, produziria uma reformulação total de seu conteúdo. Mantive então o texto anterior, e incluí outras produções visando adequar a proposta anterior ao entendimento atual da psicanálise lacaniana.
Também impôs-se o eixo dos seminários foi a noção de “falta”, explorada nas suas formas Imaginária, Simbólica e Real, bem como suas conseqüências na organização da psicopatologia, daí o título “a negação da falta”.
A estrutura anterior foi mantida, porém, como num chiste antigo, o efeito não era mais o mesmo. O chiste mostra de uma maneira privilegiada a forma que o recalque adquire, e exemplificando as modificações que ocorrem permanentemente na linguagem, mais do que qualquer outra manifestação do inconsciente, aponta às mudanças no recalque. E assim como o recalque muda, a psicanálise também tem que estar sempre redescobrindo o inconsciente para se manter eficaz.
A psicanálise, como o chiste, também muda, e, como ele, é uma interpretação da cultura, que procura na linguagem o narcisismo sempre difícil de se perder.
O chiste, estranha e nobre atividade psíquica, ao mesmo tempo que visa fazer surgir prazer no outro, é veículo de um mal-estar hostil e sexual, e ao testemunhar os avanços do inconsciente, serve de parâmetro para a transmissão da psicanálise, pois ao colocar em ato a estrutura do significante, demonstra seu funcionamento. O inconsciente avança devido à evolução da linguagem. O analista por ser uma conseqüência do conceito de inconsciente, não pode ficar atrás. Por isso, para retomar este texto de onze anos atrás, é preciso dar testemunho do outro lugar que a psicanálise ocupa hoje.
A angústia e a modernidade
A tendência da modernidade é a unificação dos discursos. Um exemplo é o livro de Fritjof Capra, O Tao da física, que pretende demonstrar que as concepções da cosmologia moderna seriam semelhantes às das antigas tradições religiosas orientais. Para fundamentar tal proposta, o autor sugere uma nova disciplina que eliminaria as diferenças existentes entre os vários campos das ciências: a holística.
Pensada desde a psicanálise, essa tendência pretenderia anular as diferenças e produzir um Outro sem falta. Na tentativa de eliminar a angústia, efeito da falta no Outro, o homem não cessa de produzir discursos onde o Outro se representa como completo. Na abordagem psicanalítica, os mitos cristãos sobre a origem do homem, o que inclui um paraíso e sua perda, poderiam ser reduzidos às expressões da estrutura psíquica que os produziram, e o paraíso representaria, no discurso analítico, a completude com o Outro.
Outra característica da modernidade é a modificação da concepção do tempo, que rompeu com a linearidade que o configurou na física antiga. O homem atualmente pensa a origem do universo como um movimento cíclico, como sugere a teoria do big bang, que propõe um universo em permanente movimento de expansão e contração, numa eterna criação e destruição. Coincidentemente, é a mesma imagem sugerida pelo hinduísmo, que relata a origem do universo criado pela respiração de Brahma, que o criaria na exalação e o destruiria na inspiração.
A psicanálise demonstra que qualquer tentativa de compreensão da realidade exterior levará em si, sempre, a marca do instrumento que o formaliza, que é o próprio psiquismo. Residiria aí toda a problemática da ciência, tema abordado por Lacan no seu escrito “A ciência e a verdade” [1].
Com isso explica-se o desejo de que exista uma ciência que, ao ser completa, evitaria a angústia. É a promessa da holística que, ao comparar o big bang à respiração de Brahma, busca uma compreensão do homem de si mesmo que, sem sair da dimensão significante, se confundiria com o que o cria, brincando de Deus.
Se a religião foi a forma de o homem unir a carne ao significante, o fracasso desse esforço é o que daria sentido à afirmação de Lacan: “Sem dúvida o cadáver é bem um significante, mas o túmulo de Moisés é tão vazio para Freud quanto para Hegel. Abraão a nenhum deles confiou o seu mistério” [2].
Esse túmulo vazio, metáfora da angústia, seria o motor da história das mentalidades, que vista pela psicanálise poderia ser a história das maneiras com que o homem procurou preenchê-lo.
Na história das mentalidades o tempo é lógico. Enquanto sujeitos, somos todos contemporâneos da mesma angústia, porém em momentos diferentes do desdobramento lógico das formas de negá-la. O que determinaria os movimentos desta lógica seriam os diferentes estilos de recalque, que seria o recurso de cada cultura para negar a angústia. O sujeito é filho da angústia. A história das mentalidades seria então uma disciplina que investiga as maneiras de os homens responderem às perguntas do real, outro nome da angústia.
Declínio da psicanálise
Inicialmente Em maio de 93 a revista Times publicou uma matéria de capa com o título: “Está Freud morto?”. Ao que podemos responder: Freud está morto, mas a psicanálise não.
O próprio Freud, no texto “As perspectivas futuras da terapia psicanalítica” [3], antecipando o destino dela, afirmou que se não houvesse resistências à psicanálise ela não seria verdadeira. Isto porque o inconsciente é conseqüência do recalque, e se não se resistisse ao inconsciente, o recalque não seria o que a psicanálise diz.
A psicanálise afirma que o recalque é um não querer saber da angústia, daí que a cultura se defenderia dela defendendo-se da psicanálise, que mostra a angústia como inerente à condição humana e parte inevitável do seu destino. Por isso, para o psicanalista, não causa espanto que o sujeito prefira culpar os seus neurônios pelo seu sofrimento, atribuindo somente a eles a responsabilidade pela sua angústia.
O futuro da psicanálise dependerá de se entender as novas formas de recalque que irão sempre surgir; e como o recalque depende do estilo de cada cultura, deveremos entender os novos estilos de recalque que a vida de hoje produz.
Como o estilo do recalque próprio ao nosso tempo, tido como pós-moderno, aponta a um declínio da psicanálise, impõe-se pensar o qual o lugar do sujeito neste novo momento. Impõe-se também uma reflexão sobre a instituição psicanalítica e se ela serve às novas maneiras do sujeito pós-moderno se associar. O mesmo haveria que se fazer em relação à psicanálise utilizada como teoria explicativa da mente. Da mesma maneira, e talvez principalmente, haveria que ousar fazer-se um aggionarmento da psicanálise usada como método terapêutico, apesar das dificuldades que essa tarefa impõe.
Este aggionarmento da psicanálise depende da noção de sujeito, inicialmente sinônimo de essência do homem, visto como capaz de ultrapassar as condições empíricas imediatas que o determinam. A este sujeito, entendido como centro do conhecimento, chamou-se de sujeito noético.
Outra definição é a de Koyré, que situou o sujeito como decorrente das descobertas de Copérnico, o que teria feito com que o mundo voltasse a ser sem centro devido à introdução da idéia de infinito.
Pode-se ainda falar em um sujeito reflexivo, introduzido por Descartes, fazendo o fundamento do saber passar a coincidir com a descoberta do Cogito, levando ao entendimento que a objetividade da natureza se daria unicamente para um sujeito fundante do saber.
Para Lacan, é esse sujeito, o sujeito cartesiano, o pressuposto na noção de inconsciente, pois Freud teria partido do fundamento do sujeito da certeza, tal como Descartes, ou seja, Freud parte da idéia de que o sujeito pode ter certeza de si desde que possa destacar dúvidas no seu discurso, as quais aparecem como reveladoras de um sujeito dividido; por isso, para Freud, o lugar do “eu penso” é independente do “eu sou”.
Para a psicanálise, o sujeito é o sujeito do inconsciente, que é barrado pelo significante, dividido em sujeito da enunciação, o “eu penso”, e que não é o mesmo sujeito do “eu sou”.
Recentemente teria havido ainda uma última modificação na idéia de sujeito, a descontrução do sujeito, que funda um novo momento na filosofia, ao qual se chamou de “pós-estruturalismo” ou “desconstrutivismo”, e que apresenta a morte do sujeito exemplificado através da “escritura”. Esta posição teria inaugurado a “subjetividade pós-moderna”.
Uma outra forma de apresentar a evolução da noção de Sujeito é através da “crise da representação”, que, ao radicalizar a idéia da morte do Sujeito, revelaria o frágil e problemático caráter representacional da linguagem, através da desarticulação entre as palavras e as coisas.
A modernidade se relaciona com a psicanálise na medida em que o sujeito se define em relação ao saber, pois, para alguns psicanalistas, o declínio da psicanálise se deve a que o sujeito pós-moderno não seria analisável. O sujeito pós-moderno é o sujeito que não responde a um saber compartido socialmente, é o sujeito sem paradigmas de consenso, é o sujeito que decorre das mudanças dos costumes sexuais, é o sujeito que decorre das mudanças ideológicas, é o sujeito que sofre da ausência de ideais preestabelecidos, enfim o sujeito pós-moderno é o sujeito que modificou sua relação com o saber. Mesmo assim, o sujeito se construirá sempre em relação a ele, esta é a lição da transferência. Porém o que o analista de hoje não pode negar é que o saber mudou de endereço e o analista tem que saber localizá-lo.
Se os semblantes do imaginário social que antes definiam os papéis sexuais mudaram, se há uma declinação do viril, e da função paterna, se os gadgets são suficientes para completar a falta, mesmo assim o sujeito continua fazendo sintomas, não os mesmos da época de Freud, mas sintomas próprios à nossa época.
O analista por ser sujeito de uma suposição de saber, está por isso mesmo historicamente determinado, da mesma forma que o saber também o está. Mas ainda assim o analista continua analista, embora fazendo semblante de saberes muito diferentes dos que Freud fazia.
O declínio da psicanálise seria então efeito da dificuldade de pensar-se como é ser analista para um sujeito pós-moderno, seria não admitir que o inconsciente avança, seria não concluir que o analista, se quiser continuar analista, tem que avançar da mesma maneira que o inconsciente.
Saber e pós-modernidade
Uma das conseqüências da modernidade é a aceitação sem críticas do uso de psicofármacos na terapêutica psiquiátrica como único meio de transformação dos sintomas. Isto deve-se a que, na psiquiatria atual, pensa-se a conduta humana como efeito da ação de um cérebro, cuja única verdade está no funcionamento dos neurônios.
Caracterizando a posição da psicanálise, Lacan apontava o nada querer saber da ciência frente à verdade como causa do sujeito. Seria como efeito da “foraclusão da verdade como causa do sujeito” [4], como diz Lacan, que a nova psiquiatria aboliu o sujeito desejante? A posição de Lacan sempre foi clara: “somos sempre responsáveis da nossa posição de sujeito. Que isto se chame, onde quiserem terrorismo” [5].
Articulando-se a psicanálise com a modernidade, poderia falar-se em uma relação do sujeito com a história? Lacan em “A ciência e a verdade” utilizou a expressão “um certo momento do sujeito”, no mesmo texto fala, também se referindo ao sujeito, de “um momento historicamente definido”, e mais adiante, ainda em relação ao sujeito, se refere a “um momento historicamente inaugural”, apontando com isto à emergência do sujeito em função da relação deste com o saber. A conseqüência disto seria o que Lacan chamou de um sujeito novo, que é o sujeito da ciência como fundamento da modernidade.
Dentro desta hipótese, o aparecimento de um sujeito que se poderia chamar de moderno, seria historicamente localizado a partir da publicação das Meditações metafísicas onde Descartes, com a operação do Cogito, teria produzido este sujeito novo.
Segundo Foucault, foi Kant quem inaugurou uma nova forma de pensar ao se perguntar sobre a atualidade, fazendo do presente um acontecimento e introduzindo na filosofia a problematização da atualidade, tempo onde Kant buscava os signos do progresso.
Passando por Hegel, a questão se cristalizou com Max Weber e Habermas, que foram os primeiros a usar a palavra modernização como terminus associando-a à formação de capital, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados, mas também propondo a modernidade como algo que se autoconsome, por ser ela uma intercessão entre tempo e eternidade.
As referências de Lacan à ciência moderna, ao pensamento moderno, à era moderna, mostram sua preocupação com a relação do sujeito e o momento histórico no qual esta inserido.
Daí a opinião de Lacan de que um dos temas que caracteriza o pensamento moderno é a idéia de um personagem vivendo só em uma ilha deserta, e menciona a Robinson Crusoé. Lacan sugere que esta idéia representa o começo da era moderna, pois seria fundamental para o homem moderno afirmar sua independência, sua autonomia em relação a todo amo e a todo Deus.
Da mesma maneira, para Lacan, a ciência moderna foi um acontecimento que decorreu dos efeitos do monoteísmo, que teria instaurado um mundo ordenado ao redor de um centro, abrindo com isso uma concepção unitária do Universo. A ciência teria sido também possibilitada pelo mito bíblico da criação ex-nihilo , o que teria posto em funcionamento a potência creacionista do significante. Ainda para Lacan, a resposta dada a Moisés pelo anjo de Iavé, “Sou o que sou”, fez com que Deus aparecesse como subjetividade absoluta, equivalente a um “tu não saberás da minha verdade”, fazendo com isso a fronteira entre saber e verdade.
Porém, se o pós-moderno se caracteriza por um questionamento do modelo de ciência, caberia a pergunta: há um sujeito atual que seja diferente do anterior, produzido pelo saber novo dos dias de hoje? E se houver um sujeito atual, como situar a responsabilidade dele no mundo moderno? Daí a pergunta de Lacan: “qual teria sido a modificação de saber que fez a passagem do mestre antigo, para o moderno?” – mestre que para Lacan, é o capitalista.
A questão que se impõe é como fazer um mundo novo onde todo laço social seja semblante. J.A. Miller no curso “O Outro que não existe e seus comitês de ética" [6] diz que, devido ao império dos semblantes, haveria que se manter a psicanálise orientada para o real, pois ele seria o correlativo da inexistência do Outro.
Poderíamos pensar que a contribuição da psicanálise à modernidade seria a invenção de um novo Cogito, que se poderia chamar de lacaniano? Cogito este definido como a conseqüência do inconsciente frente ao “penso logo sou” que produz “ou eu não penso ou eu não sou”, introduzindo aí um ser de gozo?
[1] Lacan, J. Escritos, p. 869.
[2] Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, in Escritos, p. 807.
[3] Freud, S. S. E., v. XI, 1910, p. 139.
[4] Lacan, J. A ciência e a verdade, in Escritos, p. 869.
[5] Ibid., p. 869.
[6] Miller, J.A. Sem. inédito, 1996.