PSICANÁLISE LACANIANA - Capítulo II   

O Simbólico
  Márcio Peter de Souza Leite


• A psicanálise avança?
   Uma nova clínica
   Novos sintomas
   Nova direção do tratamento

• A superação do Imaginário pelo Simbólico ou o inconsciente estruturado como linguagem
   No Simbólico o tempo e lógico
   Inconsciente lacaniano, linguagem e formação do inconsciente
   A Ética e as diferentes psicanálises
   Édipos e as diferentes psicanálises
   Função paterna, Nome-do-Pai e metáfora paterna
   De Viena à Paris: a ressignificação do inconsciente
   Mulheres freudianas e mulheres lacanianas
   Desejo e modernidade: Sade, Kant e Lacan
   A subversão do sujeito
   O outro Lacan: do significante à letra, da linguagem à escritura
   A segunda clínica de Lacan


A PSICANÁLISE AVANÇA?

Uma nova clínica

Por que a psicanálise está constantemente se modificando? O que justifica as mudanças de posição em relação à clínica feitas tanto por Freud como por Lacan?

O termo “clínica” refere-se ao aprendido ao lado do leito, impondo um predomínio da “experiência” sobre a teoria. Esta idéia foi formadora do espírito da psicanálise, e por isto a frase “Ça n′empêche pas d′exister”, dita por Charcot a Freud. Charcot orientou Freud fazendo-o sobrepor os fatos que descobriu ao saber dos discursos dominantes.
Porém, foi em um desses discursos, o da psiquiatria, que Freud apoiou-se para nomear sua “clínica”, na qual a psicopatologia era diferente da médica e foi chamada de “a outra psicopatologia”. Mas, mesmo assim, Freud sempre manteve o saber psiquiátrico como um interlocutor privilegiado.
Ao reorganizar as categorias psicopatológicas a partir da psicanálise, Freud inventou as neuroses de transferência e a neurose narcísica, modificou quadros como a neurose de angústia e neurastenia, reinterpretou e reorganizou as fobias e as obsessões e praticamente reinventou a histeria. No campo das psicoses, polemizou com a esquizofrenia, oscilou entre os diagnósticos de paranóia e o de dementia paranóides, correlacionou luto com melancolia, mas sempre se manteve próximo à sistematização psiquiátrica.
E como a orientação lacaniana se coloca diante de a uma possível especificidade da clínica psicanalítica? Será que o sintoma não é diferente na psiquiatria e na psicanálise?
A psiquiatria observa e descreve o sintoma, para depois classificá-lo, nomeando-o a partir de modelos (que, caso se aceite a hipótese dos historiadores da psiquiatria, seria o da paralisia geral); para a psicanálise, o sintoma só existe quando falado pelo paciente e portanto tem como paradigma o ato falho. E mais, a clínica psicanalítica, ao ser construída a partir de um discurso originado de uma demanda, faz com que o analista também seja parte do sintoma.
Mas mesmo assim a relação da clínica psicanalítica com a psiquiátrica não é de exterioridade, pois segundo Lacan ela “não possui outra clínica senão a psiquiátrica” [1]. Isso não quer dizer que na psicanálise o diagnóstico seja feito pretendendo-se a descrição do sintoma. No campo psicanalítico faz-se um diagnóstico da posição do sujeito, e este é o momento proposto por Lacan como o das “entrevistas preliminares”, primeiro momento do tratamento analítico.
É em referência ao discurso do paciente que o analista, por ser o destinatário dele, se reporta às categorias de neurose, psicose ou perversão. O analista refere-se a fatos de discurso, que vão desde a alucinação (vista como um acontecimento da linguagem característico da psicose) até a metáfora, a qual, com toda a sua força poética, potencializa pela língua os gozos interditos da neurose, passando pelas transgressões da lei – o modo de gozar do perverso.


Novos sintomas
Como a clínica psicanalítica se constrói sobre um discurso dirigido por um sujeito a um outro que ele supõe deter um saber sobre o seu sofrimento, Lacan demonstrou a descoberta de Freud, formalizando-a com o axioma: “O inconsciente está estruturado como uma linguagem”.
Porém, as linguagens se modificam como mostra a constante atualização dos dicionários. Como o inconsciente está estruturado como uma linguagem, pode-se inferir que o inconsciente também se modifica, assim como os sintomas mudam. Basta comparar a descrição das histerias feitas por Freud, Charcot e Breuer, e as do cotidiano da clínica atual, para impor-se a existência de uma modificação na patoplastia das histerias.
A clínica psicanalítica, entendida como a clínica da transferência, está centrada nos ditos do paciente e não nas convulsões e paralisias. E, mesmo mantendo a referência às categorias da psiquiatria, a psicanálise construiu uma ordenação de sintomas que transcende a simples observação.
Universalizando o sintoma, Freud propôs todas as produções do espírito como sintomas. Neste sentido, podemos até mesmo falar de um mal-estar contemporâneo, o que Lacan chamou de modos de gozo do mundo moderno. Seria com este sujeito moderno que os psicanalistas teriam que lidar. Justamente com a parte do sujeito que não consegue afirmar-se conforme o modelo moderno, que não é o de um ideal, mas o de um mercado comum.
Para que o sujeito pareça moderno, o sintoma – visto como o responsável pela tentativa de cada um conseguir o que está prescrito pelo discurso atual, o que se dá pelas vozes do mercado – impõe ao sujeito que seja jovem, rico, satisfeito. Isso faz com que existam sintomas novos, tantos quantos forem as novas estratégias da linguagem para criar ilusões narcísicas de completude, conforme a ditadura do mercado. Para o sujeito dividido, habitado pela falta, isso tem como conseqüência a produção de novas maneiras de se confrontar com os objetos suscetíveis de preencher esta falta.
Foi neste ponto que Lacan propôs uma relação da psicanálise com Marx. Segundo Marx, quando o capitalista percebe que o preço pago pela mercadoria, como valor de troca, produz como valor de uso uma mais-valia, no final ele “... sorri como quando está frente ao encanto de algo que surge do nada”. Por isso, Lacan estabeleceu uma homologia entre a mais-valia e o objeto na psicanálise, que ele chamou de objeto a ou de mais-gozar.
Na visão de Lacan, a renúncia ao gozo, que seria específica do trabalho, se articularia com a produção da mais-valia em um discurso, afirmando: “a mais-valia é a causa do desejo na qual uma economia faz seu princípio” [2]. Isto implica que o sujeito, a partir do particular do seu gozo, encontre na mais-valia a razão de sua entrada no mercado.
Por isso, Lacan reformulou a noção de Freud de mal-estar, definindo-o como “gozar da renúncia ao gozo”. Ainda, segundo Lacan, isso faz com que seja próprio da civilização, caracterizada pela ciência e pelo capitalismo, que um dos aspectos da renúncia ao gozo encontre-se no consumo de bens. Bens que, embora facilitem a vida, são impostos ao consumo, logo, ao desejo. Produz-se com isso um círculo vicioso, pois tem-se que trabalhar mais para adquiri-los.
Neste ponto, a clínica aponta para a emergência de novas formas de o sujeito fugir ao mal-estar. Dentro da linguagem, na regulação do sujeito pelo outro, intensificado pelo poder da mídia, haveria sempre novos dispositivos identificatórios que ofereceriam ao sujeito outros modelos de evitar a angústia, através de ideais ready-made, oferecidos em massa, para sujeitos cada vez menos diferentes.
Ao confrontar constantemente o sujeito com seus ideais, os meios de comunicação não fazem com que este jamais se sinta à altura deles? Nesse avanço da linguagem, top-model pode ser a senha para um ataque ao próprio corpo, “gênio” e “loucura” se confundem, “viagem” confunde-se com drogas.
Assim, para se pensar numa clínica psicanalítica, é necessário uma atualização que permita aproximar a posição do inconsciente e a pulsão aos discursos de nosso tempo, produzindo um aggiornamento do sintoma sobre o qual ela incide.
Será que a globalização da cultura, os sonhos de um fim da história e o apelo a uma nova ordem mundial reformulariam o lugar do sujeito e suas relações, com a ciência nos novos espaços regidos pelo mercado? A psiquiatria dita biológica e seu sistema classificatório das doenças – o DSM, por enquanto, o IV –, com sua proposta de um sujeito puro cérebro, não seria uma das conseqüências deste momento?
Fugindo à definição de corpo que a sociedade moderna produziu como sendo apenas um aparelho definido técnica e juridicamente, a psicanálise lacaniana reivindica que é legítimo retirar deste corpo, por intermédio da noção de gozo, aquilo que o condiciona, que é sua relação com o Simbólico, evidenciado nos costumes, nas relações de parentesco etc.
Para a psicanálise, o Sujeito transcende o homem pensado como condicionado unicamente pela genética, como quer a tendência atual das neurociências. Lacan propõe o corpo aparelhado pela linguagem, a qual se atualiza em novos sintomas e novos modos de gozo.
Com isso, aponta-se para a possibilidade de uma clínica que se sustente não só pelo entendimento dos sintomas, mas onde o que conta é o lugar do sujeito em relação à significação de seus atos. Por exemplo, o lugar do pai na sociedade atual não está subvertido pela existência da inseminação artificial? Sendo assim, os analistas não deveriam procurar o pai doador do DNA, mas sim trazer seu nome à consideração científica. O pai psicanalítico é o responsável pela consumação do desejo, o que faz dele uma função que articula o desejo com a lei, e não uma presença biológica.
Dessa maneira, o sintoma na psicanálise deixa de ser pensado apenas como o que vai mal e desautoriza que seja ele medido por escalas, assim como desencoraja qualquer reflexão filosófica ou pedagógica a seu respeito.
Ao colocar Marx como o inventor do sintoma, Lacan pode defini-lo como a expressão do Real no Simbólico, reformulando a definição de sintoma – concebido por Freud, a princípio, como expressão de um trauma e, depois, como realização de desejo, com sua estrutura de metáfora.
Revisto por Lacan na sua vertente Real, o sintoma deslocou a questão do amor ao pai, que está na origem de qualquer sintoma pensado como efeito do Nome-do-Pai, para o Pai-do-Nome como causa. Isso quer dizer que este desenvolvimento final do ensino de Lacan põe em evidência que o sintoma não pertence ao Simbólico. O sintoma, não mais entendido como metáfora, mas como função da letra, leva a se reconsiderar o fim de uma análise, que a partir daí foi pensada em termos de identificação ao sintoma, ou seja, pode reduzir-se o sintoma à letra após havê-lo conectado com o significante.
Apresenta-se então um problema ao analista lacaniano, pois, na medida em que a análise opera com o sentido, esta proposta subverte a idéia de se dar um sentido aos sintomas como o principal agente do efeito de uma análise. Pois, mesmo para reduzir o sintoma ao seu núcleo de Real, ao seu núcleo de gozo, passa-se pelo sentido. E, mesmo o gozo da decifração sendo um gozo fora-do-sentido, produto de um efeito do Real – que Lacan chamou de escrita antes de Derrida –, é pelo semblante do sentido que se pode aceder a ele.


Nova direção do tratamento
Se não há cura para o mal-estar, para que serve, então, uma análise? Qual é a sua finalidade? O critério médico de cura, sustentado pela suposta objetividade da modificação de sintomas rigidamente descritos e classificados, subverte-se com a psicanálise e sua universalização do sintoma. O psicanalista não pode, portanto, prometer uma cura, mas, sim, um tratamento. Ele não pode prometer a satisfação, mas uma ética outra que identifica o bem com o bem-estar.
De fato, o que se demanda ao psicanalista? Será que se pode negar que existe uma demanda social, identificada a uma demanda terapêutica, que é a de reduzir o sintoma? Será que o psicanalista trabalha para a adaptação do analisante ao mundo capitalista ou para a verdade particular do sujeito?
O analista, sendo ele mesmo um objeto do mercado, deve se lembrar que Lacan insistiu que a ética analítica situa-se além do terapêutico. Como não se pode deixar de levar em consideração o desejo de alívio terapêutico dos sintomas, o que traz à tona o conceito de “desejo do analista”, isto faz com que o analista tenha que se comprometer com a causa do inconsciente, o que, quase sempre, se contrapõe à causa do mercado, já que cada um conta somente com sua verdade particular para responder ao mal-estar.
E não será este o desafio que se coloca para o analista de orientação lacaniana? Este desafio apresenta uma ordem de razões que implica uma razão das ordens. Por exemplo: pensar a finalidade de uma análise na psicose e em um neurótico atualiza não somente a questão da relação da psicanálise com estas categorias psiquiátricas, mas também ressalta uma possível doutrina do tratamento, que separa a ação analítica das convenções sociais tradicionais do que se espera como “cura”.
Em termos da orientação lacaniana, estas considerações pensadas com os termos “estabilização” dentro do delírio e “estabilização” fora do delírio para a psicose questionam a extensão à psicose do critério de “destituição subjetiva”, termo com o qual Lacan nomeia a posição do sujeito no fim da análise.
Se o inconsciente avança, a psicanálise o faz, também, e sempre por intermédio do analista e sua clínica, sem o que a teoria da psicanálise seria apenas uma metafísica.
No momento atual, o analista de orientação lacaniana, perplexo, defronta-se com os desafios dos modos de gozo impostos pela nova ordem mundial. Ele se vale, para poder refletir sobre estes desafios, de uma ampliação da noção de inconsciente que, pensado como diferente da função de recalcado, pode questionar, os estilos diferentes de o sujeito negar a falta e fugir da angústia. O analista de orientação lacaniana vale-se, também, da doutrina do fim de análise proposta por Lacan para questionar a formação do analista e, desse modo, poder produzir uma formalização da clínica que ultrapasse os compromissos pessoais de cada um de seus praticantes, pretendendo a produção de um dispositivo desvinculado dos discursos dominantes.


A SUPERAÇÃO DO IMAGINÁRIO PELO SIMBÓLICO OU O
INCONSCIENTE ESTRUTURADO COMO LINGUAGEM


No Simbólico o tempo e lógico
Um estilo de transmissão decorre da influência de Lacan, que no escrito “A situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956” [3] pergunta: “O que a psicanálise nos ensina, como ensinar?”.
Anteriormente a ele, Freud havia assinalado que devido à existência do inconsciente, quando se expõe um assunto, este pode se articular a algo resistido do sujeito e é possível não entender-se tudo o que se ensina, pois ninguém escapa do próprio desejo.
O inconsciente é questão de demonstração, não de fé, e uma evidência disto é que entre um seminário e outro continua a elaboração do que foi escutado no anterior. Decorre desse fato a estrutura do setting analítico. Faz-se uma sessão após outra, e estabelece-se um intervalo para que o falado se elabore dentro das características das leis do Simbólico. O know how do analista é saber intervir no Simbólico, que por não obedecer às leis naturais, subverte uma temporalidade definida cronologicamente. Por isso Lacan abordou a questão do tempo por outro ângulo e produziu a possibilidade de pensar-se o processo mental de uma maneira nova, com a noção de tempo lógico.
Numa temporalidade linear, produzem-se os efeitos próprios à lógica seqüencial, como acontece com a da linguagem. O nó borromeano foi um recurso utilizado por Lacan para superar este fato e articular o Imaginário, o Simbólico e o Real, de forma que impedisse a suposição de que houvesse uma ordenação, uma hierarquia na passagem de um registro a outro.
Os três registros, segundo as propriedades do nó borromeano, se amarram de tal forma, que, soltando-se um deles, os outros dois se soltarão. Não há nenhuma prioridade de um registro sobre o outro, ou tem-se os três ou não se tem nenhum. Eles se articulam dentro de uma lógica onde 3= 1. Somente após ser completado o estudo dos três Registros que constituem o nó é que essa lógica fará sentido.



O tempo cronológico é uma convenção da divisão do tempo da rotação da Terra em torno de si mesma e em torno do Sol. Esse, entretanto, não é o tempo do sujeito, pois existem horas que duram minutos e minutos que duram horas.
Lacan sugeriu um tempo que não fosse cronológico para pensar os processos mentais e escreveu um artigo propondo o tempo lógico como o tempo do sujeito – temporalidade esta que não é uma idéia dos lógicos, mas uma criação de Lacan. O tempo lógico tem também uma relação intrínseca com a formalização da formação do analista na ótica lacaniana, pois rompe com a padronização da formação em períodos a serem cumpridos.
No texto “O tempo lógico e a afirmação de uma certeza antecipada" [4] uma lógica é deduzida de um jogo ao se solucionar o seguinte problema: o diretor de uma prisão chamou três prisioneiros dizendo que o primeiro que resolvesse o problema proposto por ele, justificando-o logicamente, seria liberado. O diretor pegou cinco cartões, sendo três pretos e dois brancos; dispôs os três prisioneiros em fila e colocou um cartão nas costas de cada um. Cada um dos prisioneiros podia ver os cartões das costas dos outros dois, mas teria de deduzir a cor do seu.
Uma das soluções é um prisioneiro pensar que se ele vê que o cartão de um prisioneiro é preto e o de outro é branco, então pode deduzir que só há mais um branco. Mas, se ele tivesse também um cartão branco, quando o terceiro prisioneiro olhou sua cor, ele teria ido falar ao diretor. Como ele não foi, então pode-se deduzir que a cor do cartão nas suas costas é preto.
Há várias soluções logicamente corretas. A que Lacan prefere é aquela em que os três são liberados, pois cada um consegue, por intermédio do outro, saber a cor de seu cartão. Com isso, Lacan mostra que o processo psíquico é tripartido, diferindo da estrutura cronológica do tempo, que é contínua.
Ao primeiro momento dessa tripartição do tempo, Lacan chamou de Instante de Ver: primeiro é preciso olhar a cor do cartão dos outros para poder deduzir a do seu (Se os outros dois cartões são brancos, então o prisioneiro pode deduzir que é preto). Sem olhar, não é possível concluir.
O segundo é o Tempo de Compreender (Os dois são brancos, só há dois brancos); seguido pelo terceiro tempo que é o Momento de Concluir (Logo, eu sou preto).
Nesta perspectiva o processo mental é tripartido em instante, tempo e momento. O instante de ver seria o insight, e talvez para quem se inteira por primeira vez desta questão, este seja o tempo de compreender em relação ao instante de ver, e só num terceiro momento poderia precipitar-se o momento de concluir.
O tempo lógico não é o que sustenta a prática das sessões curtas, Lacan sugeriu que ele “pode ter utilidade na diplomacia, na teoria dos jogos e até mesmo na psicanálise” [5]. O tempo lógico é uma demonstração da heterotemporalidade, ou seja, de que o tempo subjetivo pode ser alterado por uma função externa.
No caso citado, quem está no lugar de alterar a temporalidade do outro é o diretor da prisão, quando diz: “O primeiro prisioneiro que resolver o problema será libertado”. O Diretor da prisão funcionou como produtor de uma precipitação pois os prisioneiros não poderiam pensar durante muito tempo qual a cor do seu cartão, já que outro poderia ser libertado antes.
Esta é a função do analista, segundo Lacan: a de precipitar o momento de concluir do sujeito. O analista atuaria na temporalidade dos processos psíquicos do paciente, atuando na temporalidade lógica, precipitando o momento de concluir.
A questão do tempo lógico põe em ato a importância da ação de outro sujeito na subjetividade humana, o que antes já havia sido mostrado através do Eu ser uma função imaginária que se forma a partir do outro, o que Lacan relacionou ao conceito de narcisismo.
As principais referências teóricas de Lacan, em relação ao Imaginário, para um retorno a Freud, foram: o eixo do Imaginário refererindo-se ao Eu-Ideal, e a noção de falta imaginária decorrente da prematuração neurológica, uma das significações possíveis do conceito de castração, o que está indicado pelo matema (menos fi). Em vez de falar-se “conceito imaginário de castração” ou “conceito imaginário de falta”, usa-se o matema (menos fi).
Há ainda as consequências de se propor uma primazia do Imaginário sobre o Real, na medida em que o Eu se forma a partir do outro, que é uma posição contrária à kleiniana, que afirma que o Eu preexiste ao Sujeito e, portanto o estrutura. Neste caso, haveria um predomínio do Real sobre o Imaginário.
1953
IMAGINÁRIO
SIMBÓLICO
Eu
$
narcisismo
castração
Eu-Ideal
Ideal do Eu
falta = - j
F
A
A
I>R
S>I

 

O conceito de narcisismo situa no eixo do Imaginário o que Freud chamou de “célula narcísica”, e Lacan, “tríade imaginária”, que é a mãe, o bebê e o falo. Também o eixo do Imaginário é uma referencia à “mãe fálica”, sobre a qual incidirá a castração. Esse tempo constitui a primeira fase do Édipo.

Dependendo de como se entenda a noção de Eu, todo o sentido da obra de Freud se modificará, não importando se o Eu é colocado como preexistente ou decorrente do Outro. Para Melanie Klein, o Eu preexiste ao Eu e, sendo assim, ela situa num primeiro momento a inveja e só num segundo momento o ciúme. Em Lacan, o ciúme é primordial, e o Eu se constitui nesse momento.

No eixo do Simbólico se encontrará o que Lacan chamou de Sujeito. Eu e Sujeito são diferentes, e nessa diferenciação situa-se uma das particularidades do analista lacaniano. Às vezes usa-se erroneamente o termo Sujeito como sinônimo de indivíduo, de Ego, ou de pessoa. Para Lacan, o Sujeito não é o indivíduo, pois o Sujeito já é, de início, sempre dividido.

No Imaginário, a falta se escreve - j , e no Simbólico q , que é a mesma falta, porém não mais sustentada na noção de prematuração e sim a partir da estrutura da cadeia significante. O a, que no imaginário indica o semelhante (sendo o a referência à primeira letra de autre, “outro” em francês), equivale no Simbólico ao A que é um dos matemas fundamentais em Lacan e refere-se ao Outro maiúsculo, (A é a primeira letra de Autre, “Outro” em francês), conceito fundamental da teoria lacaniana e que se refere à linguagem.

As críticas ao Imaginário como um ordenador do campo analítico e a introdução do Simbólico para articular a descoberta do inconsciente freudiano começaram com um ataque de Lacan à psicanálise praticada nos Estados Unidos na época, e que era chamada de “Psicologia do Ego”.

Esta corrente da psicanálise foi criada por analistas que viviam em Viena e que com os contratempos do nazismo emigraram para os Estado Unidos, que na época tinha o poder econômico e cultural. A partir dos anos 50, a psicanálise dominante passou a ser a americana, tendo Nova York como centro. A “Psicologia do Ego” foi desenvolvida aí por Lowenstein, que foi analista de Lacan, além de Kris e Hartmann, e propunha como condição da cura que o analisando se identificasse às partes sãs do “Ego” do analista.

Nesse período, apareceu ainda o “Culturalismo”, introduzido por Karen Horney e Erich Fromm, movimento que Lacan denunciou como um desvirtuamento ideológico da psicanálise, pois, para Lacan, a psicanálise de Freud tinha um conteúdo revolucionário que teria sido deturpada pelos americanos, ao colocarem o resultado do tratamento como uma adaptação ao establishment.

A respeito da psicanálise americana, Lacan disse:

Sob as formas mais diversas, e desde o pietismo aos ideais da mais vulgar eficiência, passando pela pena das propedêuticas naturalistas, nós os vemos refugiarem-se sob as asas de um psicologismo que, coisificando o ser humano, partiria para os danos, perto dos quais os males do cientificismo puro, físico, não passam de bagatela. [6]

Movido por esta crítica, Lacan iniciou sua cruzada de retorno a Freud. Retorno não à letra, mas ao sentido de Freud. Nesta perspectiva não se imporia a ordenação cronológica do que Freud disse, mas sim o sentido de toda a sua obra.

Lacan fez isto privilegiando a noção de falo. Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” [7], surgiram primeiro as noções das fases oral, anal e fálica, que não são mencionadas na primeira edição, de 1905, pois a fase oral só foi acrescentada posteriormente, em nota de rodapé, o mesmo acontecendo com a fase anal. Foi somente em 1923, quando Freud escreveu o apêndice aos “Três ensaios...”, que é “Organização genital infantil”, que introduziu a noção de falo. Lacan enfatizou que o falo ressignificou toda a obra freudiana, da mesma maneira que a pulsão de morte, proposta em 1920, também ressignificou toda a teoria anterior.



Inconsciente lacaniano, linguagem e formação do inconsciente
A partir de Freud, Lacan produziu um novo conceito de inconsciente e chegou até mesmo a falar num “inconsciente lacaniano”. Como o próprio termo mostra, o “in-consciente” é definido por sua negatividade, “não-consciente”. Esse é o inconsciente filosófico. Apenas o fato de uma representação não estar na consciência não caracteriza o inconsciente freudiano.
Para Freud, o que caracteriza o “sistema inconsciente” são as representações que não estão na consciência e não podem se tornar conscientes, porque existe uma força atuando constantemente sobre a representação, impedindo que ela se torne consciente. Essa força é o recalque.
Para investigar o inconsciente, Freud propôs o método da “associação livre”. A marcação de Lacan foi que, como a investigação do inconsciente se dá pela associação livre, o único meio de ação da psicanálise serão as palavras.
Nunca é demais sublinhar este ponto, embora ele seja evidente, pois a solicitação do analista será sempre no sentido de que o paciente fale; não se pede a ele que dramatize nem desenhe ou produza outro tipo de expressão. Sem dúvida há outras maneiras de trabalhar, mas a psicanálise privilegia a palavra. Por isso o analista pede ao paciente que associe.
Qual o objetivo desse método de investigação? A meta é o acesso ao inconsciente, mas a única forma de abordar o inconsciente será através da consciência. E o que fornecerá indícios do inconsciente é o que Freud chamou de “formações do inconsciente”, que são os atos falhos, os sonhos, os chistes, as recordações encobridoras e os sintomas.
Para precisar a estrutura das formações do inconsciente, abordar-se-á uma delas, o chiste. Chiste é uma palavra espanhola, e em português não há nenhuma expressão que a traduza com o significado exato. Em inglês é joke, em alemão Witz, em francês mot d′ esprit (palavra de espírito). Palavras estas que tentam veicular uma sutileza própria à alma humana.
Todo chiste veicula um desejo sexual ou agressivo. O chiste é o que mais se aproxima do objeto de estudo da psicanálise, que era o espirituoso, o criativo, a escuta daquilo que se manifesta sutilmente através da palavra.
No texto " Chiste e suas relações com o inconsciente" [8], Freud relata o seguinte exemplo: Um arrecadador de impostos se apresentava para a sociedade como muito amigo dos ricos. Certa vez, quando quis dizer que era amigo íntimo do Barão de Rothschild e que o Barão o tratava com muita familiaridade, confundiu-se, e em vez de dizer: “Ele me tratou de maneira familiar”, disse: “Ele me tratou de maneira familionária”.
O chistoso neste exemplo é a transgressão lingüistica operada pelo narrador que, ao produzir o equívoco com familiar /milionário, expressa de uma maneira engraçada o seu desejo.



Outro chiste: um indivíduo, ao apresentar um colega numa conferência, deseja ao outro um sucesso “monumentâneo”, em vez de sucesso monumental. Houve a mistura de “monumental” com “momentâneo”, expressando assim a verdade do desejo do sujeito.
A conclusão que Freud tirou da análise dos chistes foi a de que eles são sempre a expressão de um desejo inconsciente. No chiste se diz além do que se queria dizer, produzindo um novo sentido. Há uma bela frase de Freud sobre isso: “Aquele que assim deixa escapar a verdade está feliz em tirar a máscara” [9].
Com o chiste é possível perceber facilmente a primazia do significante sobre o significado, o que quer dizer que a materialidade do significante é anterior às precipitações de sentido feitas pelo sujeito que se apodera do significante. É o sujeito, no entanto, que atribui determinado sentido a um significante. A tese de Lacan é a de que há uma primazia do significante, e o significado é o sentido atribuído por um sujeito, o que ocorre dentro da possibilidade do significante significar alguma coisa.
Foi nesse viés que Lacan retomou a descoberta freudiana introduzindo os conceitos de significante e de significado, que foram retirados da lingüística de Ferdinand de Saussure.
Para Saussure, o signo constitui a combinação de um conceito e de uma imagem acústica, sendo que a imagem acústica não é som material, mas seu traço psíquico. Saussure chamou o conceito de significado e a imagem de significante.





Lacan, porém, ao ler Saussure a partir de Freud, produziu uma notação diferente e modificou a proposta de Saussure para “S” significante e “s” significado.
Houve uma inversão dos termos e a desaparição do paralelismo. Aparecem “S” e “s” como diferentes, assinalando a primazia do significante. Também desapareceu a elipse, que garantia a unidade do signo.
Nesse novo sentido, a barra não indica mais relação, mas separação de ordens diferentes. Lacan denominou de significante o representante da representação – em alemão, Vorstellungsrepräsentanz , e o que Freud chamou Verdrängung (recalque) Lacan assimilou à barra entre o significante e o significado. Ou seja, o recalque é o que, dentro de todas as possibilidades de sentido das combinações da materialidade do significante, só permite produzir “um” sentido.
Pensar o inconsciente como “linguagem” faz supor um código, que é o lugar onde ela adquire sentido. Esse lugar será chamado por Lacan de Outro (com maiúsculo), ou A. No ensino de Lacan, o Outro é o lugar do tesouro dos significantes, o lugar de todas as significações possíveis. O A é o lugar da linguagem, é o que já estava presente antes de o sujeito nascer. É o lugar da garantia da verdade. No caso do chiste, ele sempre inclui uma terceira pessoa, que sancionará aquele dito como verdade, e esse é o lugar do Outro.
O chiste demonstra a estrutura da linguagem, pois sempre que existir linguagem estará implícito o lugar do terceiro, do Outro, e esse é o lugar da palavra. Quando falo estou sempre falando para um Outro, que representa a coerência, a consistência do sentido. Existe, portanto, um interlocutor que está por trás de quem escuta e ao qual falo também. Esse conceito é fundamental no ensino de Lacan, na medida em que ele propõe que o Sujeito se constitui a partir do Outro.
O Eu se forma a partir do semelhante, conforme mostra o gráfico. Lacan posicionou o eixo do Imaginário colocando o Sujeito num outro eixo perpendicular a ele, que é o Simbólico, lugar onde situou o inconsciente, isso porque a constituição do Sujeito parte do Outro e do Eu do semelhante.



Para Lacan o Sujeito se constitui a partir do Outro, que se significa como o lugar da verdade, que preexiste ao Sujeito como linguagem e que é o lugar onde os significantes tomam sentido.
Por exemplo, o nome que uma pessoa recebe ao nascer já tem um sentido dentro de uma cultura, um sentido preestabelecido, logo o sujeito significará seu nome com sentidos que não pertencem a ele. O sujeito será constituído por uma ordem simbólica que lhe é exterior, que já está aí e que lhe é constitutiva.
No esquema abaixo, o vetor D I representa a intencionalidade do sujeito. No exemplo do “familionário”, que Freud tirou de Henrich Heine, a intenção do sujeito era dizer “familiar”, mas disse “familionário”. Foi de um outro lugar que partiu um outro sentido, pois ele quis dizer uma coisa, mas disse outra.




Lacan demonstrou que todo discurso parte do Outro, pois é no Outro, tesouro dos significantes, que invocamos aquilo que queremos enunciar.
No outro gráfico temos, no eixo do Imaginário, : o sujeito que fala se identifica com o Barão de Rothschild. No eixo está o desejo dele, que aparece impresso no enunciado: ele não queria ser tratado familiarmente, queria sim ser milionário como o barão.



O chiste é um exemplo privilegiado para demonstrar a diferença entre o Imaginário e o Simbólico, pois o chiste está para o Simbólico assim como o cômico está para o Imaginário.
O cômico é puro Imaginário. Por que se ri de outra pessoa que cai? O cômico não tem texto, ri-se de macaquices ou de pantomimas. Na verdade, o que produz riso é um gozar da incompletude do outro, é sentir-se superior ao outro por ter adquirido uma coordenação motora que o outro demonstrou não possuir.
Nessa identificação, vê-se o efeito da rivalidade imaginária, e ri-se da desgraça do outro. Uma pessoa escorrega numa casca de banana e cai, e o observador não consegue conter o riso. Riso que é expressão do inconsciente e que coloca em evidência uma tensão, correlativa ao narcisismo, na sua expressão de agressividade.
Em relação ao exposto, Lacan produziu axiomas que resumiriam sua posição: “O desejo do homem é o desejo do Outro.”, “O inconsciente é o discurso do Outro.” “O estatuto do inconsciente é ético e não ôntico.”
Este último axioma demostra a primazia do Simbólico sobre o Imaginário. Ele quer dizer que o estatuto do inconsciente não deve-se à formação do ser nem à psicogênese. Lacan não pretendeu explicar a psicologia humana; ao contrário, em sua posição essencialmente clínica, ele toma o fenômeno tal como é e, a partir daí, constrói sua estrutura, sem se preocupar com sua origem – assim como os lingüistas, que só puderam estabelecer uma estrutura de funcionamento para a linguagem depois que pararam de tentar explicar a sua origem. É exatamente o que Lacan se propõe a fazer com a noção de inconsciente: entender como funciona e não de onde ele vem.
O axioma mais conhecido de Lacan é: “O inconsciente está estruturado como uma linguagem.” Linguagem não é lingüística. Isto quer dizer que a linguagem não está estruturada como oposição fonemática ou morfemática. Linguagem é linguagem; existe até a linguagem das abelhas, existe a linguagem não verbal. A linguagem se articula com a noção de Simbólico como decorrente do conceito de estrutura. Sob essa ótica, a linguagem é a condição do inconsciente. Esta tese é fundamental, e foi aí que Lacan se opôs a todos os outros que o seguiam até esse momento e defendiam o inconsciente como condição da linguagem:
O inconsciente é esse capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser reencontrada; o mais das vezes ela já está escrita em algum lugar. A saber: – nos monumentos: e esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose, onde o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como inscrição que, uma vez recolhida, pode, sem perda grave, ser destruída;
- nos documentos de arquivo também: e são as recordações de minha infância, impenetráveis como eles, quando eu não conheço a proveniência;
- na evolução semântica: e isso responde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, como ao estilo de minha vida e a meu caráter;
- nas tradições também, e mesmo nas lendas que sob uma forma heroicizada veiculam minha história;
- nos rastros, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções, necessitadas pela emenda do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram e das quais minha exegese restabelecerá o sentido.” [10].
É uma noção de inconsciente modificada, que se sustenta em Freud mas que adquiriu uma leitura precisa em Lacan. Essa precisão atinge um ponto tal que a noção de inconsciente mostra também que ele não está sempre presente, ou seja, ele se manifesta em ato na fala. Lacan nomeou à possibilidade do inconsciente manifestar-se de "palavra plena" e à ausência de uma determinação inconsciente se manifestando na consciência de "palavra vazia". A palavra plena surge quando determinados significantes produzem o efeito de impor uma intercalação de outros sentidos para o discurso do analisando. O que seria consequência de que, em alguns momentos da fala, o eixo do Simbólico encontra-se com o eixo Imaginário, e produz a emergência do inconsciente. Na palavra plena o ser se expressa em sua totalidade, e é só nesse momento que entrará em cena a dimensão inconsciente do sujeito.
Posteriormente, isso será articulado por Lacan com a conceituação de abertura e fechamento do inconsciente. Lacan irá justificar a atuação do analista, principalmente a prática das “sessões curtas”, possibilidade de atuar na abertura e fechamento do inconsciente, relacionando essas manifestações com a transferência.
Por isso ele afirmou que o inconsciente é um conceito forjado sobre o rastro do que opera para constituir o Sujeito. O conceito de Sujeito foi para primeiro plano, superando o de inconsciente. O conceito de inconsciente se tornará quase secundário em relação ao da constituição do Sujeito.
Este foi o um momento do ensino de Lacan, em que ele acentuou a ruptura epistemológica feita por Freud, demonstrando que a psicanálise não é psicologia, na medida em que não existe um centro do Sujeito. Até então a palavra “sujeito”, oriunda da filosofia, indicava a sede do ser, o lugar da totalização do saber da pessoa. Muitas práticas psicoteurapêuticas, mesmo as ditas psicanalíticas, visariam a “integração” do sujeito, completá-lo, torná-lo uno, fazê-lo encontrar-se consigo mesmo. Em seu retorno a Freud, Lacan mostra que isso é contrário à proposta do que vem a ser o inconsciente para Freud. O Sujeito do inconsciente é radicalmente descentrado e nunca pode ser integrado a um suposto centro.
A proposta da psicoterapia é questionada pela psicanálise, porque se na psicoterapia se busca a complementação do sujeito pelo objeto, esta proposta, para a psicanálise, seria impossível.


A Ética e as diferentes psicanálises
Por que Lacan afirmou categoricamente que a única leitura compatível com o espírito da obra de Freud era a dele? Porque para Lacan a psicanálise é uma questão ética. Aliás, Lacan considerou sua contribuição neste campo como a mais importante que fez dentro da psicanálise, dando a entender que, se alguma coisa sua permanecesse no futuro, seria justamente o que propôs em relação à ética.
Segundo Lacan, com a descoberta da psicanálise, Freud teria rompido com a ética assumida socialmente no seu tempo e que ainda é a mesma que rege a ideologia dominante, a ética chamada de utilitarista.
O utilitarismo é uma corrente filosófica surgida no século XIX, na Inglaterra, que identifica o Bem com o bem-estar. Com ela o profissional das áreas humanas, principalmente da área da saúde – e mesmo os psicanalistas –, pode se autorizar a intervir na subjetividade de uma pessoa produzindo uma retificação que visa a restituir a norma e a atuar sempre que houver desarmonia em relação a esta.
Então, se um sujeito causar qualquer dano a si mesmo (se um paciente no hospital se cortar com um vidro, por exemplo), este será um ato contrário ao seu bem-estar. Nesse caso, a conduta do profissional resultará, antes de tudo, da suposição de que o Bem para esse sujeito é seu bem-estar. Lacan enfatizou que era exatamente esse tipo de atitude que a psicanálise freudiana subverteu.
Esse ponto nos remete à última etapa da produção freudiana, em que se encontram os conceitos de Masoquismo primário, Superego e Pulsão de morte, conceitos que impõem uma radical dissociação entre o Bem do sujeito e seu bem-estar.
Se o psicanalista visa fazer coincidir o Bem do paciente com seu bem-estar, ele estará dentro de uma ideologia que não seria a psicanalítica. Estaria rompendo com a ética da psicanálise e utilizaria de recursos que não são coerentes com a proposta freudiana, exatamente como a “psicologia do Ego” fazia, ao identificar o Bem do sujeito com o seu bem-estar, que era representado pelo “Ego forte”, do qual o analista constituía o modelo. Então, a finalidade de uma terapia assim praticada era adaptativa, porque consistia na adequação a parâmetros fixados dentro de uma norma social dominante.
No texto de Lacan “Kant com Sade” [11], encontra-se o desenvolvimento desta questão. Uma forma de lê-lo é traduzi-lo como “Freud com Klein”, em que a problemática discutida seria o uso que o analista faz do imperativo categórico “não”, que representa a função do Super-Eu em Freud, e que nesta fórmula estaria contraposto ao naturalismo do desejo, que seria a maneira de se compreender a posição de Melanie Klein.
Tal qual Melanie Klein, Sade também defende um “sujeito constituído de entrada”, ou seja, um sujeito que não poderia deixar de ceder às próprias vontades, não poderia deixar de dar vazão a seus desejos naturais. Podemos estabelecer o paralelo: Kant com Sade (imperativo categórico) e Freud com Klein (naturalismo do desejo).
Na reunião anterior foi introduzida a noção de sentido para tentar mostrar o conceito de inconsciente estruturado como linguagem, e se falou em significante e significado. A psicanálise é um fato de linguagem e, como não podemos escapar disso, estaremos sempre nos dois eixos: no do significante e no do significado.
Uma forma de enunciar o inconsciente é pensá-lo como efeito da impossibilidade de um significante produzir significados diferentes, e à barra que os separa – que é o que determina a significação – como sendo o recalque.
Para a compreensão do conceito de inconsciente foi utilizado o exemplo do chiste. No entanto, os chistes freudianos já não produzem muito efeito, sugerindo que a linguagem não é estática, que ela evolui. E se o inconsciente é estruturado como linguagem, creio que seja óbvio deduzir que ele também evolui, que ele também não é estático?
O próprio Freud havia constatado esse fato. Por isso, na introdução de “Além do princípio do prazer” [12] descreveu a evolução da técnica analítica dizendo que, num primeiro momento, bastava interpretar os pacientes, como uma espécie de oráculo, para que eles se curassem; depois, num segundo momento, isso já não acontecia mais. Foi então que, com a introdução da noção de resistência, Freud pôde fazer evoluir a técnica analítica. Não poderia ser de outra maneira, pois se o inconsciente evolui, a técnica deve acompanhá-lo.
Outra forma de abordar esse fato é por meio da psicopatologia. A descrição da histeria na época de Freud não é idêntica à atual. Se verificarmos os textos de Freud ou os de Charcot e observarmos as descrições dos casos de histeria, descobriremos que raramente elas são encontradas na prática clínica atual.
Isso se dá porque esses sintomas mudaram. Na época de Freud, os casos de histeria eram descritos como semelhantes à epilepsia, do tipo grande mal, com crises de convulsão. Poderíamos entender que a apresentação da convulsão na histeria, que era uma característica da histeria na época, ocorresse talvez pelo fato de Charcot juntar no mesmo pavilhão, os histéricos e os pacientes neurológicos, havendo uma identificação dos histéricos aos epilépticos, o que introduz a questão do sentido do sintoma e sua relação com a “linguagem”, mesmo que a convulsiva.
Ao apontar a existência de “leituras” diferentes de Freud, o que se faz é constatar a existência de “sentidos” diferentes possíveis na interpretação de um mesmo texto. A obra de Lacan, da mesma forma, pode receber diferentes “sentidos”, diferentes interpretações.
Para a obra de Lacan, estas diferentes interpretações ocorrem em função dos pontos de ressignificação que se atribuam a ela. É assim com o uso feito da topologia por Lacan, particularmente o uso do nó Borromeano, onde a vantagem do uso desse modelo está no fato de que permite estabelecer pontos de interseção, o que possibilitou articular o Imaginário com o Simbólico, o Imaginário com o Real e o Real com o Simbólico, o que era difícil utilizando-se os modelos anteriores.
É importante ter em mente que os modelos não são coisas em si; eles apenas servem para pensar, por isso são instrumentos da clínica e devem ser usados na medida em que forem úteis.



O Lacan mais divulgado – e também o mais criticado –, é o do inconsciente estruturado como linguagem, do inconsciente explicado como uma combinatória de significantes.
Outro aspecto da teoria de Lacan é o do inconsciente entendido como Lei, que supõe uma leitura de um momento da teoria de Freud, em que ele introduz a segunda tópica, a pulsão de morte, o masoquismo primário e o Super-Eu, que são aspectos da teoria de Freud, abandonados pela maioria de seus seguidores e retomados por Melanie Klein e Lacan.
Os lacanianos são vistos como racionalistas e suas reflexões sobre a clínica analítica como metafísicas. Em algum momento foi assim para mim também, mas repensando e dando sentido à minha história, tive maior clareza do meu percurso. Comecei fazendo psiquiatria, quase fiz neurocirurgia, porque queria colocar a mão no cérebro, vê-lo por dentro. Gradativamente, fui metaforizando, passando para outros planos e em nenhum instante a prática lacaniana me pareceu racionalista e metafísica: firmo, aliás, a opinião de que ela é uma reflexão que privilegia a clínica.
A psicanálise nunca pode ser posta em ato diante do público, mas o inconsciente sim. Ele é posto em ato diante do público, quer queiramos ou não. Quando, por exemplo, comete-se um ato falho, se evidência a prevalência do Outro, pois o Outro, que constitui todos os discursos, às vezes emerge. Pode-se ter um pensamento consciente, mas algo do Outro se impõe na fala, e aparecerão manifestações do inconsciente que serão fugazes e efêmeras.
Vou propor um vetor representando a minha fala. Eu falo e vocês escutam, só que o que vocês escutam está num vetor em sentido contrário ao da minha fala.



É a partir do que eu disse que, depois, se dará um sentido às minhas palavras. O sentido não é linear, pois enquanto estou falando nem sempre se sabe o que estou dizendo. Quando faço escansões, quando corto frases, quando passo de um tema a outro é que se produz um “sentido”. Quem dá o “sentido” do que falo é quem me escuta. Transponham isso para uma situação analítica, que é a mesma: a de um sujeito falando a um outro que o escuta, também dá um “sentido” para o que escuta.
O que o analista faz? Ele dá um outro “sentido” ao que o paciente diz. É o que chamamos de interpretação. Essa é a ação do analista.
Entre o analista e analisante está o Outro, que vai dar coerência ao que se fala. A coerência aqui é a linguagem que compõe a teoria analítica. Se chegar uma pessoa que nunca ouviu falar em psicanálise, poderá achar que estamos loucos, falando coisas que não se entende.
Para Lacan, discurso é o que faz laço social. Se a uma fala há resposta, trata-se de discurso. Nem sequer precisa haver resposta, basta que se escute. A situação analítica é um fato discursivo, pois o paciente estabelece um laço com o analista por meio de seu discurso – que, aliás, pode ser silencioso.
O sentido comum surge como parâmetro, como o que dá coerência ao discurso, e aqui é o que chamamos de teoria psicanalitica. O que permite o estabelecimento de um discurso é a articulação dos significantes. Isso quer dizer que para cada pessoa o sentido que ela dá ao mundo, o sentido que ela dá à existência, o sentido comum, decorre sempre da combinatória dos significantes.
Chamaremos essa estrutura mínima, particular a cada um, de “armação significante”:



Essa “armação significante” mínima constitutiva sempre um discurso. Cada ato de significação se sustenta nesta estrutura, que é a estrutura da significação, em que o “querer dizer” é o sentido produzido na tentativa da realização dos desejos veiculados nas palavras.
Como articular o sentido, que é essa verdade de cada sujeito, com um saber que tenha valor para todos, que é o saber compartilhado socialmente?
Para estabelecer a relação do particular com o universal – entre o que uma pessoa particular quer, e o que todos querem –, está o fundamento da psicanálise que é a articulação entre o desejo e a Lei.
A verdade de cada um, o particular, é o que a psicanálise nomeia como desejo; o saber de todos, o universal, ela chama de Lei.
O que produz essa articulação é a armação significante mínima descrita acima, pois o que significa só um desejo não pode significar o desejo de todos. Assim, para, um determinado sujeito uma frase terá só um sentido e não todos os sentidos possíveis.
E como se constrói a “armação significante mínima” que regula o sentido do mundo para cada um? Ela existe desde o início ou se constitui, no desenvolvimento psicossexual da criança? Se ela existisse desde o início, seria instintiva. Foi justamente essa posição que Freud combateu, e penso que em alguns momentos Melanie Klein tomou vertente oposta, acreditando que a coerência e a constituição de mundo de cada sujeito existiriam desde o início.
O sentido que Lacan deu à obra de Freud pretendeu demonstrar que a linguagem não existe desde o princípio. Pois, para a psicanálise, o que estruturará o acesso do Sujeito à linguagem, que é o que sustentará a coerência do mundo de cada um e seu sentimento de realidade, é formado por um operador que recebeu o nome na psicanálise de “Complexo de Édipo”.
O Complexo de Édipo é o que permite dar conta da constituição da armação significante mínima. O Complexo de Édipo é um operador, que articula o desejo à Lei.


Édipos e as diferentes psicanálises
Lacan acreditava que o mito de Édipo poderia articular a essência da psicanálise, mas não suficientemente. Todo seu esforço nos últimos anos foi dar conta da estruturação do Sujeito com outros recursos que não esse mito.
Em sua releitura de Freud, Lacan enfatizou que a descoberta freudiana foi a de que a realidade do inconsciente tem um sentido, uma orientação, uma direção. É esse sentido que o analista irá interpretar, e esse sentido se estrutura pelo Complexo de Édipo, pois se Freud privilegiou a função paterna, Lacan fez dela o princípio da constituição da realidade do inconsciente.
O Édipo é um mito. Conhecemos a versão de Sófocles, Édipo Rei, que não é a única versão desse mito. Existem muitas outras, contemporâneas ao próprio Sófocles, como a de Ésquilo e a de Eurípedes. O fato de essas versões diferirem umas das outras é muito importante para o analista.
A primeira necessidade será definir o que é mito. Para isso, utilizaremos Lévi-Strauss e os recursos da antropologia estrutural. O mito ocorre em todas as culturas, ao passo que a lenda só em determinadas regiões. Os mitos são sempre épicos, grandiosos, com heróis, deuses, e metaforizam aspectos da estrutura do psiquismo humano.
Lacan define o mito como: “o que dá forma épica ao que opera na estrutura” [13]. Ou seja se a estrutura é linguagem, o homem fala disso de forma épica.
Por isto nas diferentes versões do mito de Édipo, as questões relacionadas à ideologia e à moral apresentam abordagens distintas (talvez até pudéssemos encarar as várias leituras da psicanálise contemporânea como mitos e, por isso, também prenhes de desvios ideológicos e morais). Jocasta, por exemplo, não se suicida em algumas versões do mito de Édipo, mas na grega sim. Isso se deve à moral dos gregos, para quem uma mulher que dormisse com o filho mereceria a morte e para que a versão de Sófocles produzisse catarse, era necessário uma punição à “criminosa”. A punição, no entanto, não é um fato estrutural do mito, pois em outras versões Jocasta sairá da história sem nenhum castigo. Há um outro fato ligado à moral grega: a atitude de Édipo de arrancar os próprios olhos, mitema que não se encontra em outras versões.
De qualquer modo há certas invariantes que aparecem em todas as versões do mito. De uma forma sucinta, a história de Édipo é a seguinte: Um oráculo, de nome Tirésias, predisse ao rei de Tebas e à sua rainha que um dia o filho deles mataria o pai e se casaria com a própria mãe. A fim de se prevenir contra tal situação, o casal de soberanos abandonou o filho ainda criança num determinado local, para que ela morresse. A criança foi atada pelos pés, e por isso Édipo cresceu com um defeito neles (Édipo significa "pés inchados”, o que constitui um mitema, ou seja, em todas as versões do mito, Édipo apresenta um defeito nos pés). O menino, porém, foi encontrado por um pastor e levado a um rei, que o adotou. Permaneceu com ele até crescer e, certo dia, devido à predição de outro oráculo,de que mataria o pai, deixou o lar em que vivera até então e saiu em busca de seu destino.
Ao passar por uma encruzilhada, casualmente encontrou um homem e com ele teve um desentendimento. Após o incidente, Édipo matou o desconhecido – sem saber que se tratava de seu pai – e seguiu para Tebas.
Antes de chegar, Édipo encontrou uma esfinge que assolava Tebas com uma peste. Se algum viajante conseguisse decifrar o enigma proposto por ela, a cidade seria salva; caso contrário, a esfinge o devoraria. Édipo então se propôs a decifrar o enigma: “Quem de manhã anda com quatro pés, ao meio-dia com dois, e à noite com três?” Ao que Édipo respondeu: “É o homem.” Assim, ele decifrou o enigma e salvou a cidade da peste. Em troca, a rainha lhe foi oferecida em casamento. A rainha era sua mãe, esposa de Laio, a quem Édipo havia matado na encruzilhada. Sem ter conhecimento disso, ele desposou-a. Após algum tempo a cidade foi novamente assolada por uma peste, até que se descobriu que ele era o culpado de tal castigo. Jocasta então se matou, e Édipo, depois de arrancar os próprios olhos, foi embora guiado por sua filha Antígona.
Freud usou essa história para dar um sentido ao que descobrira com a psicanálise. Antes de retornar a isso, gostaria de perguntar por que ele tomou o mito de Édipo e não outro, e o que essa história tem a ver com o que Freud queria demonstrar.
O que acontece nesse drama é que Édipo em momento algum tem intencionalidade em suas ações. Ele mata o pai e casa com a mãe sem o saber, e quando descobre o que fez, arranca os próprios olhos. Édipo é o drama da sobredeterminação, mostra o fato do sujeito ser constituído a partir do Outro, o fato de o indivíduo ser mero joguete do destino. É o que Freud apontava com esse mito: que o sujeito não é dono de seu próprio destino, pois algo trama o destino de uma pessoa sem que ela participe, e o drama de Édipo mostra isso de uma forma radical. A originalidade de Freud esteve em encontrar uma produção do espírito humano adequada ao que ele queria demonstrar.
Esboçarei a interpretação de Lévi-Strauss, criador da antropologia estrutural. Para Lévi-Strauss um mito é sempre um fato de linguagem, porque só sabemos dos mitos pelas palavras. Então o mito de Édipo ou qualquer outro mito será sempre um fato de linguagem, assim como o discurso de uma pessoa ou de um analisante.
Numa reunião de várias versões de um mesmo mito, Lévi-Strauss isolou as variantes que ele caracterizou como sendo o constitutivo desse mito. A esses elementos ele chamou de mitemas, que no caso do mito de Édipo, ou em qualquer outro mito, podem sempre ser reduzidos a quatro termos, que se opõem dois a dois:



A interpretação de Lévi-Strauss postula que Édipo é um mito sobre a origem do homem, uma resposta para a questão de o homem ser produto da fermentação do húmus ou ter origem cósmica, se é um espírito procedente dos deuses ou uma evolução da matéria bruta.
A antropologia estrutural , ao pensar o mito de Édipo como linguagem, o deduz estruturado pela contraposição de pares de mitemas opostos. Sua conclusão é que se trata de um mito ligado à terra, um mito que tenta elaborar a origem do homem. Nesse a cultura que se perguntou sobre sua própria origem e encontrou nele uma forma de contrapor possibilidades.
Como Freud entendia os mitos? Ele diz que os mitos são produzidos pela repetição dos sonhos típicos. Os mitos, antes de serem mitos, eram sonhos, que por serem também "dramatizações do que se opera na estrutura" envolviam a todos na sua comunicação. Para Freud o fato de haver uma estrutura comum no psiquismo do homem é o que produz sonhos em comum, os quais pelo relato repetitivo, se transformam em lendas e mitos.
Em Freud há três momentos em relação ao Édipo. Num primeiro momento, o Édipo foi pensado em relação à sexualidade. A primeira menção que Freud fez a Édipo foi numa carta enviada a Fliess, em 15 de outubro de 1897 – data considerada como marco inicial da psicanálise, pois seria o momento em que se fazia a passagem da teoria traumática das histerias para a sua determinação pelas fantasias.
Nessa segunda teoria, a pessoa histérica não o seria por ter sofrido um trauma real, e sim porque as fantasias, que existem em todos os sujeitos, foram traumáticas para ela. Freud começou contando a Fliess o espanto que teve ao descobrir em si próprio as mesmas fantasias encontradas nos pacientes, dizendo que elas eram como as que se encontravam no texto de Sófocles, Édipo Rei, e pôs-se a relatar a história, identificando-se com o personagem.
Freud começou citando Édipo Rei e terminou com Hamlet, pois a estrutura das duas peças é quase a mesma. Freud se referiu ao Édipo também na “Interpretação dos sonhos” [14], no capítulo intitulado “Morte dos entes queridos”. E, nessa época, o Complexo de Édipo foi explicado a partir da relação mãe-filho, ou melhor, a partir da dependência vital da criança em relação à mãe, contraposta à sua dependência de amor. A criança precisa comer, mas se berrar de fome a mãe não vai gostar dela. Há então uma contraposição, que Freud pensará em termos de princípio de prazer e impossibilidade de descarga, que vai opor o prazer à realidade. Poderia-se entender que o princípio de realidade, nesse momento, seria a função paterna, seria o que se opõe à satisfação absoluta do desejo. Depois, o Complexo de Édipo foi pensado por Freud em termos de identificação, o que foi desenvolvido bem mais tarde em “Psicologia dos grupos e a análise do Ego” [15], capítulo VII, e no texto “O Ego e o Id” [16], no capítulo III.
Nesses textos, a saída do Complexo de Édipo será pensado em termos de “solução”, que é a criança ser como o pai para ter a mãe, ou ser como a mãe para ficar com o pai. É o Complexo de Édipo passivo e ativo, nova combinatória proposta por Freud, a partir da qual será articulado o Superego – tido como herdeiro do Complexo de Édipo.
Num terceiro momento, o Édipo foi pensado por Freud em termos de falo e castração. Os textos que se referem a esse momento são: “Organização genital infantil da libido” [17], de 1923, “Dissolução do Complexo de Édipo” [18], de 1924, “Algumas conseqüências psíquicas da diferença sexual anatômica” [19] de 1925, “Sexualidade feminina” [20], de 1931 e “Feminilidade” [21], de 1933.
Referindo-se a esses textos, Lacan mostrou que a noção de "falo" ressignificou toda a obra de Freud, dizendo que é a partir dessa noção que se deve ler Freud, pois com o conceito de falo ela passou a ter outro sentido.
Nesse ponto há uma diferença radical entre a leitura de Lacan e a de Melanie Klein. Para esta última, a identidade sexual já é conhecida de antemão, a criança já nasce masculina ou feminina e demonstra seu conhecimento da própria sexualidade nos jogos infantis.
Lacan afirma que esta não seria a proposta freudiana, pois no texto “Organização genital infantil” Freud mudou todo o anterior. Freud neste texto, começa dizendo que, depois de decênios de prática, não podia deixar de constatar fatos que se impunham à sua observação. O que ele constatou foi que, para todas as crianças, existe um sexo só, o masculino. Segundo as próprias palavras de Freud, “o sujeito infantil não admite senão um só órgão genital, o masculino, para ambos os sexos”, e é a isso que Freud irá chamar de falo.


Função paterna, Nome-do-Pai e metáfora paterna
O primeiro momento do Édipo corresponde a uma ênfase na função materna, que é a relação de dependência vital da criança em relação ao outro. A pessoa que responde a essa dependência vital ocupará o lugar da função materna, podendo ou não ser a mãe biológica.
Para a mãe, o nascimento do filho é um acontecimento sensível, uma vez que é constatável pelos órgãos dos sentidos. Isso já não acontece com o pai. Nenhum pai sabe ao certo que é o pai da criança, ele apenas o deduz, porque dentro da nossa cultura, o vínculo entre coito e fecundação está estabelecido.
Em muitas sociedades esse vínculo não existe. Há culturas indígenas que acreditam que as mulheres engravidam pelo vento, pela ação dos deuses, nesse caso não fica estabelecida a relação coito-fecundação. O pai portanto não implica em uma relação natural como a mãe, o pai é sempre deduzido.
O pai Real pode ser chamado de “macho-copulador”. Certamente é preciso que haja a cópula para que exista o pai, mas esse não será o pai que opera no Simbólico. A função paterna não tem de ser necessariamente exercida por quem fecundou a mãe. O pai para a mãe, é quem ela reconhece como importante para ela, é quem ela nomeia como seu objeto de desejo.
O pai Simbólico, é um pai sustentado num reconhecimento, que só pode ser dado pela palavra. Não há nenhuma outra forma de se instituir uma paternidade que não seja pela palavra. Mesmo as provas de tipagem de sangue ou DNA, são códigos de linguagem, usados para se provar no Simbólico que o pai é Real.
Há portanto outras funções do pai, e são essas que Lacan retira do texto de Freud. Há o pai do pai, que dentro da linguagem é o avô. Um dos efeitos da ordem simbólica é que, quando o filho se torna pai, o pai do pai é elevado a avô, sem ter a mínima participação nisso. Trata-se de um efeito do Simbólico. Está implícito na ordem Simbólica que ocupemos certos lugares, independentemente de uma decisão.
Mas o pai do pai implica também o pai do pai do pai, e assim por diante, infinitamente, até chegarmos ao pai de todos: o pai origem da espécie. Freud chamou-o de Urvater, o pai primordial, o pai da horda primitiva. Ele é aquele pai que não precisa de um pai. Em termos de Lei, esse é o pai origem da Lei, o pai incastrado. É esse pai que Lacan foi buscar em Freud, para dizer que ele armou toda a noção de Édipo sobre a função paterna. Esse é o pai que dá um sentido.
Vocês estão aqui porque estou falando não da minha psicanálise, mas da de Lacan. O que quero dizer é que a paternidade não se dá só em termos físicos, biológicos, mas se dá também em termos de idéias, pois existe um pai da psicanálise, que é Freud.
Se Freud estivesse aqui, não precisaria citar ninguém para se autorizar, porque ele inventou a psicanálise. Já Lacan sustenta-se em Freud, pois as teorias também têm paternidade, e essa paternidade estabelece uma relação de parentesco, fundada na ordem simbólica.
Poderíamos metaforizar Lacan e Melanie Klein como filhos de Freud; Nós seríamos netos dele, filhos de Lacan ou de Klein. Então, dentro dessa filiação seríamos irmãos. Haveria os irmãos mais velhos e os mais novos, fazendo existir uma ordem de parentesco estruturada sobre um pacto que só existe no Simbólico.
O Simbólico permeia nossas vidas sem que possamos nos dar conta e estabelece rivalidades imaginárias (que Freud descreveu no Totem e Tabu), que são as brigas dos filhos para ocupar o lugar do pai. A história da psicanálise também pode ser enquadrada como em exemplo desse fato.
O primeiro pai, o pai da horda primitiva, será o único que pode existir sem fazer referência a nenhum outro, pois existirá por si. Como origem da Lei, ele Impede que a mãe seja “Tudo” para a criança, fato que acontecerá discursivamente, numa referência à Lei dentro do discurso materno.
É freqüente encontrar-se citações de casos de mães esquizofrenógenas, que são aquelas que se colocam como “Toda” para a criança, não havendo nenhuma Lei fora delas. É o caso da mãe que dizia para a criança: “Ou você faz o que quero, ou não gosto mais de você; ficarei com raiva, não te darei mais o que você quer, não vou querer mais você. Você deve fazer o que digo, porque eu sei o que é bom para você”. Essa seria a mãe fálica. Ela será a Lei para a criança e é quem dirá à criança o que é bom para ela. É ela quem dirá o que falta à criança e sempre terá o que lhe falta.
O Nome-do-Pai não será o pai biológico, mas aquele que a mãe faz referência em seu discurso. Até esse momento a mãe era identificada ao Outro, e na medida em que ela também fizer referência a um Outro além dela, ela se tornará um outro, i(a), que também é submetido à falta. Então, quando houver um Outro para a mãe é que se dará a instauração da Lei no discurso materno.
Um exemplo: uma mãe vai colocar a criança para dormir. Se ela for uma mãe fálica, uma mãe que em decorrência de seu próprio Édipo não se refere à Lei, dirá à criança: “Você vai dormir porque, se não for, não terá nada, e ficarei brava.” Esta ameaça feita em termos de “Tudo ou Nada” faz a criança responder ao desejo da mãe, caso contrário será aniquilada.
Outra situação seria a mãe falar: “Ou você vai dormir, ou o bicho-papão virá te comer, pois ele come crianças que não dormem.” Essa mãe faz referência a algo externo a ela, ao “bicho-papão”, que comeria crianças que não dormem. Nesta situação independeria da mãe o bicho-papão ir ou não comer a criança, pois se trata de uma Lei que funciona independentemente do desejo dela.
Nesse caso houve referência da mãe a uma Lei exterior, uma Lei sobre a qual ela não tem domínio. Nesse sentido, a mãe deixou de ser “Toda” e passou a ser castrada, pois ela também se mostrou incompleta, necessitando de algo exterior, e teve que se submeter a um fator que não dependeu de seu desejo.
Essa foi a leitura que Lacan fez da castração materna, que então seria a referência, no discurso da mãe, a uma Lei exterior a ela. A esse pai que aparece no discurso da mãe, Lacan chamou de Nome-do-Pai. O bicho-papão, por exemplo, é um dos Nomes-do-Pai. A nossa cultura está cheia de referências a ele: o lobo do conto do Chapeuzinho Vermelho, o Saci, a Cuca etc. Há várias figuras folclóricas que o representam e cada país ou região possui as suas.
O que é o Nome-do-Pai para Lacan? É, o representante da Lei que atua na subjetividade da criança, inscrevendo-o como significante. Ele é, assim, o significante do Outro, portanto, o lugar da Lei; não é o pai Real, é um significante. Na teoria, o Nome-do-Pai é o que articula a função fálica com o complexo de castração. A mãe não é “Toda”: essa seria a castração na leitura lacaniana.
Resumindo, num primeiro tempo a mãe é “Tudo” e “Toda”, ela é o Outro da criança, e o Nome-do-Pai é o que barra esse Outro absoluto. Foi dessa conclusão que Lacan retirou a fórmula da castração: .
Pode-se desenvolver toda a clínica a partir do conceito de castração, que pode ser entendido dentro de uma redução radical, formalizado como o significante da falta no Outro.
O segundo momento do Édipo será o que Lacan denominou de metáfora paterna. A metáfora paterna é a operação de substituição, no código, do desejo da mãe pelo Nome-do-Pai, o que produz a significação fálica – que é o que estou perseguindo: como se produz a significação, o sentido. Ela é uma forma de Lacan escrever o Complexo de Édipo, e dentro dele a metáfora paterna será uma operação de substituição.
Metáfora é uma figura de linguagem, que Lacan eleva, partindo de Jacobson, à condição de um dos eixos estruturantes do inconsciente. Para Freud esses eixos eram o deslocamento e a condensação. Lacan os equiparou à descoberta de Saussure sobre os eixos constituintes da linguagem que seriam o sintagma e o paradigma. Lacan pensou-os em termos de metonímia e metáfora, respectivamente.
Na lingüística, a metáfora e a metonímia foram pensadas em função do sentido. Lacan recorreu a essa conceituação equiparando a metáfora ao processo de condensação, tal como foi descrito por Freud, e a metonímia ao processo de deslocamento.
Idéia que ressalta o fato de Freud ter se adiantado às fórmulas da lingüística, mas sem contar com elas. Lacan, que foi leitor de Freud e de Saussure, pôde precisar o descobrimento de Freud e dizer o que Freud disse sem saber. Lacan propôs para a metonímia a seguinte fórmula:



Esta fórmula indica que a função significante da conexão do significante com o significante é congruente com a manutenção da barra, o que quer dizer que não há um sentido novo.
A fórmula da metáfora é:



 
Ela quer dizer que a função significante (f S) de substituição do significante pelo significante é congruente com a transposição da barra, isto é, há um sentido novo. Como figura de linguagem a metáfora seria, por exemplo, em vez de dizer “fulano é muito forte”, digo “fulano é um leão”. Aqui ninguém se assustaria com o “leão” – o que seria uma reação psicótica – porque consegue-se metaforizar –, já que foi estabelecido um outro sentido para essa palavra. “Leão” já não seria exatamente “leão”, mas outra coisa. Pode-se pensar a operação da metafora da seguinte maneira:



Leão, em relação a homem, produzirá uma outra significação, homem forte – que, substituída, desaparecerá. O que surgiu foi um outro significado para o sujeito. Houve um plus de significação, que configura a metáfora. Se digo “Chico é um leão”, será um leão diferente, a partir da significação de homem forte.
Lacan, com a fórmula seguinte, pretendeu formalizar o Édipo como uma metáfora:



Isso quer dizer: o Nome-do-Pai está para o “desejo da mãe”, que é a função materna, produzindo uma significação ao sujeito (SS).
Metáfora paterna será, então, a substituição, no código (o Outro), do desejo da mãe pelo Nome-do-Pai. É assim que o Nome-do-Pai opera, produzindo uma significação para o sujeito, que é uma significação fálica.
Este é o mesmo falo que lemos em Freud, porém aqui pensado de forma lógica, ou seja, deduzido. Para Lacan, o falo é um significante, porque, ao fazer uma operação de substituição significante, o falo será o significante da falta.
Antes a mãe era “Toda” e, a partir do Nome-do-Pai, ela será “não-Toda”. Mas o que o Nome-do-Pai barrou como Lei da mãe continuará significando o Nome-do-Pai.
Esta foi a fórmula com a qual Lacan pensou o Complexo de Édipo; ele propôs que é assim que se dá a entrada do sujeito no Simbólico, o que produz a significação.
Voltando ao gráfico que está nos orientando, mostraremos que “falar” poderia significar "qualquer coisa” se não produzisse um retorno, e as pala­vras poderiam ter infinitas significações. Se não se escandisse a potencialidade significativa do significante, não haveria uma significação possível. Se não tivéssemos um ponto de consenso comum, de coerência, de apoio, não haveria possibilidade de vinculação entre as pessoas. Se no entanto isso ocorre, é porque a estrutura do significante permite produzir uma significação, ou seja, algo barra a possibilidade de haver infinitas significações. Esse algo que barra é o significante do Nome-do-Pai.



Por isso toda significação é fálica. Ao se dar um sentido a uma fala, ele será sempre um sentido particular à estrutura psíquica de quem o faz. Mas esse sentido não será qualquer um: será o sentido que, dentro da estrutura edípica de cada um, servirá para nomear a falta, ou seja, o sentido da procura do absoluto, de uma significação sustentada num modelo de completude.
Outra forma de entender-se a função paterna é abordá-la com a noção de Super-Eu. Freud formalizou o Super-Eu a partir de pronomes pessoais; não falou em Ego, Id ou Superego, que são latinizações. Freud criou a “segunda tópica” a partir dos pronomes pessoais.
Ele propôs que pensássemos no Eu, e foi a partir dele que se deduziu o Super-Eu e o Isso. Ao Super-Eu foram atribuídas as funções de auto-observação, consciência moral e idealização, e Freud instituiu o Super-Eu como o herdeiro do Complexo de Édipo.
Retomando com Lacan essa reformulação, e sabendo que ele retomou o sentido da obra de Freud, qual então o lugar do Super-Eu? O Super-Eu é o que permite entender por que damos um determinado sentido a um significante.
Aliás, todo o desenvolvimento de Lacan foi uma posta em ato desses princípios. Ele o demonstrou desde o Caso Aimée, a funcionária de banco que atacou uma atriz porque se identificava com ela. Naquele momento, Lacan estava indagando as razões do crime paranóico e colocou então a ênfase no ato criminoso. No entanto, quando mudou da psiquiatria para a psicanálise, deduziu que o que curou Aimée foi o castigo: na hora em que foi presa, curou-se.
Lacan então produziu um aforismo: “a natureza da cura demonstra a natureza da enfermidade”. Se foi o castigo que curou Aimée, foi o desejo de punição que a deixou doente. Ao relacionar castigo com as funções do Super-Eu, Lacan propôs que as funções do Super-Eu explicariam as razões do crime paranóico.
Foi o que fez Lacan abordar a obra de Freud desde o conceito de masoquismo primário, de Super-Eu e de pulsão de morte – noções que subverteram a ética utilitarista, que identificava o Bem do sujeito ao seu bem-estar.
Neste sentido, seria possível analisar sem se preocupar sua inserção social do paciente após a cura analítica. No caso da homossexualidade, por exemplo, mesmo que não fosse aceita socialmente, se ela significasse o Bem do paciente, a análise interpretaria este desejo sem preocupar-se em adaptar o paciente às necessidades sociais.


De Viena à Paris: a ressignificação do inconsciente
Também em 1960, o psiquiatra H. Ey realizou colóquio em Bonneval, dedicado ao inconsciente. No primeiro dia, Ey fez uma abordagem do inconsciente aproximando-se da questão pelo fato do inconsciente ser “desconhecido” para a consciência, reduzindo o inconsciente ao “fora do conhecimento”.
Dando seqüência às exposições que retratavam as várias acepções que esta noção recebia na época, Ey foi seguido na sua fala por A. Green que, dentro do tema dedicado às “pulsões e o inconsciente”, habilmente recortou a relação, candente então, do inconsciente com a neurobiologia.
No segundo dia, dedicado à “relação do inconsciente com a linguagem”, foi a vez de Laplanche falar. Ele apresentou, em parceria com Leclaire, um trabalho com o título: “O inconsciente: um estudo psicanalítico” [31]. Por se tratar de um aluno de Lacan, e por ser o dia dedicado à relação do inconsciente com a linguagem, esperava-se desta exposição, posicionada desde o “retorno a Freud” pregado pelo ensino de Lacan, que se abandonasse de uma vez por todas a compreensão biologizante do inconsciente.
No entanto, Laplanche e Leclaire, no texto apresentado, tomaram uma posição que os colocaria não tão perto de uma leitura de Freud baseado em pressupostos biológicos, mas também longe da postura de Lacan, que afirmava a radicalidade da estrutura do inconsciente como linguagem. No texto, os autores afirmavam que o inconsciente freudiano, e a linguagem, se oporiam radicalmente, e que a transposição de um para outro, tanto de sua lógica como de suas leis, seria um paradoxo.
A principal decorrência da exposição destes dois alunos de Lacan, foi que terminaram por sintetizar sua posição como formulando o axioma: “O inconsciente é condição da linguagem [32].
Estava desencadeada a polêmica. Se impunha naquele colóquio, sessenta anos depois da descoberta freudiana e depois de uma década do ensino lacaniano, que a noção de inconsciente ainda estava sendo pensada por uns através da psicobiologia, por outros na acepção de Politzer; havia ainda os que o consideravam condição da linguagem e opondo-se a todos eles, Lacan, dizendo que o inconsciente estava estruturado como uma linguagem.
Respondendo a seus colegas, Lacan primeiro disse o que o inconsciente não é: “O inconsciente não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo do que tem atributo da consciência” [33]. Para depois afirmar o que ele é: “O inconsciente é um conceito forjado sobre o rastro daquilo que opera para constituir o sujeito” [34]. Afirmação que deslocava a definição de inconsciente da sua relação com a consciência, para situá-lo em relação à causação do sujeito.
Nesta lógica os analistas formam parte do conceito de inconsciente, porque são seus destinatários, daí que o inconsciente depende da relação que existe entre o Sujeito e o Outro, assim expressa: “Entre o Sujeito e o Outro, o inconsciente é seu corte, sua ruptura em ato” [35].
Estas afirmações de Lacan se sustentavam na coerência da premissa inicial do seu ensino que é “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”. Portanto, há muitos anos havia, para os que seguiam Lacan uma posição clara quanto ao que seria o inconsciente na obra de Freud. Por isto, na resposta a Laplanche, afirmou: “O inconsciente é o que digo, se queremos entender o que Freud postula na sua tese” [36].
Lacan já havia formulado essas mesmas idéias, embora com outras palavras, em outros textos, como por exemplo: “O inconsciente é essa parte do discurso concreto, em tanto que trans-individual, que falta a disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” [37]. Também no mesmo lugar havia definido o inconsciente como: “Esse capítulo da minha história que está assinalado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado” [38]. Havia assim, desde muito tempo uma insistência na função e campo da palavra e da linguagem. Faltava talvez precisá-las. A crítica de Laplanche apontava este fato.
Quatro anos mais tarde, ao escrever a sua intervenção em Bonneval, Lacan assim o definiu: “O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em alguma outra parte se repete e insiste em interferir nos cortes que lhe brinda o discurso efetivo e a cogitação que ele informa” [39]. A diferença desta formulação das outras é que nela a linguagem passa a estar sustentada por uma cadeia significante, o que era um avanço em relação as posições anteriores, pois dessa maneira passa a ser pensada dentro de uma lógica própria, e não mais apenas como uma sucessão de palavras.
Ao voltar, três anos depois, ainda mais uma vez sobre o mesmo argumento contido no artigo de Laplanche, desta vez na introdução que escreveu em 1969 para a tese elaborada por Anika Rifflet-Lemairé, ao explicitamente criticar a posição de seu ex-discípulo, afirmou mais uma vez: “O inconsciente é um saber posto em situação de verdade, o que não se concebe senão numa estrutura de discurso” [40].
Resumindo-se a crítica contida no texto de Laplanche, “O inconsciente: um estudo psicanalítico ” [41], esta apontaria que, ao se propor o inconsciente estruturado como uma linguagem, sem no entanto precisar psicanaliticamente o termo “linguagem”, isto não seria suficiente para dar conta dos efeitos do inconsciente, mas apenas da elaboração deste pela linguagem no sistema pré-consciente.
A evolução do ensino de Lacan a partir daí mostra um esforço em formalizar uma materialidade para o inconsciente, o que subverteria o uso que fazia do termo linguagem. Este esforço se concretizaria mais tarde com o recurso a noção de “letra”, entendida como um significante fora do Simbólico.
Se, no início, Lacan colocou em evidência como o significante determinava o Sujeito, ficava a questão do que faria um significante se localizar, o que sustentaria sua “materialidade”?
Em outros termos, o que retiraria a psicanálise de um nominalismo? Nos anos 70, Lacan distinguiu a letra do fonema, e por decorrência, a linguagem da palavra, e em 1971, em “Lituraterre” [42], ele proporia que se existe um saber no real, este saber só pode ser da ordem da letra e, portanto, da ordem da escrita. Avanço que visava a estabelecer a relação entre o inconsciente e o Real do Sujeito.
Esta nova posição, a partir dos anos 70, impôs a idéia de que o que constitui o inconsciente seria a letra, e não o significante. Então, ao se dizer que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, isto quer dizer que esta não remeteria a uma lingüística. Pois, de fato, o inconsciente estaria estruturado como uma linguagem, cuja estrutura, porém, só se revela pelo escrito.
Esta maneira de raciocinar só seria possível após demonstrar que a letra produz no Real a dissociação do Imaginário e do Simbólico. A letra seria este algo “que vai mais longe que o inconsciente” [43].
Por que esta nova concepção afetaria a própria doutrina do inconsciente? Porque, se o que constitui a instância é a letra e não o significante, dizê-lo estruturado como uma linguagem passa a requerer uma precisão: o inconsciente está estruturado como uma linguagem, “cuja estrutura só se revela pelo escrito”.


Mulheres freudianas e mulheres lacanianas
Para o analista, o que orienta a direção de um tratamento não é a realidade anatomofisiológica de um caso, mas os significante e as fantasias. Na análise compete, então, não investigar a possibilidade fisiológica de um paciente vir a ter filhos, mas seu desejo de tê-los, visto que sempre haverá um conflito quando ele quiser ter um filho e não o puder, e quando puder e não o quiser.
Ter filhos é um desejo ou uma necessidade? Não há nada na experiência analítica que aponte para uma conclusão, embora muitas vezes uma consideração biologizante da natureza humana faça parte da fantasia popular. Porém, para a psicanálise, o desejo de ter um filho é um desejo como outro qualquer, e portanto está sujeito às leis do significante e às vicissitudes de linguagem.
Exemplo disso é a clássica equivalência simbólica, proposta por Freud, em que o falo é igual ao pênis, que é igual à criança. Por isso, a significação da gravidez estaria no fato de que a presença da criança, através dessa equação simbólica, poderia anular a castração feminina, visto que no inconsciente criança pode ser equivalente a falo. Para Freud, a mulher “normal” é aquela que não ama a sua mãe, uma vez que, ao se deparar com sua castração, ela escolhe a partir daí seu pai como objeto de amor, o que aconteceria, ainda segundo esse autor, visto ser ele quem, através de um filho, poderia torná-la completa, anulando assim a sua castração.
Para Freud, então, a mulher vai amar um homem apenas como substituto do pai. Embora esse amor “deslocado” da mulher seja também um amor que existe em relação ao desejo, ele é o desejo de ter o falo, o que seria transformado, pela equação simbólica, em desejo de ter um filho.
Assim, segundo Freud, para a mulher, o objeto desejado não seriam os homens e sim os filhos. Dito de outra maneira, pelo viés freudiano, entende-se o desejo de uma mulher ter um filho como uma fantasia em que ela recuperaria sua completude perdida.
Pode-se chamar esse equacionamento da feminilidade de “mulher freudiana”, e a essa concepção teórica da posição feminina perante a castração, e sua solução (será que para Freud o filho é uma solução?) poderia se contrapor a idéia de uma “mulher lacaniana”, que seria o resultado da leitura que Lacan faz da feminilidade. Tal teoria, formulada sucintamente, poderia significar que o centro do desejo feminino não estaria no “desejo pelo pai”, como na “mulher freudiana”, mas sim nos efeitos da perda que instaura a falta, o que institui a mulher como não-Toda (fálica), o que ocorreria pelo efeito da operação do Real na estrutura.
Quer dizer, se para Freud a verdade do desejo feminino estaria ligada à relação da mulher com a lei do desejo, o que seria sempre presentificado pelo pai e na qual ela poderia vir a ser Toda através de um filho; para Lacan, a verdade do desejo feminino, ao estar ligada ao Real da estrutura, apontaria a causa do desejo, produzindo não uma possibilidade de completude, mas um outro gozo, diferente do gozo fálico.
Poderíamos dizer que a contribuição da psicanálise para a questão das reproduções assistidas seria a de questionar os efeitos de subversão que estas propiciam no sujeito. No caso particular das inseminações heterólogas, que é a situação de uma mulher que recorre a uma fertilização através da inseminação por métodos diferentes do coito, de um doador de esperma desconhecido, isso produz uma subversão que aparece a partir da possibilidade, antes impensável, de uma mulher ser fecundada por um espermatozóide dissociado de seu produtor.
Tal procedimento modificou radicalmente a implicação, que antes era incontornável, de que para se ter uma criança seria sempre necessária a presença da fantasia de uma mulher modulada com a de um homem; com isso a inseminação heteróloga introduziu a possibilidade de um desejo unilateral na procriação.
E não seria este o centro dessa reflexão, justamente intitulada: O homem supérfluo? Pode a mulher querer um filho sem um homem que o procrie, de um esperma que a fecunde?
Do ponto de vista analítico, impõe-se a pergunta do que acontece com a significação da gravidez para quem recorreu a esse método. E também: O que acontece com a acolhida subjetiva do embrião e da criança após o nascimento?
Indicativo é o fato de que a medicina da procriação apareceu historicamente opondo-se ao êxito da medicina contraceptiva, que alcançou seu ápice a partir dos anos 60 e que, com a proposta de evitar a gravidez, também subverteu a ordem do desejo de ter filhos. Foi justamente esse fundamento humano que paradoxalmente ficou excluído pelo saber científico que regula a procriação e que, por sua vez, acabou por impor a gestação à mulher como um bem supremo, sempre realizável.
Por isso parece oportuno opor a medicina fertilizante a uma medicina infertilizante, pois da mesma forma que o desejo de ter um filho está estruturado como qualquer outro desejo, o desejo de não ter um filho também o está.
Para restringir a questão à atualidade, pode-se propor que os avanços da contracepção modificaram o fato da concepção ser encarada como uma conseqüência do ato sexual, para transformá-la numa decisão (sobre o desejo de gravidez). Pois não é verdade que, desde a existência de métodos contraceptivos eficazes, a concepção de uma criança passou a ser, na maioria das vezes, programada, separando dessa forma o desejo sexual do homem por uma mulher do desejo de procriar? Isso porque a mulher ou o homem podem inibir a fecunda­ção de várias maneiras, e se a mulher engravida contra o seu desejo, existe ainda a possibilidade de interromper a gravidez.
Será então que os avanços científico e técnico da medicina (como sugere M. M. Chatel, em seu livro “Malaises dans la procreation” [22]) teriam produzido mudanças nos padrões da vida sexual, nas formas do relacionamento amoroso e mesmo das condições históricas da família? Será que tais mudanças introduzidas pelas novas técnicas médicas não teriam produzido também uma ideologia segundo a qual todas as mulheres devem engravidar? E teria, para chamá-la assim, essa “tomada de poder da técnica médica sobre os sujeitos” (que se sobressai principalmente através da técnica da inseminação heteróloga) colocado o homem em um plano secundário, tornando-o supérfluo?
A contraposição principal da perspectiva psicanalítica, quanto ao tema, seria portanto que, se o homem, na condição que lhe outorga a técnica da inseminação artificial heteróloga, pode ser supérfluo, do ponto de vista da psicanálise, no entanto, o pai sempre é necessário. Ou seja, se dentro da lógica da medicina da procriação o espermatozóide pode tornar o “resto” do homem desnecessário, não seria o pai o resto mesmo do que vai do homem ao esperma?
Essa relação do homem desnecessário, a inseminação heteróloga e a figura do pai mostrou-se de uma forma clara numa reportagem publicada na revista Marie Claire (2/96, p. 74) com o título “Doadores de esperma: os pais anônimos ou que pai é esse?”
A matéria investiga as conseqüências da ausência de conhecimento – para os filhos de mães que usaram o método da inseminação heteróloga – daquele que foi o doador do esperma necessário na fecundação e conclui que há um desejo universal, entre os entrevistados, de conhecer seus “verdadeiros pais”, ou melhor, seus “pais cromossômicos”.
A pergunta que se impõe é: Se o pai não é o esperma, o que de fato é um pai? Pergunta não muito simples de responder, pois, embora a figura do pai sempre estivesse presente na cultura, nem sempre esta associou o coito à fecundação.
Por isso mesmo, para a antropologia moderna, as relações de parentesco são o separador do “natural” e do “cultural”. Se a mãe é da ordem do sensível, da realidade, o pai sempre foi uma dedução simbólica, o pater semper incertus est (ou pelo menos foi até a existência do exame de paternidade pelo método do DNA). Independentemente das conseqüências dessa incidência da “verdade científica” sobre a produção do saber, fato que não foi ainda adequadamente estudado pela psicanálise, é importante se ter em conta que nem sempre a significação da paternidade foi igual à atual.
Na Grécia antiga, o pai tinha direito de vida ou morte sobre os filhos, como conta a lenda de Édipo, que foi deixado para morrer por seu pai. Já o pai latino era livre para aceitar ou recusar seu próprio filho, mas, a partir do dia em que o reconhecia, estava obrigado a responsabilizar-se por ele, pois em Roma contava mais o nomen, nome, do que o germen, semente.
Entre os hebreus, Abraão se dispôs a matar Isaac, seu filho, a mando de Iavé, seu pai Simbólico. Para os cristãos, Jesus morreu obedecendo à vontade de seu pai, e será que a penetração do cristianismo não foi tão bem-sucedida justamente porque rebaixava o pai Real como resultado de um amor pelo pai no céu?
E nos séculos XIX e XX, não estaria o Estado substituindo o lugar do pai? Quer dizer, sempre houve indícios de que o lugar do pai fecundador foi sempre secundário em relação ao lugar do legislador, o pai que faz a Lei. Por isso também, na psicanálise, o lugar normativo do pai no desejo humano foi largamente descrito por Freud, através das vicissitudes do Complexo de Édipo, que condicionaria o destino do sujeito.
E a psicanálise depois de Freud, com Lacan, foi além, e chega mesmo a formular a pergunta: É necessário que haja um homem para que haja pai?
Foi Lacan, reformulando as descobertas de Freud, quem ressaltou que o pai fecundador é exterior à relação mãe-filho, e que este só toma consistência perante o desejo da mãe. Ou seja, para a psicanálise o pai não é um objeto real, não é o macho copulador, o pai é uma metáfora, e sua função no Complexo de Édipo é a de ser um significante que substitui outro significante.
O pai é portanto, para a psicanálise, uma função que instaura a proibição, e com isso a falta, outro nome para a castração. Assim, desde a experiência analítica o pai só está presente para a criança pela Lei que é a sua palavra, e essa palavra (que Lacan chama de Nome-do-Pai) só assume seu valor de Lei na medida em que é reconhecida pela mãe.
A paternidade portanto, segundo a psicanálise, está ligada ao fato de o animal humano falar, e não ao fato de o homem produzir espermatozóides. Ou seja, não é o macho copulador que se efetiva na subjetividade da criança como sendo o pai, mas sim o pai Simbólico, que por sua vez toma sua existência pela palavra da mãe, que através do seu desejo o nomeia (nem que seja Deus Pai, como fez a Virgem Maria).
Poderíamos então supor que as pessoas nascidas de reprodução assistida, do ponto de vista psicanalítico, podem procurar no doador de esperma não a fonte de seus cromossomos, mas um saber sobre o desejo da mãe, que constitui a lei de seus destinos.
O pai portanto, para a psicanálise, é mais do que um homem, já que o homem enquanto pai tem o falo e o pai enquanto homem o perde.
Se, no entanto, for a mãe que, ao excluir o homem de sua gravidez, o faz para se manter fálica, essa é outra questão.


Desejo e modernidade: Sade, Kant e Lacan
No século XVIII, o aumento da tolerância religiosa e moral foi um fato político causado pelas dificuldades resultantes das dissidências e conflitos religiosos. Isso deveu-se à conveniência política, e, assim, essa abertura às novas concepções do homem foi devida mais a concessões feitas pelo Estado do que a mudanças de mentalidade.
Foi o Iluminismo que impulsionou essa nova situação, tornando-a um princípio geral imposto pela razão e transformando as novas concepções do homem num direito inerente à natureza humana, e não somente uma opinião permitida pelas autoridades.
A difusão do deísmo também contribuiu para a mudança da moral instituída. Na medida em que os cultos religiosos se despojaram de cerimônias e rituais tradicionais, limitando-se apenas a sugerir a existência de um ser supremo, diminuíram as diferenças entre as várias religiões. A possibilidade trazida pelo materialismo emergente de haver uma sociedade sem Deus mudou os padrões morais, até então regidos unicamente pela religião.
Alguns dos novos pensadores, levando ao extremo essa mudança de mentalidade, propuseram abolir qualquer sujeição do homem à moral. Para esses pensadores, dos quais Sade seria um dos principais representantes, a visão de uma sociedade em estado de imoralidade permanente seria a utopia do Mal. O Mal, no entanto, estaria nesse contexto subvertido quanto aos valores que o definiriam, pois, para Sade, a utopia paradoxal de uma sociedade sem moral corresponderia ao seu estado virtual, próprio a ela.
Segundo Sade, a sociedade, estando livre da hipocrisia, faria com que seus membros pudessem aceitar todos os seus desejos. Assim, para esse autor, suas idéias, ao contrastar com as das utopias do Bem, denunciavam que estas pecariam por negar a realidade do Mal, e principalmente o tédio decorrente do Bem, que, segundo ele, seria o principal gerador do Mal.
Nascida do tédio e do desgosto de Sade, surgiu a proposta de uma sociedade em estado de criminalidade permanente. Essa utopia solucionaria os fatos geradores do mal, que seriam o tédio e o desgosto, através da perpetuação de novas transgressões, as quais recriariam infinitamente o desejo, satisfazendo assim a verdadeira natureza do homem.
Essa “má consciência” do libertino representaria, na obra de Sade, um estado de espírito transitório entre o homem social e o homem sem Deus, pretendido pelos filósofos da natureza. Porém, na verdade, a consciência do libertino se manteria numa relação ambígua com Deus, pois ele lhe seria indispensável, já que fundaria seus atos como transgressões.
Essa posição se distingue claramente da consciência do verdadeiro ateu, para quem o sacrilégio, representado pelas transgressões morais, não teria outro sentido que o de revelar a devoção dos que assim significam seu ato. O ateísmo do libertino e seus delitos teriam caráter de provocação endereçada a um Deus ausente, como meio de forçá-lo a provar sua existência. Dessa forma, não seria o prazer obtido pela libertinagem o que moveria Sade, mas sim a idéia de que o mal independe da vontade de Deus.
Essa “religião do mal” não consistiria em pregar o crime como uma filosofia, mas sim em admiti-lo como sendo produzido pela existência de um “Deus infernal”, visto que a universalidade desses desejos comprovaria sua existência. Esse “Deus infernal” não refinaria a dogmática necessidade do sacrifício do inocente para a salvação do culpado, mas sim o contrário, pois exaltaria a necessidade da injustiça de Deus para a completude do homem.
Sade afirmou essa idéia nestes termos:
Se os infortúnios que me afligem desde o nascimento até a morte provam sua indiferença para comigo, posso muito bem me confundir sobre o que eu chamo de Mal. O que me caracteriza é, verossimilhantemente, um grande bem quanto ao ser que me deu à luz; e se recebo o mal dos outros, gozo do direito de lhes retribuir, da sem-cerimônia até de lhes fazer primeiro. Eis, por conseguinte, o mal como um bem para mim, como o é para o autor dos meus dias, relativamente à minha existência: sou feliz pelo mal que faço aos outros, assim como Deus é feliz pelo mal que me faz (...) [23].
Para o libertino essa posição estabeleceria uma relação negativa também com o próximo: “Sou feliz pelo mal que faço aos outros, como Deus é feliz pelo mal que me faz”. Assim o libertino consegue seu prazer através da oposição contínua à noção de amor ao próximo, satisfazendo-se com a identificação à dor do outro. Comparando-se com o outro, o homem que faz sofrer se identifica com o sofredor. O libertino, torturando o objeto de sua luxúria, goza da sua dor, pois assim representa o seu próprio suplício.
Lacan, retomando a indagação do desejo com a subversão produzida pela psicanálise, reabilitou Sade, apontando-o como o articulador das propostas kantianas, que seriam o sustentáculo da moderna filosofia da moral. Num texto escrito como o prefácio de um dos livros mais ousados de Sade, Filosofia da alcova, aproxima Kant de Sade, sendo “Kant com Sade” [24], o título dado ao escrito. Nele, Lacan articulou a exigência da liberdade do desejo, que seria o eixo da obra de Sade, com a proposta da moral kantiana, introduzida por ele na sua ética como a regra universal da conduta. Para Lacan, a subversão da moral promovida por Sade teria sido apenas a preparação de uma outra, da qual Kant foi o ponto decisivo. Nesta seqüência de subversões, Lacan inclui Freud, lembrando que o descobridor da psicanálise, ao propor suas conclusões sobre as relações entre a Lei e o Desejo, questionou a moral ao afirmar que existem desejos que se impõem como mandatos ignorando seus efeitos.
A proposta de Freud subverteu a moral estabelecida, ao demonstrar a impossibilidade de se julgar o valor do conteúdo de uma pulsão. E o que Lacan recupera de Sade estaria na captação que este fez da estrutura do desejo, que, segundo esse autor, se imporia a um sujeito, sempre como alheio, ou seja, como um outro que o exige. Ao articular o desejo do ponto de vista da psicanálise, Lacan se valeu dos textos de Sade para demonstrar que o que se pode desejar do outro seria o que não se aceita como desejo próprio.
Com o texto “Kant com Sade”, Lacan articulou uma operação em que a idéia de “vontade”, tal qual é trabalhada por Kant, poderia ser entendida como o retorno dessa alienação no outro; dito de outra forma, como demonstrou Sade, essa vontade poderia ser entendida não como partindo do interior do sujeito, mas como constituída por uma pergunta “O que quer?”, que vem do outro.
Assim, no caso das fantasias, fartamente descritas por Sade na sua obra, o sujeito seria um instrumento de uma vontade que lhe vem de fora, o que para Sade seria natural e que, na terminologia de Lacan, seria a vontade do Outro. Isso quer dizer que o sujeito, como instrumento da vontade do Outro, pode ser o agente da ação.
Para Kant, na "Crítica da razão pura", seria a degradação da lei moral que, pelo questionamento que estabeleceria ao estatuto de uma norma social, propondo um desvio da sua uniformidade, seria o que afirma a sua verdade. Seria o caso de Sade, que, propondo uma moral sustentada na ausência das garantias de Deus, implicaria a substituição do Deus como garantia do Bem por um Deus que se completaria na maldade.
Dessa forma, o homem natural, proposto pela Revolução Francesa, não necessitaria das garantias de uma moral revelada, sendo o próprio ateísmo a proposta de uma nova moral. Proposta que Sade pretendeu levar às últimas conseqüências, o que destruiria definitivamente uma moral sustentada na razão.
Já para Kant, a lei fundamental que regeria a moral é: "Obra de tal modo que a máxima de sua vontade pudesse valer sempre, como princípio de uma legislação universal". Essa idéia impõe que os conceitos de Bem e Mal não teriam que ser determinados antes da lei da moral, à qual deveriam, aparentemente, servir de fundamento. Kant introduz assim um avanço à moral, fundada na teologia, articulando-a à autonomia da consciência que poderia decidir do entendimento de um fato puro, que seria a concepção da lei moral.
Esta pretenderia proporcionar ao mundo sensível a possibilidade do entendimento do supra-sensível. Segundo Kant, o bem-estar se sustentaria numa ordem de adequação de objetos que convém à finalidade, não por vigência da lei moral nem tampouco por uma definição racional. Para ele, uma máxima somente seria válida se universal, e não suporia nenhum bem-estar que, neste caso, admitiria a adequação a algum objeto, o que implicaria uma anterioridade do Bem e do Mal com respeito à ação. Por isso, para Kant, quando houver objeto não haverá liberdade, e quando houver lei moral haverá autonomia e, portanto, liberdade. Para Kant, portanto, não existiria objeto da lei moral.
Ao que Lacan acrescenta que a busca do Bem seria impossível se não recuperasse o Bem como objeto da lei moral. Mas o Bem como objeto da lei moral pertence à lei mesma e é inerente a ela. E esse Bem supremo somente Deus poderia ser.
Mas, para a psicanálise, ao se situar o lugar de Deus remete-se à origem da Lei, que é o lugar do Pai. Dentro da teoria analítica, na perspectiva em que a estamos desenvolvendo, isso é conceitualizado como a função do falo na linguagem.


A subversão do sujeito
As relações entre o Sujeito e o desejo Lacan dedicou um texto com o título de “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano” [25]. Esse escrito foi o resultado de uma apresentação feita em 1960, em um colóquio sobre dialética.
Diante de um público constituído por filósofos, Lacan relembrou que a descoberta freudiana teria transformado definitivamente todas as concepções anteriores do Sujeito, como também do saber e do desejo.
O Sujeito da psicanálise não seria o sujeito absoluto estudado por Hegel, nem o ideal do sujeito abolido da ciência. Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria um Sujeito irremediavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso aconteceria pela relação dele, Sujeito, com a linguagem.
Para exemplificar a concepção de Sujeito na psicanálise, Lacan introduziu um modelo gráfico através do qual se poderia pensar a relação do Sujeito com o significante. Esse gráfico não teria a intenção de oferecer uma formalização do aparelho psíquico, mas apenas situar os elementos constituintes da sua estrutura. Com ele, Lacan pretendeu dar conta da experiência psicanalítica, privilegiando mais a lógica do que a intuição.
Esse gráfico, chamado “gráfico do desejo”, apresenta na sua montagem diferentes etapas constitutivas que não representam, no entanto, uma idéia de desenvolvimento genético, mas sugerem mais uma causação do sujeito a partir dos momentos lógicos presentes na sua constituição.
Esses momentos lógicos são representados numa sucessão de esquemas que constituíram as principais operações da causação do Sujeito. Uma primeira versão do gráfico pretende apenas demonstrar quais os elementos que atuariam na fala. O ato da fala pode ser representado esquematicamente assim:



Esse modelo representaria de maneira diacrônica a sucessão dos significantes que constituiria a fala de uma pessoa. Porém, qualquer um desses significantes somente receberá sentido se tomado em relação aos outros. Por isso, o sentido só existirá retroativamente, a partir da articulação do último elemento com os demais:



O ato de falar será o de enunciar significantes, que, porém, só terão sentido por oposição aos outros. Cada novo significante produzirá um novo sentido, que, por sua vez, também mudará ao se incluírem outros significantes na cadeia. Uma maneira esquemática de representar essa produção de sentido é possível com o seguinte modelo gráfico:



Como o significante e o significado deslizam, já que o signo é arbitrário, este gráfico permite mostrar que esse fato não ocorre em um só ponto. Nesse modelo, delta (D) seria o lugar de partida, representando um movimento que se originaria de uma necessidade.
Porém, à diferença dos animais, o homem, ao realizar esse movimento, por estar imerso na linguagem, antes de se encontrar com o objeto de sua satisfação o perde. O ponto C do gráfico é o lugar que Lacan, num primeiro momento, chamou de “código”. Seria o lugar onde esse Sujeito mítico, que deu origem ao movimento, se encontraria com o eixo sincrônico da linguagem. O outro ponto M é o lugar que Lacan denominou de “mensagem”.
O gráfico demonstra o percurso de um sujeito mítico que, partindo da necessidade, iria em busca do objeto de sua satisfação. O ponto C indicaria o lugar onde ele se encontra com a linguagem e que, pelas suas características, surge como obstáculo ao encontro com o objeto. Isso o desvia para o ponto M, lugar onde a “mensagem” se produz. Mas como se trata de significantes, com o sentido que a psicanálise dá a essa palavra, o circuito da significação não se fecha na produção da mensagem, pois deve esperar a aprovação do “código”.
O gráfico configura a relação do sujeito com o significante, o que quer dizer que, na realidade da linguagem, tal relação supõe que alguma coisa se desenvolve no tempo, já que toda manifestação dessa se organiza segundo uma sucessão diacrônica.
A linha Ss é a diacronia do significante, e está composta por eles. O segmento Mc tem traço cheio para indicar que se trata de uma mensagem, ou seja, que foi aprovado como uma unidade de significação.
Para explicar como se produz a mensagem, Lacan empregou como exemplo o “ponto de estofo”, que seria o que se conhece em tapeçaria como capitoné. O capitoné é um entre cruzamento de fios que, por tensão, produz depressões na superfície. Da mesma forma, a significação se produziria simultaneamente pelo entrecruzamento dos significantes. A direção oposta do segmento MC, CM marcaria no gráfico o efeito retroativo, correspondente ao que Freud chamou de Nachtraglict..
Essa primeira etapa da constituição do gráfico pode resumir-se da seguinte maneira: o sujeito que busca satisfação de uma necessidade, a partir de um estado delta, empreende seu caminho através do desfiladeiro da demanda. No fim desse caminho, chega ao outro extremo da cadeia intencional, que seria a realização. Porém, nesse ato, interfere a marca deixada pela demanda sobre a necessidade, que se refere à apreensão da linguagem pelo sujeito.
Posteriormente, Lacan modificou a notação usada nesse modelo gráfico, substituindo o código C pelo A, que representa a notação do Outro. Da mesma forma, o M, que corresponderia à mensagem, foi substituído por S(A), que quer dizer o significado do Outro.
A esse primeiro modelo, produzido pelo estabelecimento de lugares, a articulação entre eles Lacan chamou de célula elementar:



Nesse momento do desenvolvimento do gráfico se articularia o ponto de estofo, através do qual o significante detém o deslizamento infinito da significação. A função diacrônica do ponto de estofo deve encontrar-se, segundo Lacan, na frase, na medida em que ela só teria sua significação com o último termo, cada um deles estando antecipado na construção dos outros e, inversamente, afirmando seu sentido somente através de seu efeito retroativo.
Logo a seguir, Lacan propõe uma modificação:



Nela, o sujeito continua faltante, ou seja, caracterizado por uma falta de significante, mas chegando a receber da cadeia significante uma possibilidade de completar-se, que seria o significado da notação I(A). Ou seja, ele receberia do tesouro do significante, o Outro, A, um significante a partir do qual poderia constituir sua unicidade perdida, que seria a primeira identificação ao Ideal do Eu.
A experiência de falar demonstra que a palavra não tem fim. Sempre se poderia acrescentar uma nova palavra para explicar melhor o sentido desejado. O último dito será sempre provisório, podendo sempre ainda existir uma palavra a acrescentar para exprimir melhor o que se queria.
Essa posição questiona a proposta religiosa, que consistiria em se ter acesso a uma linguagem sagrada, que seria o vocabulário de Deus. Aliás, Lacan assinalou que a psicanálise só pôde ser inventada porque houve uma modificação na relação histórica entre saber e gozo. A relação antiga seria dada por essa identificação do gozo com o saber, através de um vocabulário sagrado, ou mágico, revelado por Deus e fiscalizado pela Igreja. A modificação da relação entre saber e gozo foi decorrente da unificação da ciência, que a partir do século XVIII questionou Deus como o Outro absoluto, que garantiria a verdade.
Com a desmistificação do saber, encarnado nos emissários divinos, a ciência admitiu que toda vez que se afirma alguma coisa ao mesmo tempo se enuncia uma pergunta sobre o que é a verdade. Mais ainda, na raiz mesma da experiência da palavra, cada vez que se fala, se faz uma pergunta. Cada uma das palavras ditas repete em algum lugar uma pergunta fundamental sobre a sua verdade. Pois o que se diz, decorrente da estrutura da fala, tal qual o demonstra Lacan, sempre passa pela lei do Outro, que são leis da linguagem.
Pensando assim toda a questão da verdade, ou da adequação de um objeto à necessidade, poderia ser considerada como possível de ser reduzida ao mito freudiano de Édipo, que é o que regularia a função do desejo, liquidando neste ponto a teologia como organizadora do seu lugar. No entanto, o que a psicanálise introduziu foi a questão do que é que a existência de Deus responderia, sugerindo que se encontre isso, compreendendo-se a função do Pai.
O Pai, para a psicanálise, precisado como Nome-do-Pai, é o representante da Lei do Outro. Lacan parte da concepção do Outro como lugar do significante, e diz que todo enunciado de autoridade só teria como garantia sua própria enunciação, pois seria inútil que ele o procurasse num outro significante. Foi o que ele formulou ao dizer que não há metalinguagem ou, ainda, que não há Outro do Outro.
Assim, seria somente como impostor que alguém poderia ocupar este lugar, pois, para substituir o legislador, é preciso pretender se identificar com a lei, ou substituí-la.
Desse modo, para Lacan, o lugar do desejo é dado pelo fato de que é como desejo do Outro que o desejo do homem encontra forma. Mas não sem antes guardar uma opacidade subjetiva que o distancia da necessidade. Opacidade que, para Lacan, faz a real substância do desejo.
Por isso, o desconhecimento em que o homem permanece em relação ao seu desejo é menos desconhecimento do Outro que ele demanda do que desconhecimento do lugar desde onde ele deseja. É o que formula Lacan, ao dizer que “o inconsciente é o discurso do Outro”, ao que acrescenta: “o desejo do homem é o desejo do Outro”. O que quer dizer que é como Outro que o homem deseja.
Nesse ponto, para formalizar a alienação fundamental do homem diante da ignorância dos seus próprios desejos, que o coloca numa condição de desejar muitas vezes o que não quer, ou a querer o que não deseja, Lacan, fiel a Freud, recorreu ao imaginário popular, que fez do diabo a representação desse destino do homem:
Eis por que a questão do Outro que retorna ao sujeito do lugar onde ele espera um oráculo, sob a fórmula de um Che vuoi?, que queres?, é aquela que conduz melhor ao caminho do seu próprio desejo – se ele se põe, graças ao savoir-faire de um parceiro chamado psicanalista, a retomá-la, mesmo não sabendo direito, no sentido de um “O que quer ele de mim?" [26].



O gráfico do desejo teria nesse momento de articulação o desenho de um ponto de interrogação saído do lugar do Outro. O que simbolizaria, segundo Lacan, a questão que ele significa: “De que frasco é isso o abridor? De que resposta o significante, chave universal?“ [27].
Isso se dá porque a apreensão da linguagem, ao ser também uma experiência na qual a apreensão do sujeito ao Outro, constitui seu primeiro encontro com o desejo, que antes de tudo é desejo do Outro.
O Che vuoi? inaugura poeticamente, na obra de Lacan, o problema fundamental que o sujeito encontra na realização do seu desejo. Mas, por apoiar-se nesse Che vuoi?, o processo de uma realização de desejo deixa o sujeito sem o recurso que resulta da presença primitiva do desejo do Outro. Isso impõe ao sujeito uma solidão angustiante em relação ao desejo do Outro.
À experiência assim descrita, Lacan chamou posteriormente, em 1960, de “alienação”, no texto “Posição do inconsciente” [28]. Alienação quer dizer que o sujeito não existe senão como um significante faltante. Como um enigma sobre si mesmo, ao mesmo tempo que faz essa experiência pela linguagem, ao se inscrever num Outro que o causa, é que se aliena. Alienação seria o fato de o sujeito depender sempre do Outro. A alienação seria uma outra maneira de se formular o Che vuoi?
O Che vuoi?, formulação da radicalidade da relação do sujeito com a linguagem, seria um “o que digo”, que, para todo falante, sai da sua boca, mas também da boca do Outro. Seria a pergunta que todo falante faz ao Outro: “O que você vai me dizer?” e, simultaneamente, uma pergunta que o reenvia ao Outro: “O que você quer dizer falando assim?”.



Na continuidade da elaboração do gráfico do desejo, à pergunta Che vuoi? que o Outro coloca ao sujeito, ele receberá uma resposta, que Lacan escreveu como: $ à a.
Pois, se a fala é infinita e continua sempre com a sua própria pergunta, no entanto acaba encontrando o objeto que faz o sujeito calar a boca, ou pior, às vezes deixá-lo de boca aberta. Isso é o que Lacan formalizou com a escritura da fantasia. O a seria o objeto que, ilusoriamente, completaria a falta significante do Sujeito. A fantasia seria sempre uma ilusão de completude, onde cada um pensa ter encontrado o que sempre quis, por supor não lhe faltar mais nada.
Esse fato seria a segunda operação da causação do Sujeito, a que Lacan, no texto “Posição do inconsciente” deu o nome de “separação”. Causação porque se poderia dizer que a causa do sujeito é o fato de que ele fala. Ele fala, logo se causa.
A separação, para Lacan, seria a segunda maneira de se ler a falta­. Na primeira leitura, seria uma falta para negar a incompletude. Na segunda, seria uma falta para dividir, cortar. Essa partição seria, literalmente, um parto, ou seja, o nascimento do sujeito. Produz-se uma separação de qualquer coisa que corresponde a um si mesmo, qualquer coisa que sairá do sujeito como uma parte perdida. Lacan formalizou essa parte perdida do sujeito num momento da separação:



Dessa forma, o que ele definiu como separação seria a aparição de um objeto que desde o início foi perdido pelo Outro e pelo sujeito mesmo.
Completa-se o gráfico ao se colocar a pulsão como tesouro dos significantes, com sua notação , ligando-a à diacronia. A pulsão seria o que advém da demanda, quando o sujeito desaparece. “Que a demanda desapareça também ocorre naturalmente, porém com a permanência no corte do sujeito, pois este último permanece presente no que distingue a pulsão orgânica que ela habita” [29].
O que o gráfico, nesse estado de formalização, propõe é que toda cadeia significante, para alcançar sua significação, espera tal efeito da enunciação inconsciente. Isso se dá na medida em que o Outro é requerido, a responder do seu valor, o que é dado pelo seu lugar na cadeia inferior, mas através dos significantes constituídos na cadeia superior, articulados à pulsão.



A falta que se elabora decorre de que não há Outro do Outro. Ao que Lacan acrescenta:
Mas esse traço do sem fé da verdade, é bem isso a última palavra que vale apenas dar à questão: que quer de mim o Outro? Sua resposta, quando nós, analistas, somos seu porta-voz? Certamente que não, e é justamente nisso que nosso ofício nada tem de doutrinal. Não temos de responder por nenhuma verdade última, especialmente nem pró nem contra religião alguma [30].


O outro Lacan: do significante à letra, da linguagem à escritura
Dentro desta nova perspectiva, dizer que o inconsciente está estruturado como uma linguagem significaria dizer que ele tem uma realidade material. Porém, mesmo assim, ele ainda é efeito do dizer, porque retroativamente o sujeito sempre diz mais do que sabe. Como então ressignificar, desde esta perspectiva, as palavras “estrutura” e “linguagem”?
Em 1975, Lacan ao se dirigir ao público americano, sentiu necessidade de explicar:
(... ) curioso notar, inclusive não estando absolutamente provado, que as palavras são o único material do inconsciente. Não está provado, mas é provável (e em qualquer caso, eu nunca disse que o inconsciente seja uma reunião de palavras, senão que o inconsciente está precisamente estruturado como uma linguagem)”.
Pois, se não está provado que as palavras são o único material do inconsciente, se nunca disse que o inconsciente fosse uma reunião de palavras, faltava nomear o que não é significante e pertence ao inconsciente: o objeto. Precisamente, na orientação lacaniana, objeto causa do desejo.
Este aspecto do inconsciente, fora do significante, redefine a estrutura que, se antes poderia ser pensada somente organizada pelo Simbólico, a partir dai só pode ser entendida como um Simbólico organizado por um Real. Nas palavras de Lacan: “A estrutura é o real que abre caminho na linguagem” . Isto quer dizer que a linguagem não esta subditada a um regime binário, próprio da cadeia significante pensada apenas como uma combinatória, como uma potencialidade de infinitas possibilidades de produção de sentidos.
Na perspectiva anterior a esta posição, na direção do tratamento, restrita à compreensão da linguagem articulada em função de um código fundada num binarismo, o fim seria impossível, visto não haver um significante que signifique toda a verdade do sujeito.
Concebida assim, a série significante que sustenta a fala é infinita, e ela suporá sempre a possibilidade de um recomeço. Porém, ao tomar a linguagem como fundada na escrita, marca da letra, transforma-se a prática da análise em leitura, e o analista já não opera mais no lugar onde o significante adquire valor de verdade, lugar do Grande Outro, lugar da mestria do sentido, da interpretação por acréscimo de sentido. Nesta outra posição, seu único lugar possível passará a ser o de objeto, um resto fora do significante.
Com isso a prática da análise como uma intervenção do analista que produziria um S3, por acréscimo de sentido, se deslocou para a intervenção do analista apontando para o intervalo da cadeia, ou seja, o que acontece entre S1 e S2, intervalo que se repete, intervalo de pura diferença, morada do objeto pequeno a.
A idéia de um intervalo entre S1 e S2 aponta ao mais radical da estrutura da cadeia significante, referindo-se Lacan desta forma: “debaixo da incidência em que o sujeito experimenta nesse intervalo. Outra coisa para motivá-lo que os efeitos de sentido com que o solicita um discurso, é como encontra efetivamente o desejo do Outro, ainda antes de que possa sequer nomeá-lo desejo, muito menos ainda imaginar seu objeto”.
Opõe-se, desta forma, efeito de sentido e encontro do desejo, pois o que o intervalo da cadeia impõe é da ordem do sem-sentido. O analista não está mais no lugar de S2, mas sim no de SI, SI insensato. Pela formalização dos discursos, no discurso do analista, se apresentaria como o que se produz a partir dos efeitos de um saber colocado no lugar da verdade.
A partir daí se operou uma mudança radical na direção do tratamento. Este fato decorreu da passagem da estrutura da linguagem definida como Simbólica, para uma outra, definida desde o estatuto do Real. O golpe final do primado do Simbólico sobre o Imaginário foi dado quando se demonstrou a incompletude do Simbólico, que foi escrito S(A). Este “buraco” no Outro decorre do objeto a , impondo uma prevalência do Real sobre o Simbólico. Assim, em 1973, Lacan já afirmava: “no discurso analítico só se trata disso, o que se lê”.
Nos próximos anos do seu ensino, ocorreram ainda algumas modificações importantes, todas elas referentes à relação do Real com o Simbólico, o que o levaria a uma reformulação da noção de sintoma, culminando em 1974, ao dizer “o sintoma é efeito do Simbólico no Real, o que se produz no campo do Real”.
O que o analista escuta na dimensão do dito, na dimensão da escrita, naquilo que Lacan chamou "Um do Real", tomará possível a superação do sentido como efeito da combinatória dos significantes, tornando assim possível um fim na análise. Estas considerações foram ditas como a possibilidade de haver o Um, o que depois ele veio a chamar de "Um do Real", ou de "Um-todo-só". A decorrência disto é que havendo o Um, implicaria a inexistência da relação binária entre os elementos da cadeia significante, mas sim efeito de corte entre estes elementos. O analista, na posição de objeto, escuta na dimensão do dito, que é a dimensão do “Um dizer”, do “Um da não relação”. Lacan encontrou na formula Y a de l′Un a maneira de mostrar o que se precipita no dizer como escrita.
A linguagem, antes pensada como combinatória dos significantes, produziria necessariamente uma série de infinitos sentidos. A esta noção de linguagem ancorada num binarismo, Lacan opôs o “campo uniano”. Este conceito opera a separação entre o registro do ideal, próprio do traço unário, e o registro do Real, próprio do campo uniano. Assim, a escrita pode ser entendida como um discurso sem palavras, um outro nome para o gozo.
Lacan introduziu com essas reformulações, uma substância não prevista pela filosofia nas suas elucubrações sobre o Sujeito. Esta substância, essencial ao homem, não seria nem material nem pensante, como no critério cartesiano, mas “gozante”, “corporificando-se de maneira significante”.
A linguagem, articulada ao gozo, impõe a metáfora da sua origem, que é a mãe, e o seu referente discursivo, a “língua materna”. Assim, para o futuro falante, existem línguas das quais se abstrai uma, porém, uma única língua, marcada por este gozo, ou na escrita de Lacan: alíngua.
É nesta alíngua, amálgama de gozo com significante, que o Sujeito se constituirá como parlêtre, marcado pelo significante, condicionado pela letra.
Se o inconsciente está estruturado como uma linguagem, e se a linguagem é condição do inconsciente, é porque a Alíngua existe como um Real, é a matriz do inconsciente. Por isto em 1972, Lacan estaria falando do inconsciente nestes termos: “O inconsciente é um saber, um saber fazer com a alíngua” . Ela será definida como o “corpo simbólico” que dá substância ao inconsciente freudiano. Alíngua seria como a carne da fantasia.

A citação completa é como segue:
Se eu disse que a linguagem é isso como o inconsciente está estruturado, é certamente porque a linguagem, em primeiro lugar, não existe. A linguagem é isso de que se trata de saber a respeito da função da alíngua... A linguagem está feita da Alíngua, sem dúvidas. É uma elocubração sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber fazer com a Alíngua. E isso que se sabe fazer com alíngua supera em muito aquilo que se pode dar conta debaixo a rubrica de linguagem.
Lacan ainda mudou este pensamento, no seminário sobre Joyce, ao afirmar que este autor levaria a Alíngua à potência da linguagem, quer dizer, fez de S2 da Alíngua o S1 da linguagem, carente de todo sentido, puro gozo. No Seminário XX, ainda estava se referindo à operação lingüística, que conseguiria criar um saber sobre o significante, a partir da Alíngua. Em Joyce, ao contrário, seria a partir da Alíngua que se extrai um significante que não é lingüístico, esse desenvolve a potência da linguagem até a sua própria destruição.
Poderíamos concluir sugerindo: o inconsciente não é a condição da linguagem, a linguagem é condição do inconsciente, porém a alíngua é condição da linguagem. Daí a afirmação: “O inconsciente, pois não é de Freud, é necessário que eu o diga, é de Lacan. Isto não impede que o campo, este sim, seja freudiano”.


A segunda clínica de Lacan
Laplanche se fez porta-voz do questionamento da linguagem como estrutura do inconsciente. Lacan rebateu estas críticas, que assimilavam a linguagem ao processo secundário, referindo que, em todo caso, o inconsciente poderia ser a condição da lingüística. No Seminário XX, acrescentou: “Meu dizer que o inconsciente está estruturado como uma linguagem não é do campo da lingüística” [52]. Em outro lugar, alguns anos mais tarde, a ruptura seria radical: “que Jakobson justifique algumas das minhas proposições é alguma coisa que não me basta como analista” [53]
Para substituir o que antes cabia na designação da lingüística, mas que pela Alíngua fica subvertido, Lacan criou o termo “lingüisteria” que “permitiria abordar a questão da significação em diferença ao sentido”. A lingüisteria seria a afirmação da relação necessária que o analista tem com a linguagem, e que é irredutível à lingüística. A lingüisteria estaria relacionada com a realidade contingente da linguagem em tanto fundante do sujeito, porém, ela mesma, dependendo da alíngua.
O sujeito da lingüística, sujeito da fala, é subsidiário de uma psicologia do pensamento, produto de um processo secundário. O sujeito da lingüisteria, o parlêtre, é um ser incompleto, separado do dizer do seu desejo. Assim, a lingüisteria exige a situação analítica para sustentar-se, chegando esta pontuação de Lacan ao ponto de ele dizer que: “Acrescentarei que não há outra lingüística além da lingüisteria. O que não quer dizer que a psicanálise seja toda a lingüística.” [54]
Na opinião de J.A. Miller, [55] a segunda clínica de Lacan seria devida a uma mudança de “axioma” na sua obra acontecida nos anos 70. Seria possível resumir a questão apontando que esta mudança acontece em 1970 no seminário "Ou Pire" [56] com a introdução do Il y a d′ L′Un (Existe D′Um), afirmação que condicionaria o interesse de Lacan pelo nó borromeano.
O que quer dizer o acento colocado no Um? Quer dizer que o sujeito não procede da cadeia. Por isso Lacan abandona a noção de significante e a troca pelo uso da noção de signo, e fala do signo como uma ocorrência do Um, ou seja, como um significante sem cadeia.
Pode-se com isso entender o deslocamento do múltiplo da cadeia para o Um. O que distingue um signo de um significante é que o signo não tem uma estrutura binária. Pode-se também articular esta mudança de axioma com a introdução do conceito de gozo feita anteriormente. A introdução do gozo modifica o valor dado à metonímia fazendo com que haja uma mudança do acento antes posto sobre a metáfora, deslocando-o para a metonímia.
A partir daí se pode opor então a trilogia significante, significado e efeito de significação a signo, sentido e efeito de gozo. Estas mudanças implicam em uma nova definição de inconsciente que passa a ser entendido como um saber cifrado, escrito, que aloja um gozo.
Haveria então uma mudança da ênfase do entendimento do inconsciente de um “querer dizer”, que seria o paradigma da primeira clínica, para um “querer gozar”, paradigma que funda a segunda clínica.
Outra mudança de paradigma se efetuaria na segunda clínica no seminário “Mais Ainda” [57], onde Lacan propõe uma definição renovada de linguagem, não mais como meio de comunicação, mas como aparelho de gozo. Neste momento Lacan define o inconsciente como um saber fazer com a Alíngua., ou “Se eu disse que a linguagem é como o que o inconsciente esta estruturado, é certamente porque a linguagem, em primeiro lugar, não existe. A linguagem é isso que se trata de saber a respeito da função de Alíngua...” [58].
O eixo desta segunda clínica de Lacan seria a separação do sentido e do Real. E seria devido a esta antinomia entre Real e sentido que fez com que no último ensino de Lacan a questão do sintoma tenha se tornado uma prioridade, porque, se o Real exclui completamente o sentido, o sintoma faz uma exceção.
Miller faz do texto de Freud, "Inibição sintoma e angústia" [59], a chave do último ensino de Lacan, e a chave de leitura do seminário "Mais Ainda". Chave que seria pensar o sintoma não mais a partir do sujeito barrado (linguagem), mas a partir do objeto a (gozo).
Estes últimos avanços de Lacan implicam várias conseqüências: se há Um, se a linguagem é condicionada pela Alíngua, se não há comunicação no nível dá alíngua, todos monologamos. Também com o conceito de Apalavra se termina a referência à comunicação, não há diálogo, há autismo, logo, não há outro.
Também, se não há diálogo, isto implica se reformular a prática da interpretação. Cito Miller, em "A interpretação pelo avesso": “... A idade da interpretação ficou para trás... o que Lacan chamou de interpretação já não era esta interpretação... o que chamamos interpretação, ainda que a prática analítica seja pós-interpretativa, revela algo da relação do sujeito com a alíngua” [60]
Lacan foi levado, a partir do seminário “Mais Ainda”, a formular a inexistência do Outro, isto abre o que Miller chamou de época lacaniana da psicanálise, e faz da orientação lacaniana uma orientação para o Real.
Ainda, segundo Miller, em "Televisão" [61], Lacan opõe o significante não mais ao significado, mas ao signo, constituindo com isso um abandono do par metáfora/metonímia e uma ressignificação do conceito de linguagem. Com isto, o que antes através do binarismo saussuriano dava conta dos efeitos de significação, teria sido substituído pelo par signo/sentido que daria conta da produção de gozo. Também a referência ao gozo reintroduz de outra maneira a referência à letra e sua articulação com a escritura.
Por isto a questão de qual o sentido do sentido é respondida por meio do gozo e a partir daí a clínica analítica será pensada no que vai além de um querer dizer, que seria a vontade de gozo. A clínica analítica deixa de ser concebida como um diálogo, não há conversação, e por isto o Outro não existe.
O que resta é o laço social (os discursos), que é o único que pode colocar limite ao P.D.D. (pas de dialogue) [62]. Em termos da direção do tratamento se impõe então uma interpretação que não aponta ao sentido, e isto constituiria a época lacaniana da psicanálise, que é uma orientação para o Real. Para dar conta desta outra interpretação, Miller passa a indagar a relação entre o sentido e o gozo através dos termos usados por Frege (que em alemão são: Sinn e Bedeutung), passando então em pensá-las como o que poderia formalizar a separação do Real e do sentido, o que leva a reconsiderar o Nome-do-Pai a partir do pai do nome.
Haveria também, a partir destas modificações, uma retomada do conceito de defesa relativizando o recalque, justificando desta maneira uma proposta lida por Miller como de “forclusão generalizada” e que seria o paradigma do que funda a falta.
Com a descoberta do inconsciente, as maneiras de se atuar nessa “outra cena” mudaram desde o princípio e continuam se modificando até os dias de hoje.
Para dar conta desse avanço, poderíamos evocar o pioneirismo freudiano, época que pode se situar da psicoterapia das histerias pelo método hipnótico até o momento em que Freud reflete sobre o fracasso do tratamento de Dora.
Até este ponto, a ação de Freud consistia em tornar consciente o inconsciente. Quer dizer, na prática bastava a Freud comunicar ao paciente a verdade recalcada, numa espécie de ação oracular para redimir o sintoma.
O analista, nessa época, e com esse procedimento, se colocava fora da situação analítica. Comunicava ao paciente sua interpretação, como um saber oferecido ao outro.
Foi o insucesso do tratamento de Dora que ensinou a Freud que o analista faz parte do sintoma do paciente, que está incluído nele, e, assim, a essa situação, ele deu o nome de transferência.
É possível a partir daí demarcar um segundo momento na teoria freudiana. Nesta conceitualização, o analista está incluído no campo; na situação analítica, é o paciente que repete ali, na transferência com o analista, aquilo que, por estar recalcado, não pode ser recordado.
Um terceiro momento aparece quando se impõe a questão da repetição, tanto como transferência como do sintoma e do trauma, desafiando o postulado do princípio do prazer. Junta-se a isso o problema do masoquismo, que faz com que se imponha a Freud a constatação de que o sujeito não procura o bem-estar, o que é teorizado pelos novos conceitos de pulsão de morte, Superego e masoquismo primordial.
Segundo essas considerações, em Freud, o fim da análise não poderia mais prometer qualquer forma de completude, de satisfação, de felicidade. É desde esse último Freud que Lacan entrou na psicanálise, pois, investigando os motivos do crime paranóico, logo chegou aos confins da psiquiatria, para encontrar no conceito de Super-Eu como um sujeito pode procurar o seu bem no castigo.
Privilegiando este último eixo freudiano, o da clínica organizada em torno da castração materna e da angústia, é que Lacan propõe a origem do sujeito decorrente da falta no Outro.
É isso que possibilita a leitura do inconsciente estruturado como uma linguagem, axioma fundamental do ensino de Lacan. E, sem dúvida, é o maior avanço na conceitualização do inconsciente depois de Freud.
Assim, impõe-se a perspectiva de se anunciar o inconsciente como discurso do Outro, bem como parte integrante a perspectiva de se pensar o analista como do conceito de inconsciente, pois o analista é o seu destinatário.
Essa abordagem do inconsciente por Lacan, embora mantenha a definição freudiana desse conceito, a supera. E por que não dizer, radicaliza-a. Pode-se, a partir disso, reordenar toda a clínica psicanalítica, como efeito dos estilos do sujeito de obturar a falta no Outro, e assim evitar a angústia.
A clínica psicanalítica, que é uma clínica falada, é o que opera entre o Sujeito e o Outro. E é aí, justamente, que Lacan situa o inconsciente, entre o Sujeito e o Outro, como um corte em um ato. O inconsciente é, para Lacan, um conceito forjado sobre que opera para constituir o Sujeito. Por isso, na psicanálise, o Sujeito é sempre "Sujeito do inconsciente".
Em decorrência das operações de causação do Sujeito, Lacan recomenda conservar uma estrutura temporal compreendida entre dois tempos: o inicial, que corresponde à abertura do inconsciente e o terminal, fechamento do inconsciente. Entre o instante de ver, que é algo sempre elidido, e o momento de fechamento, no qual o importante não é o sujeito implicado na sua história, mas na sincronia dos significantes, é no fantasma, onde podemos situar a marca, o selo do sujeito. Isso é chamado de pulsação temporal, e é uma articulação que sustenta um avanço introduzido há muito tempo por Lacan na direção da cura, que são as sessões curtas.
Se Freud esperava o fim da análise numa vacilação do ser que, em outras palavras, seria assumir a castração, era suposto que o analista haveria feito seu luto do ser, convidando o paciente a se defrontar com a impossibilidade da unificação. É o que Freud descreveu como a rebeldia à submissão passiva no homem e o penisneid na mulher.
Do ponto de vista do desenvolvimento lacaniano, isso corresponderia à impossibilidade de o ser falante se completar na fala, pois o Simbólico encontrará sempre um resto, um resto fundamental não subjetivável, que Lacan descreveu como objeto pequeno a . Esse resto, pensado depois como objeto, quer dizer, como não significante e por isso não subjetivável, impôs a Lacan um passe para o impasse da análise interminável.
O fantasma que faz crer que a subjetivação total é possível, parte de uma proposta não de subjetivação, mas de dessubjetivação onde Lacan encontra seu avanço em relação a Freud. O fim da análise é o resultado de uma experiência de saber, quer dizer, de um trabalho significante, mas esse trabalho culmina numa conseqüência que é a colocação em causa da falta em ser do Sujeito.
O neurótico prefere sempre a questão do seu desejo à resposta do gozo. No fim da análise, é esperado que ele perceba que o gozo já deu uma resposta à questão do desejo. E é essa resposta que ele não quer saber, porque não pode subjetivá-la.
Como se pergunta Lacan no final do Seminário XI: “Como pode viver na pulsão um Sujeito que atravessou a fantasia radical? Este é o além da análise, e nunca foi abordado”.



[1] Lacan, J. Introdução à edição alemã dos escritos, in Scilicet, 1925, n. 5, pp. 11-7
[2] Lacan, J., De um outro a um Outro, Sem XVI, inédito. 1968-1969
[3] Lacan, J., Escritos, p. 461
[4] Lacan, J. in Escritos , p. 461
[5] Ibid. p. 197.
[6] Lacan, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, in Escritos , p. 238
[7] Freud, S. in S.E. , v. VII, p. 135.
[8] Freud, S. in S.E. , v. VIII, p. 21.
[9] Ibid p. 21
[10] Lacan, J. Função e campo da palavra e da linguagem na psicanálise, in Escritos p. 238.
[11] Lacan, J. in Escritos p. 776.
[12] Freud, S. S.E, 1920 v. XVIII, p. 17.
[13] Lacan, J. em O mito individual do neurótico ,1953, Ed. Assirio Alvim, Lisboa, 1980.
[14] Freud, S., S.E., >v. IV, p. 1.
[15] Freud, S., S.E., v. XVIII, p. 91.
[16] Freud, S., 1923, S.E., v. XIX, p.23
[17] Freud, S., 1923 S.E., v. XIX, p. 179.
[18] Freud, S., 1924 S.E., v. XIX, p. 217.
[19] Freud, S., S.E. S.E., 1925, v. XIX, p.309.
[20] Freud, S., S.E. S.E., 1931, v. XXI, p.259.
[21] Freud, S., S.E. S.E., 1933, v. XXII, p. 17.
[22] Chatel, M. O mal-estar na procriação, Campo Matêmico, Rio - 1995.
[23] Sade, Marquês de. Filosofia da alcova , J.C.M. Editores, Rio – 1968.
[24] Lacan, J. in Escritos p. 776.
[25] Lacan, J., Escritos, p. 807.
[26] Ibid.
[27] Ibid.
[28] Lacan, J., Escritos, p. 843.
[29] Lacan, J., Subversão do sujeito e a dialética do inconsciente em Freud, in Escritos, p. 807.
[30] Ibid.
[31] Leclaire, S., Laplanche, J., in Ey,H, O inconsciente, Siglo XXI, Mexico,1970.
[32] Lacan, J. Posição do inconsciente, in Escritos p. 843.
[33] Ibid.
[34] Ibid.
[35] Ibid.
[36] Ibid.
[37] Ibid.
[38] Ibid.
[39] Ibid.
[40] Lacan, J. Prefácio, in Rifflet-Lemaire, A., Edhasa, Barcelona, 1971.
[41] Leclaire, S., Laplanche, J., in Ey, H., O inconsciente, Siglo XXI, Mexico, 1970.
[42] Lacan, J. in Literature, n. 3, 1971.
[43] Ibid.
[52] Lacan,J. Seminário Livro XX, 1972/73.
[53] Ibid.
[54] Ibid.
[55] Miller, J.A., O que faz insígnia, curso Paris 1987/88.
[56] Lacan, J. Seminário XIX, Ou Pire..., inédito 1971/72.
[57] Lacan, J. Seminário, Livro XX, Mais ainda, 1972.
[58] Ibid.
[59] Freud, S 1926, S.E., v. XX, p. 107.
[60] Miller, J.A. A interpretação pelo avesso, in Lettre mensuelle, dez. 1995.
[61] Lacan, J., Television, Ed. Du Seuil, Paris, 1974.
[62] Miller, J.A., O monólogo da Apalavra in Le cause freudienne, n. 34.



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