Psicanálise Lacaniana
Cinco seminários para analistas kleinianos
  Márcio Peter de Souza Leite

Leia no final o artigo "Uma pérola para estudiosos", de Geraldino Alves Ferreira Netto, publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 20/08/2000 sobre o livro de Márcio Peter de Souza Leite


SUMÁRIO
• NOTA
• APRESENTAÇÃO
• INTRODUÇÃO: O INCONSCIENTE AVANÇA?
• CAPÍTULO I: O IMAGINÁRIO
· Lacan aplicado a Lacan • O Eu em Freud e o Imaginário de Lacan
• CAPÍTULO II: O SIMBÓLICO
· A psicanálise avança? • O sujeito e o inconsciente estruturado como linguagem
• CAPÍTULO III: O REAL
· A psicose como paradigma • O Real e as estruturas clínicas
• CAPÍTULO IV: A CLÍNICA
· O discurso do analista • OrientaçãO lacaniana e direção do tratamento
• CAPÍTULO V: A CULTURA
· O lugar da psicanálise na cultura • Questões para a psicanálise em extensão
• BIBLIOGRAFIA


Nota do Autor
Em outubro de 1988, a convite do dr. Roberto Azevedo, presidente do Centro de Estudos em Psicanálise e Psicopatologia (CEPSI), apresentei uma série de cinco seminários sobre o ensino de Lacan, no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

A proposta desse trabalho foi apresentar, para colegas influenciados pela escola inglesa de psicanálise, a leitura da obra de Freud feita por Jacques Lacan.

A transcrição dos seminários e debates realizados nesse evento é agora oferecida em forma de livro.

E não poderia deixar de ressaltar que os textos produzidos a partir de uma exposição oral, que inclui sempre uma dialética com o público, resultam numa diferença entre a fala original e o texto final.

Muitas pessoas prestativamente participaram do trabalho implicado desde a transcrição do registro magnético até a digitação final. A elas, meus agradecimentos.

Ao dr. Roberto Azevedo quero manifestar minha admiração por sua coragem intelectual, que não se deixou intimidar por bairrismos oportunistas e criou uma oportunidade rara de reflexão sobre a psicanálise, independente das influências colonizadoras.

Por fim, cumpre apontar que o tempo decorrido entre os seminários e sua publicação pode ter produzido um efeito de “envelhecimento” em relação à atualidade teórica, mas certamente ainda não tornou a discussão desatualizada. Este livro tem a pretensão de introduzir e estimular ainda mais o debate e o intercâmbio entre os analistas.
(o Autor)


Resumo

Ler Lacan nunca foi fácil para ninguém, sendo ainda uma empreitada mais difícil para os psicanalistas de outras cepas, aqueles cujos percursos garantem o conforto de um saber que tende a negar o reconhecimento de uma verdade vinda do Outro, Sigmund Freud, pai de todos. Por isso mesmo, quando Márcio Peter de Souza Leite, alguns anos atrás, se dispôs a enfrentar uma platéia de colegas kleinianos para falar do discurso lacaniano, existia o risco de acabar tudo numa autêntica - parafraseando Ferenczi - “confusão de línguas”. No entanto, não foi o que aconteceu; muito pelo contrário, a alteridade da audiência estimulou o orador a dar o melhor de si, e seus interlocutores foram beneficiados com a explação de uma teoria que, embora psicanlítica, não era coincidente com suas formações, além de questionar suas práticas.

O saldo positivo da experiência extrapolou seus participantes quando o dizer virou palavra escrita, e o texto decorrente estendeu para uma boa quantidade de leitores o sucesso daquele ato de transmissão. Temos agora, no presente volume, a segunda versão da obra, mais elaborada e ambiciosa.

Com efeito, se antes era mister esclarecer o fundamento da negação da falta enquanto pivô conceitual, desta vez percebe-se a tentativa de oferecer uma visão panorâmica da orientação lacaniana na psicanálise contemporânea. Algo assim como a atualização doutrinária, onde uma ordem de razões sutenta a argumentação de forma consistente, nada dogmática. Ao mesmo tempo, muda o público-alvo: já não se trata de dialetizar com os que pensam diferente, e sim de levar a palavra plena para quem quiser ouvir, neófitos ou escolados.

Márcio Peter faz jus ao desafio de evitar que o lacanismo barroco vire esoterismo intelectual. O valor operacional deste livro na difusão do pensamento de Jacques Lacan no Brasil testemunha a importância do lugar ímpar que seu autor ocupa, seja no marco institucional do qual faz parte, e também extra-muros. Na alvorada de um novo milênio, capitalizando um século de existência, a psicanálise continua seu avanço, pois o inconsciente nunca dorme, e os verdadeiros analistas jamais desistem. (Oscar Cesarotto)


Apresentação

Inicialmente intitulado “Introdução ao ensino de Lacan”, os cinco seminários que agora são publicados fazem parte de uma experiência do autor junto a analistas de orientação kleiniana. Não se trata portanto de fazer aqui uma introdução, visto que a introductione – admissão em um lugar – foi realizada pelos referidos colegas. Tampouco um prefácio se revelaria adequado ao que me foi atribuído - de praefatio, o que diz no princípio –, já que aí ele habitou.

Apresentar os seminários de Márcio Peter corresponde a reconhecer que sua produção inscreve-se no campo onde nos autorizamos a freqüentar como psicanalistas. Quanto mais sua palavra avança, ressignifica-se, em retorno, a obra de Freud e a marca de Lacan. É apenas no sentido desse reencontro faltoso que algumas palavras podem obter espaço.

Encontramos no texto uma passagem que em geral nos é apresentada como um problema de tradução. O autor nos lembra que mais do que admitir Id, Ego e Superego como latinizações impróprias ao original alemão das Es, das Ich e Uberich, a questão deve ser deslocada para Outro lugar. Pelo rigor da leitura de Lacan, Isso, Eu e Supereu adquirem características que ultrapassam as discussões de fidelidade a termos. Trata-se de admitir que, como conceitos, revelam muito mais um impasse do que uma solução, e dessa forma somos convocados a manejar seus efeitos, e não apenas limitar seu campo a uma adequação terminológica.

Sabe-se que Freud utilizou das Es – o Isso – na reformulação que deu origem à segunda tópica. A partir daí o recalque deixa de ter o lugar que possuía na primeira tópica, já que inconsciente e recalcado não mais coincidem. Faz operar dessa maneira uma mudança na própria técnica analítica, uma vez que “o grande reservatório da energia pulsional”, Eros e Tanatos, não permite mais a transformação do inconsciente em consciente. Uma vez que o Isso, para Freud, não abrange a totalidade do psiquismo inconsciente, ainda assim o Eu dele retira sua energia. Sendo o Eu essa “parte do Isso que foi modificada sob a influência direta do mundo exterior", Freud vê nele operar, particularmente por meio do fetichismo, duas atitudes psíquicas distintas baseadas via Spaltung do Eu, uma divisão via vida psíquica. Trata-se da entrada em cena da Verleugnung – recusa – que procura apagar a presença da castração. Mesmo assim, diria Mannoni, a diferença não deixa de se marcar pela própria exigência do fetiche.

A não-coincidência da vida psíquica, o fato de o Eu não ser senhor na própria casa, é uma das heranças que Freud nos lega, como acabamos de constatar. Quando Lacan insiste na diferenciação entre o Je e o Moi, respectivamente o sujeito da subjetividade desejante e o Eu como função imaginária, recoloca magistralmente essa questão. O Eu que deve advir da consagrada fórmula freudiana wo Es war soll Ich werden é o je na condição de sujeito inconsistente, representante da divisão psíquica. Lacan requalifica esse Isso que fala em mim mesmo (Moi même) como corte, fissura, cisão. Sua contribuição do Estádio do Espelho permite apresentar o Eu como sendo desde sempre remetido a um Outro. A alienação do Eu ao Outro é mantido no nível da imagem e do desconhecimento, o que fará com que os primeiros objetos de desejo impliquem a rivalidade, laço essencial de tensionamento que aglutina a função imaginária na vertente da agressividade. O avanço dessa elaboração irá conduzir Lacan a atribuir ao Eu o estatuto de objeto. No que para além dessa autoconsciência que a identificação à imagem do Outro promove, trata-se de considerar a fascinação que no olhar se inclui para além da captura narcisista da imagem, em direção ao objeto real, não especularizável, causa de desejo. Da mesma forma, a alienação assumirá o lugar que lhe é próprio na cadeia significante, fazendo com que a divisão apareça na separação, para logo depois desaparecer.

A contribuição de Lacan quanto ao Eu e ao Sujeito é fundamental, na restituição do sentido da obra de Freud quanto na colocação em questão do narcisismo e da análise do Eu como guias da prática analítica. Isso porque se a reparação do Eu não é possível de ser operada, a noção de objeto adquire um valor totalmente distinto ao que freqüentemente se admite. Vale dizer que é a ética da psicanálise que entra em cena, de maneira a interrogar se o limite da prática analítica não excede aos ideais e ao narcisismo. E se a função do analista na cura não implicaria tanto um questionamento do ideal histérico da reparação quanto um lugar de dessubjetivação em que o sujeito pudesse ser remetido a um Outro, mais do que tu.

No que se refere ao Unbewusste de Freud, o inconsciente, Lacan o recuperou segundo uma estruturação por elementos formais, pelas duas leis constitutivas da metáfora e metonímia. Permitiu-se assim, como nos mostra o autor, a vigência de uma determinação simbólica em face da tradição pós-freudiana de substancialização imagética. A tópica do inconsciente se define pelo algoritmo S, em que o significante assume lugar de destaque, e a barra, barrando a significação pelo recalque das representações, o qualifica eticamente como faltoso, real, sempre à deriva de simbolização e, portanto, de desejo e sentido.

Além desses comentários que o curso promoveu, gostaria ainda de ressaltar dois aspectos. O primeiro refere-se ao estilo do autor. Ele se inclui numa direção que poderíamos denominar, rigorosamente, envolvida com Lacan. E aqui não se trata de relevar o conjunto dos enunciados. Mais do que isso, pauta-se pela orientação desses elementos mínimos de escrita denominados matemas. Permite dar rigor de forma reduzida ao que irá ser transmitido. Exclui assim todo um pseudo-estilo lacaniano, comum em nosso meio, em que se qualifica o máximo de confusão e hermetismo. Afastado desse modismo nefasto, Márcio Peter nos permite entrar em contato com um discurso que pauta suas referências na experiência da prática clínica. Ponto de confluência daqueles que se intitulam psicanalistas, a prática clínica empresta seu vigor até mesmo para questionar algumas afirmações teóricas. É evidente que sem elas nada disso seria possível, mas o autor nos demonstra que a fala de um analista numa situação de curso, em que sua enunciação é convocada, não pode se confundir com os regulamentos do discurso universitário, em que o Saber, ocupando o lugar de agente, anula os efeitos do sujeito que aí subsiste.

Por último, vale lembrar a própria situação em que o curso se desenrolou. Um momento de encontro, troca, e, por que não, de transmissão com colegas kleinianos. Se por um lado é possível afirmar que a transmissão da psicanálise é impossível, uma vez que ela só se concebe como “ruptura na cura”, por outro lado o sintoma de que se sofre ensina “porque ele é posto na obra que se quer ler e a desordena”. Se a psicanálise pode se tornar o sintoma do psicanalista – na qualidade de pedaço de real que se tenta dizer –, espera-se que a verdade parcial desse desejo possa ter remetido cada um dos ouvintes ao desejo presente em sua questão. Dessa forma, o que era antes um curso de introdução ganha novo valor pelo sentido que esse desejo terá despertado, e que agora nos convoca pela escrita. (Mauro Mendes Dias)


SUMÁRIO
PSICANÁLISE LACANIANA - Cinco seminários para analistas kleinianos
(Márcio Peter de Souza Leite)

INTRODUÇÃO – O inconsciente avança?
• O chiste e o inconsciente que muda
• A angústia e a modernidade
• Declínio da psicanálise
• Saber e pós-modernidade

CAPÍTULO I – O Imaginário
• Lacan aplicado a Lacan
· Biografia e teoria
· Transmissão da psicanálise: onde Lacan supera Freud
• O Eu em Freud e o Imaginário em Lacan
· Paranóia e o Estádio do Espelho
· O Eu em Lacan: do narcisimo ao Estádio do Espelho
· Do Isso à cisão do Eu
· Estádio do Espelho e castração
· Falo Imaginário e falo Simbólico
· O Imaginário ressignificado. Lacan avança Lacan

CAPÍTULO II – O Simbólico
• A psicanálise avança?
· Uma nova clínica
· Novos sintomas
· Nova direção do tratamento
• A superação do Imaginário pelo Simbólico ou o inconsciente estruturado como linguagem
· No Simbólico o tempo e lógico
· Inconsciente lacaniano, linguagem e formação do inconsciente
· A Ética e as diferentes psicanálises
· Édipos ané, estrutural e alé-do-Édipo
· Função paterna, Nome-do-Pai e metáfora paterna
· Mulheres freudianas e mulheres lacanianas
· Desejo e modernidade: Sade, Kant e Lacan
· A subversão do sujeito
· De Viena à Paris: a ressignificação do inconsciente
· Outro Lacan: do significante à letra, da linguagem à escritura
· A segunda clínica de Lacan

CAPÍTULO III – O Real
• A psicose como paradigma
· A Clínica do Real e a interpretação pelo avesso
· Psicose e Real
· As respostas do Real
· A Transmissão e Real
• O Real e as estruturas clínicas
· Saber e verdade
· Clínica psiquiátrica e clínica psicanalítica
· O cérebro, o sonho e o Real
· Psicanálise e DSM-IV
· A psicose no ensino de Lacan
· Alucinação e psicanálise
· A loucura depois de Lacan
· Quatro signos da loucura
· Análise de psicóticos
· Fetichismo e perversão
· Depressão e covardia moral
· Onde o significante marca o corpo

CAPÍTULO IV – A Clínica
• O discurso do analista
· Modelos teóricos
· O ato analítico
• Orientação Lacaniana e a direção do tratamento
· Transferência e desejo do analista
· Orientação Lacaniana
· Os tempos de análise
· Entrevistas preliminares e entrada em análise
· Destituição subjetiva e fim da análise

CAPÍTULO V – A Cultura
• O lugar da psicanálise na cultura
· Todo Lacan?
· Uma teoria lacaniana da cultura?
• Questões para psicanálise em extensão
· Caso Joyce
· Lacan com Joyce
· Santo Joyce
· Psicanálise em extensão: a arte e a interpretação
· Arte e psicose
· Moda e o discurso capitalista



O autor
Márcio Peter de Souza Leite é médico, psiquiatra e psicanalista, membro da Associação Mundial de Psicanálise, diretor-geral da Escola Brasileira de Psicanálise de São Paulo. É autor de O que é Psicanálise, segunda visão (Brasiliense, 1984), O Deus odioso, o diabo amoroso (Escuta, 1991), A negação da falta (Relume-Dumará, 1992) e co-autor de Jacques Lacan, uma biografia intelectual (Iluminuras, 1993).


Editora Iluminuras • São Paulo • 2000

 

 


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